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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo abr. 2017

 

ECOS

 

Rumo a uma ética relacional para a prática terapêutica

 


 

Cristiana P. G. PereiraI, Monica O. GenofreII e Simone Bambini NegozioIII

 


 

 

Após uma de nós ser convidada para escrever o Ecos sobre a edição comemorativa dos 25 anos da revista Nova Perspectiva Sistêmica, preferimos produzir em conjunto.

Escrever a seis mãos é fruto do que temos vivido nos últimos anos dividindo a coordenação do ITFSP – Instituto de Terapia Familiar de São Paulo, onde não definimos a autoria como algo individual, mas somos coautoras de todos os fazeres e processos de construção de conhecimento.

E, de fato, a ação conjunta se mostra quando percebemos que não importa onde ou com quem uma ideia começou, construímos caminhos entrelaçando nossas ideias e ações e ao final o resultado é coerente e nos representa, mesmo que algum ponto de discordância aconteça no percurso.

Nossa conduta valoriza o convite a conviver com as diferenças, como diz  Gergen: “[...] fundir, integrar ou reconhecer as multiplicidades, assim novas possiblidades relacionais podem emergir” (2016, p. 19).

Quanto à escolha do artigo, pensamos: “O que mais, além de tudo que já nos deu, Gergen pode nos trazer? E sim, havia muita coisa nova!

Esse artigo é um presente. Ele respalda teoricamente nossas ações, responde a nossas inquietações, e nos acompanha em nossas práticas nas salas de aula, atendimentos terapêuticos, projetos. Traz definições da moralidade de primeira e segunda ordem convidando-nos à uma Ética relacional que se estende também para nossa visão de mundo e postura de vida.

Entende o fazer terapêutico comprometido com o bem-estar daqueles a quem atendemos, mas adverte: “Sob a ótica de quem julgamos o bem-estar?” (2016, p. 12), só saberemos o resultado da nossa ação com a resposta do outro.

Considera que as vozes do cliente se entrelaçam com as vozes éticas do terapeuta, sendo essa relação verdadeiramente um diálogo. Convida-nos, assim, a dividir com os clientes nossas inquietações, afetações, incentivando a auto referência e o oferecimento de nossas histórias.

Quando Gergen define a moralidade de primeira ordem e ”o jeito de fazermos as coisas”, evocamos Foucault e a sua Ordem do Discurso. Segundo Foucault:

Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte, políticos, não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos (2012, p. 37).

O jeito de fazermos algo é atravessado por uma ordem, muitas vezes inquestionada, como, por exemplo, a visão do bem e do bom, tradições familiares e da comunidade, e quando as pessoas comungam de determinadas ações coordenadas, já estão precedidas por acordos de que não se dão conta no fazer. “Vivemos largamente nossas vidas dentro da confortável zona da moralidade de primeira ordem” (2016, p. 15).

Quando vivemos sob uma mesma ótica e partilhamos de um mesmo discurso tudo certo. E quando nossos clientes nos convidam para mundos muito diferentes da nossa ordem? Gergen explicita: “Todos os estilos de vida podem ser odiosos para quem não participa deles (2016, p. 15).”

Ele chama atenção para as ações que mostram a resistência ao discurso diferente: desdém, evitação, fofoca, malícia, antipatia – e dessa forma, estamos sendo éticos? Enquanto profissionais, o que fazer com essa resistência? Uma possibilidade, segundo Gergen é prestar atenção nas contra vozes que permeiam nossos pensamentos. Percebê-las, não negá-las, e questioná-las.

Quando as moralidades de primeira ordem se chocam e ficamos sem saída, recorremos à moralidade de segunda ordem, na qual o valor maior é a relação e o outro, “sem o outro, não existem valores, nada digno de ser vivido”.

No caso da moralidade de segunda ordem, a responsabilidade individual é substituída pela responsabilidade relacional, não há atos maus cometidos por um único individuo, porque cada ação é resultado de relacionamentos (2016, p. 17).

Isso nos remeteu ao excelente filme Paulina, de Santiago Mitre, Argentina, 2015. A protagonista é uma advogada que larga sua carreira na capital e vai ser professora numa zona rural em vulnerabilidade. Pressionada pelo pai, um juiz de direito, e pelas autoridades locais a fazer uma denúncia contra um aluno que a estuprou, ela se nega. Paulina entende que o ato do aluno não é algo individual, e vê toda a responsabilidade relacional dessa ação, coerente também com seu posicionamento político. Ao se negar a fazer a denúncia, segundo Gergen, ela evita uma alienação e uma retaliação. “Apenas juntos podemos construir uma ponte sobre o vão da alienação e da destruição mútua” (2016, p. 17).

É difícil ser Paulina num mundo crescentemente polarizado. A importância da prática da ética relacional que Gergen nos traz pode ser um caminho.

O nosso compromisso ético não deve ser com uma ideia, um discurso, uma cultura, e sim com a relação, “o valor da relação se torna o principal” (2016, p. 17). O processo relacional é nosso compromisso.

A ética relacional de Gergen e o amar de Maturana e Dávila (2009) se encontram:

O amar ocorre no fluir do viver no presente na legitimidade de tudo, sem dualidade, sem fazer distinções de bom e mau, de belo e feio. Isto é, o amar ocorre no fluir do viver em que alguém vive no domínio das condutas relacionais através das quais esse mesmo alguém – a outra, o outro e tudo o mais – surge sem intenção ou propósito como legitimo outro na convivência com alguém (2009, pp. 83-84).

A intenção de caminhar nessa direção rege nossa prática. O importante é a atenção no caminhar.


Referências

Foucault, M. (2012). A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 22ª ed. São Paulo: Edições Loyola.         [ Links ]

Gergen, K. (2016). Rumo a uma ética relacional para a prática terapêutica. Nova Perspectiva Sistêmica XXI (56)11-21.         [ Links ]

Maturana, H.; Davila, X. (2009). Habitar humano em seis ensaios de biologia-cultural. São Paulo: Palas Athena.         [ Links ]

Mitre, S. (2016). Paulina. Argentina: Lita Stantic Producciones.         [ Links ]

I Cristiana P. G. PereirA: Psicóloga Clínica pela USP, Terapeuta de casal e famílias pela PUC, Formadora e membro da equipe de coordenação ITFSP. E-mail: crispgp@uol.com.br.

II Monica O. Genofre: Psicóloga clinica pela PUC, Terapeuta de casal e família pela PUC, Formadora e membro da equipe de coordenação ITFSP. E-mail: monica.genofre@gmail.com.

III Simone Bambini Negozio: Terapeuta de casal e família pela ITFSP, Formadora e membro da equipe de coordenação ITFSP. E-mail: sbnegozio@gmail.com.

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