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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo abr. 2017

 

ESTANTE DE LIVROS

 

O show do Eu: a intimidade como espetáculo - Paula Sibilia 

Sibilia, P. (2016). O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

 

Helena Maffei CruzI

 


 

 

Logo no primeiro capítulo, nos é apresentado um fato notório que, na época, causou espécie: a revista americana Time, há quase um século, elege anualmente a Personalidade do Ano, capa da edição de dezembro, escolhida entre as pessoas que, durante o ano, mais afetaram o noticiário e a vida de mais gente no mundo, de modo positivo ou negativo. Por exemplo, em 1838, foi eleito Adolf Hitler, em 1930, Mahatma Gandhi, Mikhail Gorbachev em 1989, ano a ano avaliando quem teria sido o autor de situações de maior repercussão planetária. Em 2006, surpreendeu, pelo menos o mundo ocidental, com uma capa que retratava um computador sob uma palavra escrita em grandes letras YOU.

Você? Como assim, você que está lendo agora essa notícia? É. Eu, você, todos nós, autores e leitores do conteúdo produzido por mim, você, todos nós, na Internet nos blogs e nas inúmeras redes de relacionamento que surgem e desaparecem. A justificativa da escolha dizia: “Por tomarem as rédeas da mídia global, por forjarem a nova democracia digital, por trabalharem de graça e superarem os profissionais em seu próprio jogo, a personalidade do ano da Time é você.1

Paula Sibilia, ensaísta argentina que vive no Rio de Janeiro, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, analisa exaustivamente esse fenômeno em O show do Eu, em um livro denso no qual, em cada página, pelo menos uma frase nos informa sobre como o mercado aproveita características que, aos olhos menos avisados, parecem apenas exibições narcísicas de quantas curtidas ou likes a postagem do “meu lanche saudável”, “minha pose de corredora no parque”, “meu estilo de calça rasgada” ou “o miraculoso suco vegano que mudou meu humor, regulou meu sono e clareou meus dentes” obtêm. Ingênuo engano.

Quem tem muitos likes vende o pão do lanche, o tênis da corrida, os vegetais do suco, tudo com a aparência de gratuitas dicas generosas para os milhares de amigos. Atenção ao significado dessa palavra na Internet. Nenhuma semelhança com aquele “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração”.2

Os felizardos e felizardas que conseguem milhares de seguidores enriquecem como garotos propagandas peritos em não parecerem senão pessoas especiais que espontaneamente conseguem nossa admiração. Nós outros contentamo-nos em postar o cachorrinho, minha planta que deu flor, eu na cama, na rua, e, claro, com tudo que deve ser visto e que eu mostro que vi, fazendo mil selfies que transformaram a minha, a sua, a intimidade de todos nós, em extimidade. Essa orgia de banalidades que assola nossas vidas é produzida pela Internet? É sua a responsabilidade por esse escancaramento do que costumava ser vida privada?

Pessoas que se tornaram adultas antes dessa invenção tendem a responder um vigoroso SIM, mas esse uso da tecnologia digital é apenas um subproduto da grande revolução comunicacional que possibilitou a todos encontrarem todos, falarem vendo familiares e amigos distantes a qualquer hora em qualquer parte do mundo, participarem de movimentos sociais contra ou a favor de causas relevantes, enfim, é um conjunto de invenções planejadas que suprem desejos criados pela sociedade do espetáculo, conceito desenvolvido em 1967 por Guy Débord. O desenvolvimento do capitalismo gerou a sociedade do consumo e sua ênfase no Ter sobre o Ser. O consumo só tem sentido se o possuidor dos bens pode exibi-los, ou seja não basta Ter o que importa é Aparecer. A sociedade do espetáculo é predominantemente uma sociedade da imagem. O espetáculo entendido no teatro clássico como uma atividade em que o espectador, a partir da identificação com o herói, realiza uma catarse, isto é, um efeito moral e purificador por meio da purgação das paixões.

Na sociedade do espetáculo não se aspira à catarse mas a mimesis – eu, você e todos nós, aspiramos ser cópias das celebridades, outra palavra cujo sentido deslisou de notável, adjetivo que designava pessoas que sobressaíram em algum campo: arte, política, ciências, para famoso, famosa, isto é, pessoa que aparece na mídia, principalmente na mídia de imagens. A regra que organiza essa sociedade é, na expressão irônica do autor, o que é bom aparece e, se aparece, é bom. O Mercado não faz mais do que aproveitar as tecnologias de comunicação digital para vender de tudo nos espaços onde nos mostramos seja nos programas como Facebook, Instagram e outros aos reality shows na TV, o suprassumo da exibição do que costumava ser privado. Da intimidade à extimidade propiciando o aparecimento de novas celebridades.

Só apresentei até agora algumas ideias do primeiro capítulo – “Eu, eu, eu...você e todos nós.” Ao todo são nove, que se desenvolvem em 355 páginas, nove aspectos desse EU contemporâneo e os múltiplos aspectos que definem a intimidade como espetáculo.

A autora não se define como construcionista ou outro ista qualquer, mas explicita em cada capítulo a construção social de modos de estar no mundo esperados e valorizados em cada tempo e lugar.

De especial interesse para leitores desta revista é a descrição do Homo Psychologicus e o surgimento da psicanálise.

A história nos ensina como surgiu a noção de indivíduo e a constituição da família nuclear e as qualidades atribuídas à vida privada. Do fim do século XVIII em diante, tornaram-se cada vez mais valorizadas a intimidade, a separação nítida entre o domínio do público e do privado. Entendemos que as subjetividades são modos de ser e estar no mundo, formas abertas e flexíveis cujo horizonte de possibilidades varia nas diferentes culturas. Floresceu no século XIX o cultivo do espaço interior, somente revelado nos diários íntimos, espaço que era uma espécie de sucedâneo laico da alma cristã, onde existiriam todos os tipos de emoções, pensamentos, lembranças e sentimentos privados.

Nascia um tipo de sujeito que pedia uma nova disciplina científica, a psicologia. Alguém que, nas palavras do psicanalista Benilton Bezerra, citado por Sibilia, “aprendeu a organizar sua experiência em torno de um eixo situado no centro da sua vida interior (apud Sibilia, 2016, p. 98).”

Se esse centro era habitado por sentimentos conflitantes ou desejos reprimidos pelas rígidas regras sociais, aí deveria situar-se o cuidado, a terapia. Muito semelhante à introspecção solitária, estar deitado sem olhar para ninguém e desfiar em voz alta medos, conflitos e desejos reprováveis, para uma voz que não interrompe, 8 não corrige, apenas aponta possíveis ligações surgidas da própria fala do sujeito, em ambiente onde a privacidade é garantida e o sigilo sagrado, a psicanálise dominou o pensamento psicológico do final do século XIX, quando surge até grande parte do século XX. Entretanto, onde está hoje aquele paciente que acredita nesse processo lento, que Freud descrevia com a metáfora da escavação arqueológica?

Se formos coerentes com as premissas construcionistas sobre o significado socialmente construído do certo, errado, adequado, inaceitável etc., muitos de nós que abraçamos outras formas de fazer terapia como aquelas desenvolvidas sob a visão sistêmica, precisaremos estar atentos todo o tempo ao perigo de não naturalizarmos nossas compreensões e práticas como as corretas, desqualificando as teorias e práticas desenvolvidas em outra história e geografia.

Ainda segundo Bezerra, “na cultura das sensações e do espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental que falha, muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza (apud Sibilia, 2016, p. 150).

Terapias são comodities escolhidas, trocadas e mescladas de maneiras inusitadas para quem está na área há muitos anos.

Competem conosco mapa astral, jogadoras de búzios, visitas a gurus que dão passes, leem o futuro, ou vidas passadas. Encontramo-nos frequentemente com sofrimentos ligados a um Eu não valorizado suficientemente pelos outros, casamentos sucessivos, desapontamentos com relações iniciadas virtualmente entre dois eus exibidos em seus respectivos shows com direito a Photoshop, e uma autoapresentação que procura o prêmio de mil curtidas.

Quando nos guiamos por premissas relacionais para a constituição do que cada pessoa chega a ser, buscando nas histórias necessariamente editadas, janelas que permitam outras leituras, não estamos ancorados em teorias que explicam melhor o ser humano, apenas buscamos metáforas mais úteis aos Eus que se criam nessa sociedade, palco de variados shows.

Termino essa apresentação afirmando que deixei muitos e importantes desenvolvimentos primorosamente apresentados no livro, mas tenho a esperança de ter despertado em você o desejo de tomar um tempo à moda antiga – longo e tranquilo o suficiente para a degustação desse show de competência e conhecimento oferecido por Paula Sibilia.


Referências

Débord, G. (1997). A sociedade do espetáculo (trad. Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Sibilia, P. (2016). O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

1 Paula Sibilia – O Show do Eu. p.14.

2 Música de Milton Nascimento.

I Helena Maffei Cruz: Terapeuta familiar, editora associada da NPS, Gestora do Noos São Paulo. E-mail: hmcruz@noos.org.br

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