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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.58 São Paulo ago. 2017

 

ARTIGOS

 

Genograma no contexto do SUS e SUAS a partir de um estudo de caso

 

Genogram in context of SUS and SUAS from a case study

 

 

 

Monica BarretoIMaria Aparecida CrepaldiII

I Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil.
II Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil.

 


RESUMO

O genograma como técnica auxiliar na prática do psicólogo, seja na clínica ou nos contextos do SUS e SUAS também por outros profissionais, é o foco deste artigo. Para ilustrar o uso desse recurso, será apresentada a construção do genograma de um casal recasado. O genograma contribuiu com o processo de atendimento em vários aspectos, como proporcionar aos profissionais a visibilidade de todos os membros das famílias de origem e as relações existentes entre eles. A visualização do mapa familiar é útil para o entendimento das posições que cada um ocupa na família de origem e proporciona avanços na formulação de hipóteses sistêmicas. Como cada pessoa, a família tem sua história, suas crenças, seus padrões de interação. O genograma é único e as informações coletadas também vão se diferenciar em função das particularidades de cada família. A sistematização das contribuições do genograma auxilia o profissional a repensar questões do próprio atendimento, assim como subsidia as discussões com os outros profissionais que, por vezes, também estão trabalhando com a mesma família. A relevante contribuição do uso do genograma nos contextos do SUS e SUAS possibilita tanto a reflexão quanto a geração de novas ideias e identificação de potenciais recursos da família diante dos problemas que trazem para o atendimento. Tanto em discussões de caso como em supervisões, ter em mãos essa técnica proporciona pensar em potenciais problemas e recursos da família e como seguir o atendimento.

Palavras-chave: genograma, terapia de casal, SUS, SUAS.


ABSTRACT

The genogram as an auxiliary technical in the practice of the psychologist, whether in the clinic or context of SUS and SUAS for other professionals is the focus of this article. To illustrate the use of this resource will be presented the construction of the genogram of a remarried couple. The genogram contributed to the therapeutic process in several aspects such as providing the professional the visibility of all the members of the families, the relationships between them. The visualization of the familiar map is useful for the understanding of the positions that each one occupies in the family and advances in the formulation of systemic hypotheses. As each person, the family has your history, beliefs, standards. The genogram is unique and the information collected will also differentiate according to the particularities of each family. The systematization of the contributions that the genogram brings helps the professional to rethink questions of the treatment, as well as subsidizes the discussions with the other professionals who sometimes also attend the same family. The relevant contribution of the use of the genogram in the contexts of SUS and SUAS enables both reflection and generation of new ideas and identification of potential family resources in the face of the problems they bring to care. Both in case discussions and in supervisions, having this instrument in hand help much to think about potential problems in the family and how to follow the treatment.

Key Words: genogram, couple therapy, SUS, SUAS.


 

INTRODUÇÃO

O genograma é o mapa da família. A partir da sua construção, a estrutura e a dinâmica familiar ficam evidentes de forma gráfica e, portanto, de fácil visualização. O uso dessa técnica tem se difundido entre os psicólogos e terapeutas de família, seja em âmbito público ou privado. Na terapia de família, há relatos na literatura da sua utilização, em diferentes configurações, adultos, crianças (Zerbini, 2014) e adolescentes (Feijó, 2014), na terapia de casal (Hintz & Forgearini, 2014) e também no atendimento individual (Souza & Crepaldi, 2013).

Em curso de formação em terapia familiar, trabalhar a família de origem e família atual do terapeuta, por meio do genograma, é uma forma de revisar crenças, mitos e lealdades intergeracionais com vistas ao aperfeiçoamento pessoal e profissional (Cerveny & Galano, 2014). A construção do genograma proposto em atendimentos de orientação profissional tem foco na escolha da profissão, e o uso da técnica é direcionado para o entendimento dos padrões familiares em termos profissionais (Macedo, 2014). Além disso, tem sido utilizado como instrumento em pesquisas qualitativas (Crepaldi, Moré, & Schultz, 2014; Wendt & Crepaldi, 2008) e pesquisas em psicologia do desenvolvimento da criança e da família (Castoldi, Lopes, & Prati, 2005; Custódio, 2010).

Psicólogos e profissionais de saúde atuantes nos diversos dispositivos da rede de atenção à saúde – como Equipe de Saúde da Família (ESF), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), bem como os que atuam no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e no Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS) – também têm se apropriado do genograma (Borges, Costa, & Faria, 2015; Costa, Pinto, & Oliveira, 2010; Damaceno et al., 2014; Koelzer, Backes, & Zanella, 2014).

Ao construir o genograma junto com a pessoa/família que procurou atendimento, o profissional esclarece suas dúvidas e tem em mãos um recurso facilitador do diálogo com a família e com os diferentes profissionais que eventualmente acompanham a mesma família em outros serviços públicos. Ao entender o genograma como uma técnica que organiza e clarifica aspectos importantes para serem discutidos com outros profissionais, justifica-se o seu uso e entendimento por aqueles que atuam em equipes multiprofissionais.

Neste artigo, o genograma será estudado como recurso auxiliar na prática do psicólogo, seja na clínica ou atendimento por profissionais do SUS e SUAS. Abordar o uso do instrumento na clínica e, especificamente, em terapia de casal, foi a temática do Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Terapia Relacional Sistêmica realizado pela primeira autora. Ampliar a discussão sobre o genograma dando enfoque para o uso do mesmo por aqueles que atuam no CRAS, CREAS, ESF, NASF e CAPS deu-se a partir de uma demanda verificada em curso ministrado a profissionais que trabalham nesses locais. Nesse curso, identificou-se que alguns profissionais não tinham conhecimento sobre o instrumento ou sabiam muito pouco a respeito do mesmo e, consequentemente, não o utilizavam em sua prática diária. Outros já faziam uso dele nos primeiros encontros com o usuário e, em geral, consideravam fundamental construir o genograma com a pessoa que busca o atendimento para compreender quem compõe a família daquele que procurou o serviço, bem como a configuração das e esclarecer o motivo da procura pelo serviço.

O artigo irá abordar a origem do genograma, a padronização dos símbolos e seus diferentes usos. Para ilustrar o uso do instrumento, será apresentado o processo de construção do genograma de um casal que constituía uma família recasada, quais as reflexões que surgiram a partir dele, a clarificação da demanda e o entendimento sobre a família de origem e as relações existentes entre os familiares. O atendimento ao casal foi realizado em uma clínica escola de Psicologia, porém, as particularidades do caso suscitam discussões que possibilitam ampliar da especificidade dos terapeutas de família para contextos mais amplos de atuação de profissionais do SUS e SUAS.

O GENOGRAMA COMO RECURSO TERAPÊUTICO

O genograma, também conhecido por genetograma e familiograma, é uma representação gráfica da família, e, com ele, é possível visualizar informações sobre as pessoas que o compõem, além das famílias de origem e extensa (Crepaldi, Moré, & Schultz, 2014). Permite conhecer e compreender as relações que se estabelecem entre seus membros, os legados, crenças e mitos que são transmitidos intergeracionalmente, os triângulos-chave do sistema, a dinâmica e os modos de funcionamento e estrutura familiar, além de ser um excelente instrumento terapêutico para investigação clínica (Asen & Tomson, 1997; Burd & Batista, 2004; Crepaldi, Moré, & Schultz, 2014; McGoldrick & Gerson, 1995; Zerbini, 2014).

A origem do genograma está pautada nas ideias do terapeuta de família Murray Bowen (1991), um estudioso que, a partir da experiência não só com as famílias atendidas, mas, principalmente, com sua própria família, evidencia conceitos como triangulação, transmissão intergeracional e diferenciação do self. Alguns autores, baseados na teoria de Bowen, relataram o uso do genograma na década de 80 (Macedo, 2014). Porém, apenas em 1985 a publicação de McGoldrick e Gerson (1985/2005) apresentou a padronização dos traçados básicos dos genograma e, consequentemente, difundiu o seu uso. A obra desses autores uniformizou a utilização de figuras que representam as pessoas, ou seja, símbolos para representação de gênero (masculino e feminino), datas de nascimento, casamento e falecimento, gravidez, abortos espontâneos e provocados e linhas que descrevem suas relações (conflitivas, alianças, distantes, harmônicas), como pode ser observado no Anexo 1 (Krüger & Werlang, 2008; Wendt & Crepaldi, 2008).

A definição de genograma vai além de ser um instrumento ou técnica; ele é uma construção que ocorre com as pessoas atendidas. E, por ser uma construção em conjunto, tem sido designado por autores como genograma construtivista (Cerveny, 2014). Por meio dele, a pessoa atribui significados para as histórias narradas e para as relações com os demais membros da família (Zerbini, 2014). O uso de metáforas, fotos, imagens, retratos falados são formas de enriquecer e personificar o genograma de cada família (Cerveny, 2014).

Assim, o genograma tem sido utilizado de diferentes formas por distintos profissionais. McGoldrick e Gerson (1985/2005) destacam quatro usos específicos: (a) atrair toda a família – como forma de comprometer toda a família com o processo, permitindo o acesso a um material familiar complexo e com carga emocional; (b) destravar o sistema – pode ser útil para trabalhar em sistemas rígidos, reconhecer informações sobre alguns fatos (nascimento, casamento, enfermidade, morte) e ajudar os clientes a entrar em contato com questões emocionais paralisantes; (c) clarificar padrões familiares – constroem-se hipóteses sobre o funcionamento familiar e estas são apresentadas à família. Clarificar os padrões familiares desempenha uma função educacional, pois permite a seus membros ver seu comportamento com relação a e dentro do contexto familiar; (d) Reorganizar problemas familiares – ferramenta útil para rever condutas, relações e conexões de tempo na família e normalizar a percepção que a família tem sobre si.

Na construção do genograma, propõe-se pensar em três níveis: (a) estrutura familiar – descrição gráfica de como os diferentes membros de uma família estão ligados, biológica e legalmente entre si, de uma geração para a outra; (b) registro de informações sobre a família – inclui informações demográficas (idades, datas de nascimento e mortes, situações, ocupações e nível educacional), informação sobre o funcionamento (emocional e de comportamento), sucessos familiares críticos (mudanças de relacionamento, migrações, fracassos e êxitos) e (c) delineamento das relações familiares – compreende o traçado das relações entre os membros de uma família (McGoldrick & Gerson, 1985/2005).

Para a interpretação dos dados, atenta-se para os seguintes aspectos: estrutura familiar, adaptação ao ciclo vital, sucessos da vida e funcionamento familiar, padrões vinculares e triângulos, equilíbrio e desequilíbrio. Segundo os padrões de funcionamento familiar, as relações familiares têm sido caracterizadas como: íntimas, fusionadas, conflitivas, distantes e emaranhadas. É a partir do relato das histórias familiares que o terapeuta consegue identificar qual é o tipo de relação que se estabelece entre os membros. Cada um dos padrões de relação é representado no genograma com um traçado específico (McGoldrick & Gerson, 2005).

A formação de triângulos (caracterizada pela relação tríadica, em que o terceiro é depositário das tensões advindas da relação entre as outras duas) (Macedo, 2014) fica muito evidente na construção do genograma, porque os padrões estruturais e os dados específicos sobre as relações de pares fazem com que sejam óbvias quais são as três pessoas que possivelmente formem o triângulo (McGoldrick & Gerson, 2005). Em famílias recasadas, especificamente, há triângulos previsíveis a serem investigados, pois é a estrutura familiar, ao invés das particularidades dos participantes, que define a situação.

 Os recasamentos e diferentes configurações familiares estão presentes em todas as classes sociais. Os profissionais que trabalham no SUS e SUAS necessitam conhecer as diferentes configurações familiares dos usuários. Essas famílias enfrentam situações de divórcio, recasamento, histórias de violência, uso de drogas, e problemas relativos à saúde mental. Por meio das histórias contadas a partir da construção do genograma, é possível identificar os padrões familiares que se repetem através das gerações. Esses padrões repetidos são relativos ao funcionamento, às relações e à estrutura familiar. Reconhecer esses padrões pode ajudar a família a evitar a repetição no presente e sua transmissão no futuro (Burd & Batista, 2004; McGoldrick & Gerson, 1985/2005).

 Ao identificar idades e datas no mapa da família, pode-se ter indícios sobre sua adaptação às transições no ciclo vital e os sucessos do ciclo de vida. Quando se percebe alguma problemática, se investiga mais as possíveis dificuldades no manejo das fases do ciclo vital. Dessa forma, ao observar tensões em determinada fase do ciclo de vida, impacto de fatos traumáticos, reações de aniversário e respostas da família aos sucessos sociais, econômicos e políticos, percebe-se a importância de avaliar o impacto da mudança na família e sua vulnerabilidade a mudanças futuras (McGoldrick & Gerson, 1985/2005).

Outros itens considerados importantes para rastrear na construção do genograma com a família são: (a) fatores socioeconômicos (ocupação, nível de educação); (b) fatores físicos-genéticos (doenças, visão, lateralidade); (c) valores religiosos (afiliação a igrejas, práticas religiosas); (d) fatores ambientais e genéticos (habilidades artísticas, tendências ligadas ao peso corporal); (e) valores familiares (famílias próximas, preferências por política); (f) experiência cultural (tradições culturais, país de origem) (Burd & Batista, 2004).

As sugestões na literatura a respeito do que deve ser investigado na construção do genograma são inúmeras. No entanto, a complexidade das relações familiares e especificidades de cada história vão fazer com que o terapeuta e a família elejam aqueles elementos que são considerados relevantes para a história de cada um. Tais informações, como atividades profissionais, de estudo e outras datas importantes, bem como características específicas dos indivíduos e de seus relacionamentos, identificadas pela família, são registradas no desenho do mapa familiar (Krüger & Werlang, 2008).

As informações obtidas por meio do genograma permitem antecipar potenciais problemas e pensar em formas de prevenção. O fator prevenção do uso do instrumento pode ajudar o profissional envolvido e as famílias a lidarem com as fases que virão no ciclo de vida, bem como explorar os impedimentos para seguir em frente. Ele proporciona valiosas pistas para as dificuldades e problemas envolvidos nas crises ou pontos críticos, como: perdas, doenças, envelhecimento, morte da geração mais velha (Burd & Batista, 2004; Ceberio, 2004). Nesse sentido, o genograma é um organizador e clarificador do trabalho terapêutico e um importante meio para formulação de hipóteses, em determinado contexto e tempo para posterior traçado de estratégias e curso do tratamento (Ceberio, 2004).

MÉTODO

O presente artigo é um estudo de caso clínico que tem como característica principal a concomitância entre o processo terapêutico e a investigação científica. Os participantes do estudo são Mirian e André, nomes fictícios utilizados para preservar o sigilo sobre a identidade de ambos. Os dados foram obtidos a partir dos registros cursivos de cada atendimento psicoterapêutico realizado. Realizou-se a análise do material registrado tendo como enfoque o uso do genograma durante o processo terapêutico e o referencial teórico da terapia familiar sistêmica.

A participação do casal foi voluntária e consentida através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido da clínica escola onde o atendimento foi realizado. Como o referido termo foi assinado no momento da triagem, pois é um procedimento da clínica escola, e a decisão de se fazer o estudo de caso clínico foi tomada a posteriori, a terapeuta consultou o casal antes de iniciar o estudo.

CONSTRUINDO O GENOGRAMA

Mirian (33 anos) e André (41 anos) procuraram a clínica escola em função dos desentendimentos frequentes entre eles. Eles estão casados há dois anos e constituem-se também como uma família recasada, pois André já fora casado com Leila e com ela tem um filho, Bernardo (6 anos). Uma das queixas de Mirian era que ela se sentia “deixada de lado” quando Bernardo estava com eles. O genograma foi construído com o casal já na segunda sessão de terapia, com a finalidade inicial de entender “quem” era a família de origem de André e quais as relações estabelecidas nessa família, pois logo apareceu a queixa de que André tinha uma relação distante e conflituosa com sua família de origem (Anexo 2).

Ao construir o mapa familiar, a terapeuta constatou que André é o caçula de oito irmãos. Todos residem na mesma cidade, bem como sua mãe, aos 85 anos. Seu pai faleceu em 1987 devido a um acidente vascular cerebral (AVC) e era alcoolista. Seu irmão mais velho, também alcoolista, faleceu em 1988 de embolia cerebral. Os irmãos com quem tinha conflito eram aqueles que mantinham um relacionamento próximo com Leila, sua ex-mulher, e que não aceitaram a separação. A relação conflituosa com o irmão (Cláudio), dois anos mais velho, era o que mais o incomodava, pois eram muito amigos até André se separar.

Para completar o seu genograma, falou-se, também, sobre o casamento com Leila, que durou oito anos. André evitava ao máximo o contato com a ex-mulher, conversavam apenas quando dizia respeito ao filho. Definia a relação conjugal anterior como “traumática” e referia-se à ex-esposa como ciumenta e possessiva. Quando decidiu sair de casa e separar-se, tanto ela como a família de André não aceitaram o fato, sob a alegação principal de que tinham um filho pequeno. Como resultado das tratativas de guarda, André ficava com o filho a cada quinze dias e, algumas vezes na semana, o buscava na escola.

O genograma de Mirian foi construído na sessão seguinte. Sua família de origem é do sul do estado, cidade onde nasceu e morou até sua vinda para a capital para cursar Farmácia. Ela tinha uma irmã mais velha e uma irmã gêmea, ambas casadas e residindo no mesmo município dos pais. Também tinha um irmão mais novo (18 anos), adotivo, que fazia faculdade e morava na mesma cidade do casal. Mirian relatou que, na família, o seu estereótipo era o de ser “a forte”, que “dava conta de tudo”, enquanto que a irmã gêmea sempre foi “a doentinha”. Assim, na infância, uma situação criada pela dinâmica familiar colocou as filhas em funções rigidamente marcadas, ou seja, uma “filha fraca”, doente, que precisava de cuidados, e ela “a filha forte”, que deveria cuidar da irmã. Esta situação a fazia sentir-se preterida, “de lado”. Agora, na idade adulta, ela se colocava na mesma posição: preterida pelo marido que precisa dar atenção ao filho.

Com a construção do genograma também se teve conhecimento do histórico de transtornos mentais na família. Seu avô materno, aos 56 anos, cometeu suicídio por enforcamento. Nesta época, Mirian tinha dois anos, porém, apenas aos 12 anos soube o motivo da morte dele. Acredita que a mãe, como irmã mais velha de sete irmãos, e muito próxima ao pai, nunca aceitou o que ele fez. A família não tinha foto desse avô em casa e nunca falava a respeito. Contou que alguns familiares tinham transtorno bipolar e considerava sua mãe depressiva.

Mirian, ao falar da sua história, comentou que teve depressão duas vezes, uma quando morava na cidade dos pais e a outra depois de formada. O fato de ela não estar bem impulsionou a compra de uma farmácia, pelo seu pai, para que ela a gerenciasse, pois este era o seu sonho. Porém, a farmácia faliu e eles ainda pagavam uma dívida ao banco em função disso durante o atendimento psicoterapêutico. Mencionou que desde essa época sentia uma “angústia muito grande” por achar que decepcionou o pai, por sentir que “não deu certo”. Segundo ela, a dívida com o pai não é apenas material, pois é muito ligada à sua família de origem.

A partir dos relatos, evidenciou-se o superenvolvimento de Mirian com os pais e com a irmã gêmea. Contou que, mesmo morando longe, a família sempre recorria a ela para intermediar algum problema. Apesar disso lhe trazer sofrimento, deixou claro que são aspectos do próprio relacionamento do casal que mais a incomodam e são motivos de conflitos, enquanto que, para André, são as situações externas que mais atrapalham o casamento.

Em algumas sessões, o tema principal do encontro foi as diferenças entre eles e suas famílias de origem. Assim, o genograma era levado pela terapeuta em todas as sessões para embasar os questionamentos, as hipóteses, bem como complementar informações que eram trazidas pelo casal.


REFLEXÕES SOBRE O USO DO GENOGRAMA

O uso do genograma como recurso técnico contribuiu com o processo terapêutico em vários aspectos. O primeiro deles foi proporcionar à terapeuta a visualização de todos os membros das famílias de origem do casal e as relações existentes entre eles. A família numerosa e os diferentes padrões de relacionamento entre os membros da família de André, bem como as particularidades da família de Mirian, eram facilmente identificados a partir do desenho e possibilitaram o entendimento das posições que cada um ocupava em suas famílias de origem. A visualização das informações através do genograma é apontada por diversos autores que estudaram o seu uso no atendimento familiar (Asen & Tomson, 1997; Burd & Batista, 2004; McGoldrick & Gerson 1995).

Nesse sentido, a construção do genograma junto com a família em contexto de atendimento do SUS e SUAS é interessante pois, comumente, o profissional se depara com uma família bastante numerosa, muitas histórias e configurações familiares diversas. A representação gráfica das informações organiza o conteúdo comunicado, facilita conexões e diálogos com a família e com outros profissionais de saúde. As intervenções da equipe multiprofissional responsável pelo caso podem ser estruturadas a partir do conteúdo coletado por meio do genograma.

No atendimento do casal, o genograma também foi um facilitador na investigação das histórias e das crenças familiares. Como exemplo, pode-se supor a existência da crença do “casamento para a vida toda” na família de André, em função da não aceitação de sua separação; a dívida de Mirian com seu pai; a angústia de Mirian pela “perda” da farmácia e as perdas vividas na infância – como o suicídio do avô. Esses fatos que apareceram com a construção do genograma permitiram que o casal entrasse em contato com questões emocionais que impulsionaram algumas reflexões, conforme sugerem McGoldrick e Gerson (1985/2005).

A construção do mapa familiar também facilitou a criação de hipóteses sistêmicas, pois colaborou com o entendimento da função que cada um ocupa em sua família de origem e como os conflitos não resolvidos com os mesmos interferem nas relações do casal. Nesse sentido, Ceberio (2004) define o genograma como organizador e clarificador do trabalho terapêutico e determinante no traçado de estratégias e curso do tratamento.

Outro aspecto identificado diz respeito à clarificação dos padrões repetitivos no funcionamento, relações e estrutura familiar. Na terapia do casal em questão, evidenciou-se a repetição da relação triangular vivida na infância de Mirian, no relacionamento com André e o filho dele, bem como o fato de André reviver com Mirian as cobranças que existiam por parte dos seus irmãos. O reconhecimento desses padrões pode ajudar a família a evitar a repetição no presente e sua transmissão no futuro (Burd & Batista, 2004; McGoldrick & Gerson, 1985/2005).

A saúde mental também tem um histórico que se repete por gerações das famílias de origem do casal. Mirian relatou ter tido depressão em dois momentos de sua vida, o suicídio do avô, a depressão da mãe. Na família de André, o uso abusivo de álcool pelo pai e pelo irmão mais velho. Ao atender no SUS e SUAS, percebe-se que esses são padrões repetitivos frequentes, assim como as violências. Muitas vezes, a pessoa que procurou ajuda não havia se dado conta do quanto tal situação, que suscitou tanto sofrimento, era presente na história de sua família. 

É importante apontar a peculiaridade do genograma no trabalho com famílias recasadas, também muito comum em contextos do SUS e SUAS. Segundo McGoldrick e Carter (1995), o uso desse instrumento é essencial no trabalho em virtude da complexidade estrutural dessas famílias, principalmente quando há filhos dos relacionamentos anteriores. Ou seja, as relações na família nuclear que, antes, eram entre o casal e eles enquanto pais com filhos(as), transformam-se para relações entre ex-cônjuges, incluindo padrasto, madrasta, enteados(as), além das questões emocionais que permeiam estes relacionamentos.

Em termos de terapia, sabe-se que as famílias dispostas a trabalhar os relacionamentos com suas famílias de origem se saem melhor do que aquelas que não estão dispostas a isso (McGoldrick & Carter, 1995). Da mesma forma, tanto para os psicólogos como para os profissionais de saúde em diferentes contextos do SUS e SUAS, o uso do genograma propicia atingir os objetivos de clarificar e entender as relações e as histórias da família de origem, sendo um importante instrumento gerador de diálogos e novas reflexões.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O genograma de cada família é único, pois cada um tem a sua história, suas crenças, seus padrões. Ele auxilia o profissional a conhecer as particularidades de cada família, e as informações coletadas também vão se diferenciar de acordo com o que for relevante no atendimento. É um recurso que pode ser utilizado por psicólogos nas diferentes modalidades de atendimento psicoterapêutico, ou seja, individual, casal, família; e também por profissionais de saúde em geral em diversos contextos: clínico/ambulatorial, SUS, SUAS, hospitais e de diversas formas: desenhado junto com a família e/ou pessoa atendida, na própria consulta, feito apenas pelo profissional após o atendimento. Porém, essa última forma limita as conexões que podem acontecer in loco com a família/casal/indivíduo a partir da investigação da história familiar.

Na terapia de casal, o emprego do genograma é uma técnica auxiliar na investigação das relações dos cônjuges com suas famílias de origem e propicia a formulação de hipóteses sistêmicas que ajudam a pensar os conflitos do casal como reflexo de questões familiares antecedentes. Em famílias recasadas, por sua vez, ele pode ajudar a clarear a complexidade de relações que envolvem esse tipo de configuração familiar. Além das histórias e relações com as famílias de origem, há a situação do casamento anterior e relacionamento com ex-cônjuge e filhos.

As famílias que buscam atendimento no contexto do SUS e SUAS são, muitas vezes, numerosas – como a que foi referida nesse artigo. Nesses contextos, o genograma pode ser construído já na triagem ou, então, no decorrer dos atendimentos à pessoa que buscou o Serviço. Por meio da construção do genograma é possível visualizar as informações de quem compõe aquela família, a complexidade das relações e as histórias familiares são esclarecidas, favorecendo a melhor compreensão sobre a problemática apresentada pela pessoa que procurou ajuda. Todas essas informações fornecem subsídios para as discussões entre os profissionais que atendem algum membro da família.

A sistematização das contribuições que o genograma traz auxilia o profissional a refletir sobre questões do próprio atendimento, bem como contribui para pensar em ações multiprofissionais. Ou seja, a técnica possibilita traçar um plano terapêutico em que as diferentes demandas sejam atendidas pelos profissionais incluídos no caso em questão. Assim, tanto em discussões de caso ou em supervisões, ter em mãos esse instrumento favorece que sejam considerados potenciais problemas na família e formulação de hipóteses para seguir o atendimento.

O genograma aplicado na prática dos terapeutas sistêmicos é bastante conhecido, porém, pouco material bibliográfico é encontrado a respeito do uso do genograma em diferentes contextos e por profissionais não psicólogos que trabalham em equipes multiprofissionais. Entende-se, assim, como fundamental a existência de novos estudos e outros relatos de experiências que retratem o uso da técnica por profissionais de diferentes áreas e como os auxiliam a aprimorar a sua prática de atendimento.

ANEXO 1

Símbolos do genograma

 

 

Fonte: (McGoldrick & Gerson, 1995/2005; Minuchin, 1982; Wendt & Crepaldi, 2008)

ANEXO 2

A família de origem de André e as relações estabelecidas

 

 


Referências

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Recebido em: 10/08/2015
Aprovado em: 30/06/2017

I Monica Barreto, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, psicóloga do Serviço de Atenção Psicológica da UFSC, terapeuta de família. E-mail: monica.barreto@ufsc.br

II Maria Aparecida Crepaldi, Doutora em Psicologia, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, Laboratório de Saúde, Família e Comunidade. E-mail: maria.crepaldi@ufsc.br

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