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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.58 São Paulo Aug. 2017

 

ESTANTE DE LIVROS

 

Pesquisas e intervenções sobre homens e violência contra a mulher no Brasil 

Beiras, A. & Nascimento, M. (2017). Homens e violência contra mulheres: pesquisas e intervenções no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Noos.         [ Links ]

 

Anna Beatriz Alves LopesI

 


 

 

Desde a metade da minha graduação em Psicologia já venho estudando a temática de gênero e violência. Fiz minha pesquisa de conclusão de curso com mulheres que sofreram violência de gênero enquanto estavam gestantes, entrei para o grupo de pesquisas de Fenomenologia da UFPA (NUFEN), que, à época, estava se dedicando aos estudos de violência. Foi a partir do NUFEN que tive contato com as pesquisas sobre masculinidades e, mais tarde, sobre homens autores de violência doméstica e familiar (HAV). O NUFEN firmou parceria com a Defensoria Pública do Estado do Pará, a qual possui um Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem em Violência Doméstica e Familiar (NEAH), e, com este suporte, desenvolvi meu projeto de mestrado especificamente dentro do tema de homens e violência contra mulheres, momento em que tive a oportunidade de participar como coterapeuta em um dos grupos com HAV. Também pude ter a oportunidade de me aprofundar nesse assunto ao fazer um intercâmbio para o grupo de pesquisas Margens (Modos de vida, família e relações de gênero) na UFSC. Dessa forma, venho apresentar o livro “Homens e violência contra mulheres”, que tem como tema justamente os estudos de homens autores de violência contra mulheres no Brasil, o qual, posso afirmar, é de grande relevância para os estudos de gênero, masculinidades e violência.

Vejo que a importância deste tema se dá pelo fato de ainda existirem poucas pesquisas e intervenções políticas e sociais para homens no contexto de violência doméstica e familiar no país. A Lei 11.340/06, apelidada de Lei Maria da Penha, foi uma grande ferramenta política para o incentivo de programas voltados e estes homens, visto que impõe uma possibilidade de o juiz determinar que os “agressores” (conforme escrito na lei) participarem de programas de reeducação. No entanto, a lei não estabelece a obrigatoriedade da criação destes programas, assim, mesmo após os dez anos de sua vigência, ainda existem poucos programas e nenhuma regulação para funcionamento dos mesmos. Deste modo, o livro, fruto de teses e dissertações, traz as formas de intervenção de alguns programas brasileiros, e, principalmente, aponta para o cuidado ético de como os profissionais podem agir nestes contextos.

Enquanto mestranda em psicologia clínica e pesquisadora do tema central do livro, identifiquei a importância da leitura do mesmo não apenas no meio acadêmico, mas também aos profissionais que atuam diretamente com questões relacionadas aos homens autores de violência contra mulheres no Brasil. A partir das minhas práticas de pesquisa de observação de um grupo de homens autores de violência, tornou-se perceptível, após a leitura do livro, os avanços e técnicas atualizadas que podem ser incorporadas também pelos terapeutas clínicos e familiares, além de demais profissionais atuantes nas áreas de políticas públicas em saúde, segurança pública e na atenção psicossocial.

O livro, portanto, é composto por uma compilação de um prefácio e dez artigos relativos a pesquisas e intervenções sobre Homens Autores de Violência (HAV) contra a mulher no contexto brasileiro. É disposto de forma a apresentar, primeiramente, artigos contendo aspectos teóricos e epistemológicos acerca do assunto e, posteriormente, pesquisas de práticas, intervenções e experiências neste campo.

É organizado por Adriano Beiras, psicólogo e doutor europeu em Psicologia Social pela Universidad Autónoma de Barcelona, professor do Departamento de Psicologia e de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O outro organizador é Marcos Nascimento, psicólogo e doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador da fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher do Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz.

O prefácio, escrito por Jacqueline Pitanguy, faz uma breve introdução da temática de estudos sobre homens autores de violência, e aponta que, neste livro, não serão evidenciados relatos das mulheres, porém não deixa de frisar a importância dos estudos e dos relatos das mesmas.

O primeiro artigo, “Grupos reflexivos com homens autores de violência contra as mulheres: desafios teóricos, metodológicos e políticos contemporâneos”, é escrito pelos organizadores e faz uma apresentação dos temas que serão tratados nos demais artigos de autores de diversas áreas como Psicologia, Antropologia e Linguística. Estes se baseiam em dados estatísticos sobre violência contra a mulher no Brasil e em pesquisas sobre HAV no âmbito internacional para justificar a importância desses estudos.

João Paulo Gonçalves trata sobre “as contribuições da noção de interseccionalidade e dos estudos feministas pós-coloniais para o campo das intervenções com homens autores de violência doméstica contra as mulheres” em seu artigo. O autor explana sobre as ondas do feminismo e suas principais características, mas o interessante é que, ao falar das ondas, que ocorreram numa esfera mundial/ocidental, aponta para sua repercussão e efeitos no Brasil. Gonçalves ressalta o início dos estudos de masculinidades no feminismo e relaciona-o com questões de interseccionalidade, colonialidade e política de localização, aspectos significativos para a terceira onda.

O artigo de Cláudia Natividade, “Novos signos da(s) masculinidade(s): o homem vítima de violência”, aborda – a partir de pesquisa de campo com um grupo de HAV com foco no sistema representacional e no sistema interpessoal “seguindo modelos metodológico-analíticos da linguística sistêmico-funcional e de semiótica social – análises críticas sobre os sistemas de poder e os posicionamentos ideológicos que eles ativam e formulam” (p. 52). A autora, dentre outros, obtém resultados de como homens se pensam vítimas de violências e também injustiçados por estarem ligados a processos judiciais em diversos momentos dos seus discursos no grupo, além de considerarem banais alguns atos/eventos de violência cometidos contra suas parceiras.

Fabrício Guimarães e Gláucia Diniz, em “Masculinidades, anestesias relacionais e violência conjugal contra a mulher”, apresentam o conceito de anestesias relacionais para analisar como os processos de desresponsabilização do homem e de culpabilização da mulher repercutem no íntimo da relação conjugal através de negação, minimização, justificativas, mitos e naturalização da violência.

Em “O macho, o covarde e o criminoso: alguns comentários sobre o processo de criminalização da violência contra a mulher no Brasil”, Cecília Soares e Hebe Gonçalves problematizam a ênfase na dimensão punitiva aplicada aos homens autores de violência. Suas análises são feitas a partir do diálogo com a criminologia crítica, sendo que sugerem a implementação de grupos reflexivos e/ou outras ações que possibilitem uma real transformação nas relações de gênero.

Sobre “O trabalho da masculinidade: exigências subjetivas da facilitação e da pesquisa em um grupo reflexivo para homens autores de violência contra mulheres”, Jan Billand e Pascale Molinier realizam uma pesquisa na linha da psicodinâmica do trabalho com profissionais homens que trabalham na facilitação de grupos de HAV. Este trabalho é relevante por trazer questões acerca da saúde mental dos profissionais que estão neste campo de trabalho – principalmente em relação aos questionamentos acerca de suas próprias condutas na sociedade – referente às suas masculinidades e violência de gênero, além de também fazer reflexões com os homens do grupo para a empatia aos direitos e demandas das mulheres.

No artigo de Marco Julián Martínez-Moreno, “O duplo registro do ‘gênero’ dos facilitadores de grupos reflexivos para homens autores de violência”, o autor avalia, a partir de pesquisa de campo realizada em um curso de capacitação para facilitação de grupos de HAV, dois registros de gênero relativos à dicotomia razão/emoção, sendo um primeiro referente ao ideal igualitário entre os sexos e o segundo quanto à diferenciação das ações sociais e emoções de homens e mulheres em função do lugar de agressor/vítima que ocupam. No decorrer de suas análises, o autor também faz algumas reflexões sobre temas como gênero, violência e dicotomia “vítima/agressor” dos profissionais que lidam com violência conjugal.

No artigo “Acompanhamento de homens autores de violência contra parceira íntima: um estudo de caso”, Anne Caroline da Silva e Elza Coelho observam que não há nenhum instrumento de avaliação dos programas que atentem a HAV validado no Brasil. Desta forma, realizaram uma adaptação de um instrumento internacional e o aplicaram em um núcleo de atendimento às famílias e aos autores de violência doméstica analisando-o como estudo de caso.

Roberto Amado, em “O que fazer com os homens autores de violência contra as mulheres? Uma análise sobre os serviços destinados aos homens processados pela Lei Maria da Penha”, apresenta como estão organizadas as políticas e programas direcionados aos homens autores de violência no Brasil desde a natureza dos serviços até equipe, capacitação, referencial teórico adotado, avaliação, público e aplicação e produção de documentos regulatórios destes programas. O autor faz um estudo geral dos serviços brasileiros, apontando os principais pontos de convergência e divergência em comparação com os serviços nacionais entre si e com serviços estrangeiros, fazendo críticas pertinentes durante suas análises no decorrer do texto.

O último artigo do livro, “Mensagem aos outros homens: a contribuição de ex-participantes do grupo reflexivo de homens”, escrito por Tales Mistura e Leandro Andrade, é resultado de uma pesquisa realizada com homens autuados pela Lei Maria da Penha que participaram de grupos reflexivos objetivando analisar os impactos gerados pelo grupo nestes homens. A partir da análise das entrevistas, os autores concluíram que a passagem pelos grupos reflexivos trouxe diferentes benefícios aos homens entrevistados.

Os artigos dispostos no livro trazem um aporte para pesquisadores e profissionais quanto aos aspectos da constituição da subjetividade masculina, especificamente no Brasil, interligando-os com autores como Bourdieu, Connell, Foucault e Butler.

É importante destacar que os artigos presentes no livro, apesar de conterem diversas abordagens teóricas, têm, em geral, uma perspectiva feminista. Tal perspectiva é possível ser identificada nas construções epistemológicas dos artigos iniciais e também demonstrada nas práticas dos grupos de homens autores de violência que a utilizam com certa obrigatoriedade. Quanto à utilização das perspectivas feministas nas intervenções com os homens neste contexto de violência doméstica e familiar, me parece serem fundamentais estas abordagens para um trabalho de ressignificação das relações de gênero que vise à equidade social e combate à violência contra as mulheres.

A partir da leitura do livro, é possível ter uma percepção da maneira como a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) foi construída e do seu funcionamento no sistema judiciário, não só quanto aos grupos de homens autores de violência, mas também da rede de atenção implicada no atendimento de homens e mulheres envolvidos em situação de violência. Em geral, oferece grande suporte teórico para as áreas de trabalho dos sistemas judiciários, da saúde e assistência social. Similarmente, contribui para demais pesquisas nas áreas das ciências humanas.

O livro traz conceituações e caracterizações das relações de gênero e suas relações de poder e hierarquizações, no entanto, não aprofunda, nas análises, sobre a questão da violência e como ela tem se estabelecido nas configurações da sociedade brasileira. Outra questão que também poderia ser abordada com profundidade é: há algum trabalho realizado com homens que cometeram crimes graves e/ou já tinham condenações por outros crimes? Isto visto que a maioria dos grupos apresentados nos artigos é composta por homens que cometem crimes leves e sem antecedentes criminais.

As pesquisas abordadas neste livro em geral ratificam a importância do trabalho com homens autores de violência além da punição judicial, destacando a eficácia dos serviços que utilizam métodos alternativos de reflexão e educação de gênero e sugerem o incentivo e ampliação de políticas públicas voltadas a esses métodos como forma efetiva de combate à violência de gênero.

Por trazer importantes contribuições para os estudos de masculinidades e violência de gênero, a obra possibilitou-me uma visão geral das teorias e práticas atuais que se tem utilizado no Brasil. Desta forma, torna-se uma leitura indispensável aos profissionais que lidam com este público, seja em pesquisas acadêmicas ou na atuação direta clínica ou psicossocial.


Referências

Beiras, A. & Nascimento, M. (2017). Homens e violência contra mulheres: pesquisas e intervenções no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Noos.

I Anna Beatriz Alves Lopes, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: annabeatrizlop@gmail.com

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