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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.58 São Paulo Aug. 2017

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

Conversando com famílias, adolescentes e suicídio

 

Bruno LenziI,  Carla Fernanda Bastos FerrariII

 


 

 

Este convite ao diálogo foi uma inspiração proporcionada pela repercussão da série produzida pela Netflix "13 reasons why" e o convite da revista para darmos voz às nossas práticas com adolescentes e suas famílias em situações de suicídio e violência. Vamos começar este documento com um resumo da série, como uma voz participante das discussões atuais e permeado por nossa reflexão teórica-socioconstrucionista e, para concluir, compartilharemos experiências de processos dialógicos em terapia construcionista.

Uma nova forma de falar sobre suicídio, desde o suicídio, como diria Shotter (1993), por um relato situational, que oportuniza um saber de dentro da experiência, nem sobre e nem por um motivo, mas pelo objetivo do conhecimento. Uma história em primeira pessoa, como pediria Adalberto Barreto1. Um compartilhamento de documentos narrativos através de fitas cassetes com o testemunho de Hannah, uma garota de 17 anos, que tirou a própria vida. Explora, em sua história, os participantes e acontecimentos que a levaram a construir a possibilidade do suicídio.

Em “13 reasons why” acompanhamos Clay, um adolescente de 16 anos, em uma jornada de entendimento do que levou a garota de quem gostava a tirar sua própria vida. Com a escuta de cada fita, Clay não consegue mais se calar perante as situações de violência na escola e toma atitudes na intenção de honrar a memória da amiga, enquanto conhece a complexidade da violência.

A experiência intensamente emocional destes 13 episódios convida para algumas reflexões que gostaríamos de compartilhar. O tema suicídio, abordado de maneira realista, sem romantização, sem lição de moral, apenas como uma possibilidade desesperada perdida nas profundezas da desesperança, é o grande catalizador da experiência na série. Mas podemos começar pensando no protagonista, Clay, um garoto introvertido e desajeitado socialmente, que havia vivenciado situações de bullying escolar, comprometido com seus estudos, ou, como os colegas o reconhecem: um nerd.

À medida que Clay escuta os relatos dos treze motivos, sua revolta cresce. Além da dor da vítima, podemos compartilhar o sofrimento de quem é testemunha de violência. A impotência experimentada leva a complexos sentimentos de resposta, muitas vezes, também violentos (seja consigo – através da culpa; seja com o outro – vingança, cobranças, culpabilização). Enquanto ouve as gravações de Hannah, Clay percebe diversas situações de bullying, rejeição e exposição vivenciadas por sua amiga. O garoto, com toda a impulsividade da adolescência, busca os participantes das fitas para puní-los e exigir compensação ao nome de Hannah.

Esta busca, inspirada pela raiva, coloca-o como autor de violência e os, outrora agressores, como vítimas. É perceptível o desenvolvimento da personagem quando esta se experimenta cada vez mais agressivo e insatisfeito com seus esforços, que o colocam em novas situações de violência, retroalimentando o ciclo.

Uma transformação ocorre quando, ao confrontar um dos participantes denunciados nas fitas, este pede que seja ouvido, pede por entendimento e voz. Esse movimento coloca o protagonista em um questionamento dos relatos ouvidos, mudando sua busca por vingança, para uma jornada pela verdade. Esse é um momento que convida à reflexão, quando podemos abrir espaço na nossa verdade, para conhecer a verdade do outro, possibilitando-nos um contato com a complexidade dos fenômenos; sempre há mais de uma descrição para o mesmo fato, sempre há mais informações que podemos conhecer para enriquecer nosso entendimento. Esses movimentos de busca pelo conhecimento que não temos, de aceitação do nosso não saber (Anderson, 2009), apresentam-se como um recurso para dissolver a violência em nossas ações, fruto de um conhecimento simplista, que culpa individualmente um pela dor de outrem. Como terapeutas construcionistas, compartilhamos de um relacionamento cético com a verdade. Entendemos como ela é subjetiva e aberta a interpretações ao longo do tempo, dependente do contexto e comunidade que a legitima.

A busca pela verdade coloca Clay em um lugar de grande frustração. Cada participante descreve uma verdade sutilmente singular, compreensível quando ouvida. Esse conhecimento não traz paz ao garoto, mas, sim, novas reflexões. Com maior conhecimento das verdades singulares, com respeito aos limites de quem ele encontra, Clay consegue, finalmente, dar nome àquilo que vai lhe trazer paz: a busca pela denúncia e interrupção da violência. O conhecimento adquirido com a escuta e o diálogo transforma a personagem, o que não quer dizer que ele não sofra mais, mas confere sentido, oportuniza uma ação potencializadora em sua comunidade. Esse tipo de transformação é conhecido nosso nas práticas clínicas: a possibilidade de novas formas de relacionamento com a vida e suas dores invoca esperança, criatividade e força para conversar com os nossos problemas.

Chegamos ao momento final da jornada de Clay. Com suas aprendizagens sobre a improdutividade da violência, sobre as verdades singulares e os relatos de impunidade, o garoto busca meios para revelar e denunciar os praticantes de violência, inspirando um movimento de sua comunidade em denunciar e assumir responsabilidade pelas ações individuais Deste movimento surgem novos pensamentos que podem ser compartilhados para facilitar diálogos e transformações sociais. Podemos não conseguir salvar a todos da violência, mas também podemos agir de forma a revelar e comprometer pessoas com a interrupção destas interações, para o desenvolvimento de novas e pacíficas formas de relação.

Ainda restam alguns conteúdos que acreditamos ser interessantes para reflexões construcionistas:

O ASPECTO SOCIAL DA VIOLÊNCIA

Ao longo dos episódios, podemos refletir quanto à complexidade do fenômeno: vítimas, autores e testemunhas são apresentados em seus contextos, evidenciando forças em ação que destacam a responsabilidade relacional (McNamee & Gergen, 1999) do fenômeno. Personagens têm diálogos internos que os questionam sobre o que é certo, seguro, ou como deveriam agir, mas a força das comunidades legitimadoras empodera vozes que valorizam a resposta violenta, ou marginalizam a autoproteção e denúncia, ou, mesmo, o reconhecimento da violência. Tudo isso permeado por uma cultura local da escola, ou do sistema escolar (como denunciado na série), que supervaloriza os atletas (alguns deles autores de violência) e submete todos os outros às suas vontades.

Há, ainda, a cultura maior, machista, que culpa a vítima pelas situações de violência, calando ou reprimindo quaisquer formas de denúncia e invocadora de constrangimento e silêncio pelas testemunhas. Fica evidente que o fenômeno não é causado por uma pessoa doente, ou má por natureza, mas por uma construção histórica e social que dá legitimidade àquelas ações; sem questionamento, ela é banalizada até alguém fazer um estranhamento e engajar um movimento comunitário de denúncia.


A CONSTRUÇÃO DA POSSIBILIDADE DO SUICÍDIO

Hannah apresenta todo o contexto que a levou a tirar sua própria vida. Ela não tem uma doença mental, nem sofreu violência por sua família. A série apresenta uma família afetiva e responsável, com uma filha que trabalha, tem amigos e bom desempenho escolar. O foco da trama está em como o isolamento social, a falta de entendimento e a constante repetição de agressões banalizadas levam esta menina à morte.

Ela começa sua narrativa com acontecimentos bastante banalizados de cyberbullying que, pouco a pouco, lhe conferem a identidade de "fácil" (adjetivo que comunica rapidez para encontros sexuais), afastando-a de interações e autorizando atitudes abusivas para com ela. O cyberbullying é o início. Então, com a identidade de “vadia” estabelecida, a violência sexual, os assédios, começam.

Hannah chega ao limite quando é testemunha de estupro e participante de um acidente fatal, mas não consegue agir de forma a impedir ambas as situações. Esse momento convida à reflexão de que não só a vítima, mas também a testemunha, sofre de culpa e impotência perante a violência. O resultado na personagem é um anestesiamento, uma desconexão consigo e com o mundo. Essa apatia coloca-a em nova situação de risco, dessa vez como vítima de estupro.

Nas suas próprias palavras, aquilo era o fim; ela daria “uma última chance à vida” ao pedir ajuda do conselheiro da escola. Mas, mesmo ali, quando ela faz um esforço final para denunciar e interromper a violência, eles não conseguem se entender com a conversa – um não entende o significado do outro e Hannah decide que não há ninguém que possa agir frente às suas denúncias. Algumas perguntas nos ocorrem: é possível para alguém que viveu esse nível de violência comunicar-se de forma a conseguir engajar outro na sua luta? Alguém tem culpa individual por Hannah se matar?

Acreditamos que essa seja a transformação proporcionada pela série: nem sempre conseguimos participar na construção de outros recursos e saídas mais esperançosas para a vida, mas essas experiências nos preparam para encontrar, ouvir e responder – numa prática withness – as/às próximas pessoas (Anderson, 2007). Com uma escuta mais atenta, com mais investimento nas relações, com a interrupção precoce da violência, com educação para relacionamentos de paz e mútuo desenvolvimento é possível termos um caminho e esperança.


INDIVIDUALISMO COMO SINTOMA

13 pessoas são os participantes mais ativos da história de Hannah. Cada um deles teve a oportunidade de agir de forma diferente e, talvez, ser uma conexão humana à menina. E o que houve? A reflexão que fica convida nosso saber construcionista e à crítica ao individualismo. Cada participante poderia ter refletido sobre a situação e escolhido o caminho pelo qual cada um deles precisaria se responsabilizar, enfrentar consequências, agir com sabedoria. Sem excluir Hannah, sem usá-la como bode expiatório, sem objetificá-la sexualmente, sem marginalizar sua voz, sem calar suas tentativas de participação social e pertencimento.

Nesta tragédia ficcional tão real, adolescentes e adultos escolhem o caminho mais fácil, o individual, protegem-se de repercussões em menor ou maior grau, desresponsabilizando-se das consequências para Hannah, fato evidenciado pelo constante uso das frases: "ela escolheu se matar", "foi uma escolha dela" etc. O resultado é fruto de um constante movimento individualista de culpar individualmente as pessoas pelo que vivem, de excluir os mais fracos e da descartabilidade dos relacionamentos. O foco deste paradigma está na minha segurança e conforto, mesmo à custa da exploração do outro, em uma fantasia de que "os fins justificam os meios" tem qualquer legitimidade. Sempre que essa for a verdade, estaremos inseridos em práticas de violência que corrompem o fim tão desejado.

É possível pensarmos uma realidade em que o relacionamento é priorizado nos momentos mais delicados? Em que as pessoas repensem e questionem seu bem-estar para incluir o bem-estar dos que o rodeiam? Em que não consigamos mais fazer uso da violência com a fantasia de que a vítima é culpada ou merecedora? Em que o diálogo e a participação social são os grandes recursos para a dissolução de conflitos?

Este é o compromisso que fica para nós após a história de Hannah e seus treze motivos para o suicídio. E, pensando nessas transformações, gostaríamos de compartilhar algumas ações que vivemos em nossas práticas que podem ilustrar ainda mais uma postura de presença radical, como diria Sheila McNamee (2015), que possa convidar vozes criativas na dissolução do suicídio e da violência como alternativa para resolução de conflitos.


O MEDO DE RECONHECER O SUICÍDIO COMO POSSIBILIDADE DE RESPOSTA

A primeira história que gostaríamos de compartilhar é de um atendimento a um adolescente de 17 anos, vítima de bullying. Esse processo inicia com muito silêncio por parte do garoto e muito medo por parte dos pais. Como terapeutas, colocamo-nos de forma a construir intimidade com nosso cliente a que atendemos junto aos pais, mas este formato o deixaria desconfortável de nos contar a história. Perguntamos à família se poderíamos falar a sós com o menino, para facilitar e respeitar o que ele percebia como mais convidativo à sessão. Eles entenderam e, muito disponíveis a facilitar para o filho, nos deixaram.

Este trecho fala da nossa postura de não saber, em respeitar o conteúdo da família e do rapaz; fala, também, da nossa responsabilidade como terapeutas de facilitar que o processo gere diálogo e respeito, quando pedimos uma avaliação do espaço e a construção da melhor configuração para que o cliente de expresse, tenha voz, legitime seu saber. Por fim, nos sentimos radicalmente presentes quando sentimos que o espaço está desconfortável para algum dos envolvidos e trabalhamos de forma a convidar os participantes à construção do formato da terapia.

Ainda neste caso, pudemos conhecer o menino para além do seu problema, curiosos por toda a sua singularidade e atentos a momentos marcantes (Shotter, 1993) que nos conectassem através de semelhanças, na busca de uma linguagem comum que facilitasse a interação.

Apenas depois de construída esta intimidade, conexão, ou presença radical, é que pudemos ouvir com qualidade o problema do cliente e que ele pôde nos contar seguro de sua experiência, como ele próprio nos disse: "não adianta falar aos meus pais, pois eles vão querer ir à escola fazer algo quanto a isso, o que só vai piorar as coisas". Pudemos ouvir e, com paciência, sem medo, sem impulsividade, começamos a pensar formas de proteção que fariam a diferença no cotidiano do rapaz. Ele disse que não iria à escola até a próxima sessão para pensar com qualidade. Os pais concordaram com este plano e ficaram surpresos por partir do filho um movimento de autoproteção. Eles haviam nos confidenciado que temiam que o filho pudesse se destruir sem lhes comunicar nada. Ele pôde tranquilizá-los que não deixaria chegar a este momento.

Com mais tempo de processo, a família construiu e verificou em terapia a possibilidade de interromper os estudos do filho, esperar por seus 18 anos, para ele completar o ensino médio no SEPU2, um recurso que já havia sido usado na família de origem. Havia medo das consequências, que foi rapidamente validado e conversado sobre em terapia. Nosso entendimento de medo é que, quando calado, ou reprimindo, nossos medos apenas crescem e começam a participar de forma inesperada, despreparada, das nossas decisões, nos colocando em situações ainda mais amedrontadoras, ou que confirmem o medo e o concretizem. Por este motivo, sempre convidamos o medo para ganhar palavras em terapia. Quando conhecemos o medo, ele pode participar com mais legitimidade das escolhas; não precisa tomar o controle, pode ser democrático junto às nossas outras vozes internas (Lenzi, 2013). Ao conversar com o medo desse recurso, a família fica mais confortável com a escolha e se prepara para responder as situações que o medo prevê, de forma a se preparar para a ação; de outro modo, eles poderiam congelar frente ao medo, sem possibilidade de resposta construtiva.

Esta foi uma experiência em que pudemos nos comprometer com o caso da família, facilitar formatos diversos da terapia e recursos criativos construídos pela família para a dissolução do conflito e proteção à vítima da violência. Hoje a família não mais entende o suicídio como possibilidade de resposta, nem teme conversar sobre a situação que invocou esta ação como recurso.


DEPOIS DAS TENTATIVAS DE SUICÍDIO, A CONEXÃO HUMANA 

Em uma roda de terapia comunitária ouvimos uma jovem adulta que havia tentado tirar a própria vida pela terceira vez, havia duas semanas. Ela narra apenas como foi na terceira vez, quando ela realmente quase morreu, que a família e a comunidade se mobilizaram para transformar esse recurso para resolução de seus conflitos. Ela nos conta de abusos e isolamento social, mas há um momento emocionante de conexão com a terapeuta com quem está iniciando seu processo individual, em que conversam sobre não saberem os caminhos futuros, mas que estarão juntas. A menina confessa que muitas pessoas falam para ela o que fazer para melhorar, que, com todo o seu esforço, não tiveram resultado significativo, mas que nessa conversa ela havia sentido que aquela pessoa não diria o que fazer, mas viveria com ela o processo de descoberta. Pudemos perceber a posição de vulnerabilidade que a terapeuta oferece e como a humildade e disponibilidade para viverem um processo juntas inspiraram esperança no discurso da cliente.

Nesse mesmo encontro, essa jovem oferece sua experiência para outro jovem adulto que começa a pensar no suicídio como recurso para resolução de conflitos. Com muita humildade, ela lhe diz que, quando passou por isso, ela se sentia muito sozinha e sem ninguém para entendê-la com calma e paciência, o medo sempre falava mais alto nas relações e aprisionava-na numa posição de não poder falar, pois as pessoas se assustavam e calavam-na com sugestões e orientações já conhecidas e inúteis. Ela o reconheceu por estar ali, no grupo, antes de tentar a morte. Ao final desta roda, esse jovem agradeceu e disse que sairia do encontro acompanhado pela comunidade.

Esse caso nos emociona com o poder transformador da comunidade e do diálogo. A história da jovem, sempre reprimida pelo medo, foi ouvida com interesse e respeito. Essa mesma história inspirou o relato do jovem rapaz, convidando a intimidade para abertura de conteúdos sensíveis. Sem sugestões ou orientações por parte de nenhum especialista, esse grupo se uniu para ouvir histórias de dor e se comprometer a, junto, construir novas formas de relacionamento com a vida e a criatividade para afastar recursos violentos a si ou a outrem, para resolução de conflitos.


Referências

Anderson, H. (2007). The Heart and Spirit of Collaborative Therapy. In: H. Anderson & D. Gehart (Eds.), Collaborative Therapy: Relationships And Conversations That Make a Difference (pp. 43-59). London: Routledge.         [ Links ]

Anderson, H. (2009). Conversação, linguagem e possibilidades: um enfoque pós-moderno da terapia. São Paulo: Roca.         [ Links ]

Lenzi, T. P. (2013). Personagens internos. Nova Perspectiva Sistêmica, 22(47), 86 - 98.         [ Links ]

McNamee, S. & Gergen, K. J. (1999). Relational Responsability. Resources for sustainable dialogue. Thousand Oaks, CA: Sage Publications.         [ Links ]

McNamee, S. (2015). Radical presence: alternatives to the therapeutic state. European journal of psychology and counseling. 17(4), 373 - 383.         [ Links ]

Shotter, J. (1993). Conversational Realities. Constructing life through language. London: Sage Publications.         [ Links ]

1 Idealizador da Terapia Integrativa Comunitária

2 CEPU - Centro de Estudos Pré-Universitário

I Bruno Lenzi, Psicólogo terapeuta dialógico, Instituto Movimento. E-mail: movimento@sistemica.com.br

II Carla Fernanda Bastos Ferrari, Psicóloga, policial civil.

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