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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

Visão quádrupla na prática: dados, teoria, intuição e a arte da terapia

 

Fourfold Vision in Practice: Data, Theory, Intuition and the Art of Therapy*

   

 

Hugh PalmerI

 

 


RESUMO

Este artigo descreve uma abordagem terapêutica inspirada tanto pela obra de Gregory Bateson, quanto pelo conceito “visão quádrupla” proposto pelo poeta e místico William Blake.
Uma visão quádrupla envolve o uso de dados, teoria e intuição em um processo estético. Ela propõe uma maneira de pensar os elementos da prática como sendo partes interconectadas e igualmente importantes de uma teia estética, mais do que partes ou domínios isolados que precisam ser agregados e encaixados numa estrutura formal e rígida.
De modo bastante significativo, esta abordagem oferece ao terapeuta meios de incorporar sua experiência interna – inclusive sua intuição – em um processo coerente que também envolve o uso de teoria e de dados de pesquisa. As quatro dimensões da visão – a visão quádrupla – interagem e criam um desdobramento iterativo. Mas não deixa de ser um tanto complicado se deslocar de partes e todos para relações e processos! Neste sentido, o artigo também apresenta um estudo de caso com o intuito de oferecer algumas pistas sobre como a visão quádrupla pode ser usada para informar e refletir na prática terapêutica.

Palavras-chave: Gregory Bateson; Epistemologia Cibernética; Estética; Terapia Sistêmica; Intuição; Identidade do terapeuta.


ABSTRACT

This paper describes the use of a therapeutic approach that has been inspired by the work of Gregory Bateson and the concept of ‘Fourfold Vision’ described by the poet and mystic, William Blake. The fourfold vision approach incorporates the use of data, theory and intuition within an aesthetic process. It offers a way of thinking about elements of practice as being equally important interconnected parts of an aesthetic whole rather than separate parts or domains that all need to be attended to in a formal or rigid structure.
Significantly, this approach offers a means of incorporating the inner experience of the therapist, including intuition, within a coherent process that also incorporates theory and data. The four ways of seeing interact to create an iterative unfolding. Conveying a shift from parts and wholes to relationships and processes is so tricky! A case study is provided that offers some signposts to how fourfold vision can be used to reflect upon and inform practice.

Key Words: Gregory Bateson; Cybernetic Epistemology; Aesthetics; Systemic Therapy; Intuition; Self of the Therapist.


 

 

How can I describe in words the complexity of it all?
Living in a world that is understood by reducing wholes to parts,
creating boundaries and bits and bobs,
a world of things, seemingly unconnected.
Walking through a thicket of pines; the ground soft, countless needles decomposing,
bracken and wood anemones, beetles and lichen,
the scent and sounds enveloping.
Stumbling upon an ant colony, a swarming mass of life,
seeming chaotic, but no... there is some order, even purpose, here
Mind written with a myriad of tiny creatures,
an ecology of relationships and communication.
Beautiful, messy and never fully known.
A world of ideas.
Yet these words are shifting sand by the sea; rain on a warm day.
Leaves falling on a lake,
drifting
away
Hugh Palmer, 2006


Introdução

Neste artigo aprofundarei a abordagem terapêutica (Palmer, 2014, 2016) derivada e influenciada pela vida e obra de Gregory Bateson. Há muito tempo tenho a sensação de que Bateson foi mal compreendido: um bom exemplo disto é a confusão em torno de sua crítica ao conceito de “poder” nas relações ou mesmo a sua visão geral do que é viver em relação, embora essas duas facetas da sua epistemologia cibernética estejam bem sintetizadas na conhecida frase “A natureza do mundo em que eu vivo, o mundo em que eu gostaria que vocês também vivessem – todos vocês... o tempo todo... mas nem mesmo eu posso viver neste mundo todo o tempo – tem momentos em que me pego pensando que existe um ‘algo’ separado de tudo mais” (Bateson, no filme de Nora Bateson  An Ecology of Mind, a Daughter’s Portrait of Gregory Bateson, 2012).

Na época em que Nora Bateson se encontrava em turnê de lançamento do seu filme, no início de 2012, recebi o convite de Gail Simon para fazer uma apresentação junto com ela, Imelda McCarthy e John Burnham. Seria uma conferência comemorativa do legado de Bateson para a prática sistêmica organizada por Bradford Relate. Eu pretendia pensar em uma abordagem terapêutica que fosse consistente com a epistemologia de Bateson. Ao mesmo tempo em que me sentia um tanto apreensivo com a empreitada, me encantava com o apoio e incentivo que recebia das outras pessoas envolvidas, e acabei me encontrando com Nora mais algumas vezes depois deste evento. Ela me ajudou a refinar meu pensamento – e também a manter distância de gráficos e mapas que extraem e separam componentes dos todos. Foi fascinante e também um privilégio conversar com alguém que não ‘aprendeu’ Bateson através dos livros, mas encarna muitas de suas ideias a partir deste lugar de filha, de uma experiência vivida.

Visão quádrupla

O desenvolvimento de minhas ideias deriva da leitura de um trabalho de Noel Charlton (2008) a respeito de como Bateson via a psicologia evoluindo em duas direções, humanista e circularista, sendo o caminho dos psicólogos uma solução de compromisso, uma composição entre dois tipos de prática; um fluxo constante entre intuição, explicação e descrição, cada um desses elementos informando o outro. Este “trabalho de composição” me pareceu uma forma muito útil de integrar distintos elementos em uma prática, e no momento em que Charlton sugere outros aspectos que podem ser igualmente importantes nesta composição, nas suas palavras: “Os lados humanista, cientista, artista e teórico são necessários para compor a unidade cibernética de cura” (p. 94), me lembrei de um fragmento de um escrito de William Blake, artista, poeta e místico considerado influência fundamental na obra de Bateson:

Agora eu em visão quádrupla vejo
E uma visão quádrupla é dada a mim:
Quádrupla, em meu deleite supremo
E tríplice, na noite macia de Beulah
E dupla, Sempre. Que Deus nos guarde
Da visão única e do sono de Newton.
Carta de William Blake a Thomas Butt,
22 de novembro de 1802.

A visão quádrupla de Blake foi analisada e discutida por críticos literários como Northrop Frye (1947) e, mais tarde, por Rose (1962). Ambos identificam a unidade inerente ao conceito de Blake: “Ou seja, quatro é na realidade um todo o tempo, para descrever uma percepção ilimitada ele afirma um paradoxo” (p. 173). Embora o conceito de Blake tenha muitos significados possíveis, inclusive passando por ideias religiosas e espirituais, o que realmente importa aqui é ver como essas diferentes dimensões da visão interagem. Cada uma tem o seu valor, mas a interação entre elas, que se materializa na visão quádrupla, nos permite mudar da perspectiva de domínios separados para uma forma mais holística de estar no mundo. Cada uma das quatro visões pode ser correlacionada aos componentes do que Charlton denominou unidade cibernética de cura, a saber: componente, humanista, cientista, artista e teórico. Blake nos oferece uma maneira de pensar que é consistente com a epistemologia cibernética de Bateson; conexão de rigor científico, teorias sistêmicas (dentre e outras) e nossas próprias intuições em um processo estético. Minha proposta é estruturar esta maneira de pensar em um formato que faça sentido e possa ser útil aos terapeutas, mesclando as quatro visões postuladas por Blake com as áreas da prática identificadas por Charlton.

Visão única

Blake se refere ao ato de ver com, não através dos olhos, como o “sono de Newton”, tão característico do modelo atomístico e reducionista do pensamento, cujo foco é sempre a relação linear de causa e efeito, o conhecimento racional, o material e o físico. Eis o domínio da ciência mecanicista, dados e evidência. A exortação de Blake para que “Deus nos guarde da visão única e do sono de Newton” lembra-nos dos perigos do pensamento puramente racional que exclui a intuição, o subconsciente, as dimensões estética e espiritual. Além de Isaac Newton, em outro lugar Blake postulou um personagem mitológico que também representa a visão única; trata-se de ‘Urizen’ (sua razão)1, o construtor dos “escuros moinhos satânicos” que talvez seja também uma interessante representação do que Bateson chamou de “propósito consciente” – quando a falta de imaginação dos avanços tecnológicos pode ter consequências desastrosas. Como observou Bateson, “Agora o homem consciente, que modifica o seu ambiente, é totalmente capaz de destruir a si mesmo e ao seu ambiente – com as melhores das intenções conscientes” (1972, pp. 445-446).

No entanto, detalhes e fatos são importantes na prática clínica; trabalhar com famílias requer que se tenha algum conhecimento de quem são seus integrantes e quais dificuldades poderiam estar enfrentando. Ferramentas de resultado, como por exemplo o índice SCORE-15 de funcionamento e mudança (Stratton, Lask, Bland, Nowotny, Evans, Singh  et al. 2013), podem, por vezes, ser úteis,  mensurar progressos e identificar dificuldades. Observar detalhes do funcionamento da família e seus membros é crucial para o desenvolvimento de hipóteses sobre o que poderia estar acontecendo no sistema, ao mesmo tempo em que oferece material para nossos diálogos, tanto internos quanto externos. A ideia de visão única encaixa bem com a concepção de Charlton do componente cientista que faz parte da unidade cibernética de cura. Em outras palavras, a racionalidade e o empirismo têm um lugar na prática clínica, conforme descrito abaixo:

Terapeuta Cientista
•    Possui habilidades de observador;
•    Faz descrições lineares, do tipo:

◦    Qual é o problema?
◦    Quem faz parte do problema?
◦    Quando acontece?
◦    Onde acontece?

•    Leva em consideração explicações “não sistêmicas” (isto é, deficiências, condições físicas de saúde).

Visão dupla

Para Blake, a visão dupla se refere a não apenas ver com os olhos, mas através deles; ver os contextos, associações, significados emocionais e conexões. Tem um elemento dialético neste tipo de visão – ver com e através dos olhos significa englobar o plano material e o relacional e ser capaz de acolher visões opostas. A nossa habilidade de apreciar conexões mais amplas com a natureza e o ambiente – que é inerente à visão dupla – assim como a inclusão do observador naquilo que é observado são propostas bastante familiares como característica da cibernética de segunda ordem. Na minha opinião, a dupla visão relacional encaixa muito bem tanto com o conceito do teórico sistêmico, quando pensamos em termos da teoria dos sistemas, bem como com a ideia da construção social de significados e realidades.

Terapeuta Teorizador
•    Observação consciente dos padrões dentro de um sistema familiar;
•    Causalidade circular;
•    Aspectos relacionais;
•    Teorização sistêmica (pensando sistemas);
•    Cibernética de primeira e segunda ordem;
•    Narrativas dominantes e narrativas secundárias (White & Epston, 1990).

Visão tríplice

Na descrição de Blake, este tipo de visão é como a “Noite de Beulah”, que simboliza nosso conhecimento sobre o uso que fazemos dos processos inconscientes, da memória e intuição. Segundo Eaves e Damon (1988), Beulah representa o domínio do subconsciente, a fonte de inspiração poética e dos sonhos. Blake incorpora a imaginação e criatividade do observador a esta visão tridimensional, abrindo as portas à inspiração que vem do inconsciente.

Paulo Bertrando (2015) corretamente nos adverte a mantermos uma cautelosa suspeita acerca de nossas intuições e emoções durante o processo terapêutico; elas podem ser como “facas de dois gumes”, por vezes conduzindo a grandes insights e conexões, mas também trazendo o risco de nos confundir e desorientar. No entanto, embora a empatia e a compaixão sejam qualidades bem conhecidas na prática terapêutica, e a ideia de uma prática responsiva encarnada vir recebendo cada vez mais atenção, talvez pouco destaque esteja sendo dado à intuição como elemento significativo da prática. Tom Andersen nos ofereceu uma descrição deste elemento como sua ‘estética’, um processo iniciado com abertura e sensibilidade, conduzido pelas intuições, que ele vai checando para ver se sente confortável com elas:

Da mesma forma que fico aberto e sensível ao que vejo, escuto, toco, provo e cheiro, posso observar as minhas próprias “respostas” a esses toques, uma vez que o meu corpo, “desde dentro”, me ajuda a saber de várias formas o que ele pensa sobre o que ele toca do exterior; o que precisa e o que não precisa ser tocado. Este estar aberto e sensível aos toques da “vida exterior” mantendo, ao mesmo tempo, abertura e sensibilidade às respostas que vêm da “vida interior”, é o que prefiro denominar “intuição”. A esta altura do meu trabalho, minha intuição é aquilo em que mais confio, o que mais me guia. Seguindo as pegadas do meu próprio percurso profissional, a intuição me diz que devo primeiro participar para depois sentar e refletir sobre esta participação e não o contrário, sentar e pensar primeiro e depois participar. Como estou certo de que meu pensamento estará comigo enquanto participo, sinto-me confortável em seguir o que a minha intuição vai sugerindo. (Andersen, 1992, p. 55)

Na visão tríplice é igualmente importante sermos simplesmente ‘humanos’ com nossos clientes. Ao observamos o trabalho de Bateson diretamente com pacientes e suas famílias ao longo de quase dez anos, encontramos evidências de que suas interações eram marcadas por uma dose considerável de empatia e intuição (Lipsett, 1980). Ele também destacava a importância de terapeutas e médicos serem ‘humanos’ com seus pacientes (Bateson, 1961).

Assim, fiz uma leitura da visão tríplice de modo a incorporar a noção do terapeuta humanista de Charlton, aquele que fica em contato com suas emoções e respostas internas às situações, sendo capaz de oferecer empatia e compartilhar, com discernimento, suas próprias vulnerabilidades.

Terapeuta Humanista
•    Dimensão humana – qualidades de acolhimento e compaixão;
•    Empatia;
•    Conexão com experiências pessoais e intuições, aspectos encarnados da prática;
•    Uso terapêutico do self do terapeuta;
•    Exposição e transparência.

Visão quádrupla

Blake descreve o prazer de poder exercitar as visões única, dupla e tríplice, mantendo na vida cotidiana uma constante visão dupla. Assim, a visão quádrupla seria a interação da visão única, da visão dupla e da visão tríplice; poderia ser pensada como uma maneira estética e sistêmica de pensar que utiliza informações, teoria e intuição.

Shotter (2006), que foi bastante influenciado por Andersen, faz alusão a ver através do olho como parte do que descreve como pensar “com”, que poderia ser uma nova perspectiva do que Blake imaginou como visão quádrupla:

Um tipo de interação que dá origem não a uma visão visível, uma vez que o que é “sentido” é invisível; nem dá origem a uma interpretação (de uma representação), pois nossas respostas ocorrem espontaneamente e diretamente em nossos encontros vivos com outras expressões. Não é, tampouco, apenas um sentimento, porque, à medida que a interação vai acontecendo, traz consigo um sentido corporal das possibilidades abertas para a ação responsiva em relação a uma colocação momentânea, a uma posição ou a uma orientação. Em vez disso, dá origem a um sentido modelado e vetorial de nosso envolvimento em transformação com aquilo que nos rodeia a cada momento – engendrando tanto antecipações únicas sobre o que poderia acontecer em seguida, em outras palavras, “orientadores de ação”, até antecipações quanto ao que esperar a seguir em relação às ações que podemos tomar. Em suma, podemos ser espontaneamente “movidos” para possibilidades específicas de ação neste tipo de pensamento. (Shotter, 2006, p. 600)

Penso em uma visão quádrupla como um processo hermenêutico pelo qual nos deslocamos repetidamente entre detalhes, contextos e relacionamentos, onde esse deslocamento contínuo é informado por nossas intuições, respostas corporais e experiências passadas, orientando múltiplos focos de interesse e atenção. O significado da visão quádrupla é de uma relação entre formas alternativas de ver o mundo; não há hierarquia aqui; visão única, dupla e tríplice são igualmente elementos vitais de um todo maior e estético que emerge de sua interação, e isso alinha bem com a ideia do terapeuta artista de Charlton como parte da unidade cibernética da cura.

Terapeuta Artista
•    O prazer estético e a arte em trabalhar com dados, teoria e intuição;
•    Identidades do terapeuta e da família localizadas e teorizadas em contextos cada vez mais amplos;
•    Pensamento de “estar com”, ou pensamento sistêmico (Shotter, 2006, 2008).
•    Mudança de níveis de abstração do detalhe ao contexto e vice-versa;
•    Mistério;
•    Momentos brilhantes;
•    Estar aberto a ser afetado e transformado pela relação.

Esses quatro tipos de “visão” não são nem sequenciais nem hierárquicos. Com efeito, a visão quádrupla consiste em ir tecendo, a partir do tempo e da experiência, uma rica trama que contém uma miríade de diferentes pontos e padrões.

Se por um lado encontramos claramente alguns paralelismos com outros modelos e abordagens, como, por exemplo, a CMM (Pearce & Cronen, 1980), domínios de produção, explicação e estética (Lang, Little, & Cronen, 1990), aproximação, método e técnica (Burnham, 1992), o self do terapeuta é mais plenamente incorporado dentro da visão quádrupla e cada uma das quatro dimensões da visão faz parte de um desenvolvimento interativo – como uma estética de interações emergentes entre as informações que chegam, as teorias e relações que se desenvolvem e as respostas do terapeuta.

Mais recentemente, Nora Bateson (2016) descreve o que chama de “symmathesy” – entidades que se constituem ao longo do tempo por processos de interaprendizagem contextual através da interação. Ela até oferece alguns exemplos de symmathesy como uma floresta ou uma família, mas prossegue falando das dificuldades de se pensar essas entidades em termos de “todos” e “partes”; inevitavelmente perdemos a integridade contextual. A visão quádrupla, por sua vez, oferece um caminho para que terapeutas participem e apoiem seus clientes (e a si mesmos) em processos de interaprendizagem. “Vista como uma symmatehsy, uma pessoa ou uma família está aprendendo a entender seu mundo. Uma vez que os corpos, processos emocionais, mentais e interacionais estarão todos incluídos em formas (não necessariamente conscientes) de calibrar o mundo – podemos dizer que toda doença é uma forma de aprendizado” (Bateson, 2016, p. 190).

Visão quádrupla na prática clínica

Na unidade de internação onde trabalho escuto o relato sobre um jovem recentemente admitido em uma das reuniões da Equipe Multidisciplinar. Geralmente, o que é apresentado é uma visão muitas vezes focada no diagnóstico e na queixa apresentada no momento da internação. Normalmente preciso perguntar sobre o contexto familiar e sobre quais foram as impressões da equipe sobre a família. Estar em uma agência como essa apresenta o desafio de estar dentro da equipe e ao mesmo tempo estar separado; a tarefa de ocupar múltiplas posições. Isso é importante, pois é muito fácil cair na armadilha de uma visão única compartilhada – o mundo linear da certeza e do diagnóstico, da culpa e da explicação. Uma das maneiras que tenho para administrar isso é fazer perguntas e permanecer curioso sobre o contexto que levou à internação. Em muitos casos, a necessidade de internar um jovem já pode ser indicativa de grande complexidade familiar. Outro aspecto do atendimento a famílias com parente internado numa instituição de saúde mental é o sentimento de obrigação a participar dos encontros de terapia familiar. Existem situações em que essas famílias chegam a ser informadas de que sua participação nas atividades terapêuticas é uma das pré-condições para a admissão na unidade, o que faz com que acompanhem o tratamento com  relutância e irregularidade por medo de sanções.

A primeira vez que estou com uma nova família, quando entram na sala de atendimento ou quando os encontro na recepção, todos os meus sentidos e curiosidade são tomados pela “novidade” da situação, além das preocupações usuais com os aspectos práticos (Visão Única): Quem veio para a terapia? Será que o espaço terapêutico será útil para eles?

Vou então absorvendo as imagens, sons e cheiros, bem como minhas respostas internas a esses novos estímulos (Visão Tríplice). Como eles se apresentam, como estão vestidos? Que associações, eu poderia fazer? Como eles olham para mim, como se olham entre si? O que eu posso compreender a partir desses olhares? Jaakko Seikkula (2008), inspirado em Bakhtin, sugere que nosso autoconhecimento torna-se possível quando nos miramos através dos olhos do outro; às vezes este contato visual inicial com os membros da família suscita respostas internas bastante fortes em mim. Muitas vezes ternura, às vezes preocupação, talvez vendo e aprendendo sobre mim mesmo no olhar dos outros. Algumas questões já começam a se formar na medida em que os meus sentidos e as respostas internas ao que os sentidos captam vão sendo processados.

Convido-os a se sentarem onde quiserem na sala. Eles se acomodam. Eu paro e percebo a sensação de que o aposento está sendo preenchido, de que estamos ocupando o espaço. Observo como e onde cada um está sentado, as posturas, proximidades e distâncias, as trocas de olhares. Por vezes me dou conta de uma sensação de tensão no meu corpo, uma boca seca... Eu desejo muito que esse encontro seja proveitoso para eles. Todos me olham, esperando que eu fale. É comum, neste momento, eu me sentir momentaneamente inseguro ou mesmo com um pouco de medo, e sinto nos ombros o peso de minhas próprias expectativas e das coisas que imagino para esta família.

Normalmente, começo me apresentando e apresentando a equipe e convido-os a se apresentarem também. Como não dispomos de sala com espelho ou outros dispositivos de observação, a equipe  senta-se na mesma sala, junto com a família. Oferecemos uma visão geral de como trabalhamos, incluindo o uso da equipe reflexiva, questões de confidencialidade, verificamos se a família gostaria de nos fazer perguntas. Enquanto todo este trabalho inicial está em andamento, continuo monitorando as respostas verbais e não verbais da família, suas interações entre si e comigo, junto com minhas próprias reações internas a essas interações.

Mais uma vez, faço uma pausa. Em parte para me permitir um tempo para processar as respostas da família e também para lhes oferecer algum espaço para refletir. Este é o momento para a visão quádrupla. Os próximos passos não serão inteiramente orientados por uma teoria ou pelas informações básicas sobre o caso, tampouco serão totalmente guiados pelas relações familiares, por padrões comunicacionais ou pela minha experiência interior, mas pelos três; as decisões tomadas agora são estéticas.

Algumas opções que eu poderia considerar incluem o engajamento numa conversa “livre de problemas” (Iveson, George, & Ratner, 1999), com o intuito de favorecer o vínculo terapêutico, descobrir mais sobre a família – interesses, histórias que podem se transformar em metáforas úteis para as mudanças mais adiante para identificar objetivos comuns e formas de expressão apropriadas. 

Posso, por exemplo, perguntar à família sobre o que gostariam de discutir, como gostariam de usar o tempo conosco, pois isso ajuda a explicitar as questões consideradas importantes para eles. Esta é uma boa oportunidade para usar perguntas circulares. É uma alternativa que reconhece e valida o fato de as pessoas geralmente quererem usar a terapia para falar sobre seus problemas e ajuda a manter o foco nas necessidades da família, e não nas do terapeuta ou da instituição.

Outra opção é manter uma posição de curiosidade sobre a história da família, talvez usando o genograma como ferramenta terapêutica, o que teria a vantagem de ajudar a demonstrar interesse em todos os membros da família e não apenas no “paciente identificado”, além de oferecer uma valiosa oportunidade para explorar padrões transgeracionais (Byng-Hall, 1995). Certamente que não se trata aqui de um protocolo ou lista exclusiva de alternativas; a forma como cada terapeuta pode optar para avançar depende do seu uso de uma visão quádrupla, e isto será, por sua vez, influenciado e moldado pela sua experiência, pelos requisitos da instituição, pelo significado que atribui à família, pelos contextos socioculturais mais amplos que compartilha.

A partir desse momento, tendo começado a sessão, os eventos seguirão seu próprio ritmo; o terapeuta agora faz parte de um processo único, dinâmico e em evolução. O exemplo apresentado a seguir, extraído de um atendimento clínico a uma família (cujos nomes foram alterados para garantir a confidencialidade e manter o anonimato), tem o propósito de ajudar a ilustrar essa abordagem; contudo, devido à interação recursiva entre as diferentes visões, seria impossível (e contraditório) categorizar formalmente as diferentes “visões” dentro desta narrativa. Feita a ressalva, algumas sinalizações ao longo da narrativa serão feitas por mim, sempre convidando o leitor a se conectar com seus próprios pensamentos e sentimentos à medida que lê, entrando em contato com as conexões que faria, com as direções que poderia ter tomado e assim por diante.

Exemplo clínico

Melanie, adolescente de 14 anos, foi internada em uma unidade do Serviço de Saúde Mental da Criança e do Adolescente (CAMHS) devido ao seu peso muito baixo como resultado de anorexia nervosa. Além do transtorno alimentar, ela havia sido vítima de pedofilia na internet, tendo sido assediada por um homem mais velho que, no momento da internação, estava sendo processado por organizações de combate à pedofilia on-line. Embora a anorexia tenha precedido o assédio, esses últimos eventos foram muito angustiantes para Melanie. No ano anterior, sua irmã mais velha, Gemma, de 19 anos, havia sido diagnosticada com a síndrome de Asperger e seu comportamento estava na origem de muitos conflitos familiares mesmo antes do diagnóstico. A mãe, Rebecca, encontrava-se de licença, por motivo de saúde, da escola onde trabalha, e o pai, James, deficiente visual e trabalhador autônomo, enfrentava uma jornada de trabalho bastante extensa todos os dias. As informações até aqui são do domínio da visão única. 

Ter acesso a essas informações poderia, contudo, facilmente levar a teorias sobre o que estaria  acontecendo nessa família (por exemplo, em termos de estrutura familiar e fronteiras ou em termos de narrativas dominantes), bem como a algumas respostas humanas de empatia, considerando os desafios que a família enfrentava e as conexões pessoais do terapeuta com essas dificuldades.

A primeira sessão de terapia familiar contou com a presença de toda a família e dava para notar o desconforto que todos deixavam transparecer. Melanie, pálida e com olheiras, vestindo roupas escuras e soltas, se sentara no canto de um sofá; James, sentado ao lado dela, trajava camisa social e gravata apesar do calor, enquanto Gemma e Rebecca sentaram no outro sofá. Gemma parecia desconfortável, muito ereta e parecendo evitar contato visual com qualquer um. Rebecca parecia alerta, mas dando a impressão de estar ansiosa.

Meu sentimento inicial era de apreensão. Como todos pareciam pouco à vontade e era uma sessão inicial, decidi começar explicando o processo de terapia familiar dentro da unidade e apresentando a equipe. Olhando retrospectivamente, talvez eu devesse ter me perguntado mais sobre essa sensação de apreensão e ficado mais curioso sobre a percepção dessa sensação pela família. Compartilhavam esta apreensão? Quem se sentia mais apreensivo/apreensiva? Naquele momento, meu (tríplice) insight era que aquela família precisava de um pouco de tempo para se acostumar com o contexto e que talvez uma pequena estrutura fosse mais útil para eles se orientarem na nossa sessão, ao invés de perguntas circulares. Agora, quando penso nisso, talvez esta decisão tenha sido uma escolha quádrupla e estética, uma resposta ao senso geral de desconforto.

Dando prosseguimento às formalidades (visão única), perguntei o que a família percebia sobre não ter Melanie em casa. Fazer uma pergunta circular naquele momento pareceu conveniente; perguntar aos membros da família sobre alguém que atualmente não está em casa pode ser reconfortante para essa pessoa, que pode gostar de saber que sentem sua falta. A princípio, esta decisão pode resultar de ideias orientadas pela teoria da circularidade (visão dupla), mas pode também ser uma condução padrão em terapia familiar de pacientes internados. No início Rebecca falou mais do que os outros; sentia falta dos pratos que Melanie preparava no forno, de sua ajuda na casa e dos momentos em que se sentavam para assistir à televisão juntas. Notei que Melanie olhava para a mãe e sorria enquanto ela dizia essas palavras. Então, com algum encorajamento, Gemma falou um pouco sobre seu trabalho em um pequeno supermercado e sua esperança de poder realizar um curso de puericultura na universidade. Fiquei curioso por Gemma não ter mencionado que sentia falta de Melanie, mas antes que pudesse perguntar mais, Rebecca contou que Gemma e Melanie tinham um relacionamento muito difícil. Curioso sobre este relacionamento das irmãs, perguntei se isto seria algo que gostariam de melhorar e Gemma imediatamente assentiu. Melanie, no entanto, encolheu os ombros e olhou para o chão. Neste ponto da sessão eu já tinha reunido algumas informações úteis (visão única); a proximidade de Rebecca com a filha mais nova, a distância aparente entre as duas irmãs, onde uma delas gostaria de melhorar o relacionamento, porém a outra parecia ambivalente. Essas informações me levaram a uma teorização interna (dupla) sobre a estrutura da família em termos de proximidade e distância entre os membros e uma intuição (tríplice) de que a relação problemática das filhas poderia ser mais complexa e que era muito cedo para mais perguntas sobre este relacionamento. Em vez disso, pensando num engajamento múltiplo (Real, 1990), senti que poderia ser útil atrair James para a conversa.

James falou sobre seu trabalho, que lhe exigia muitas horas de dedicação; normalmente ele trabalhava doze horas, seis dias por semana. Apesar disso, disse que procurava manter o hábito de se reunir com a família à noite e tentavam fazer as refeições juntos sempre que possível. Percebi que algumas vezes James se voltava para Melanie e colocava o braço em torno dela, sussurrando coisas ao seu ouvido; aparentemente tentava atraí-la para a sessão, embora Melanie não respondesse e parecesse desconfortável.

A esta altura eu havia conseguido muitas informações, não só sobre os membros da família e algumas conexões entre eles, mas também sobre minhas próprias respostas internas e pensamentos. Fiquei curioso sobre a relação entre as duas irmãs e também em como (talvez por minhas próprias inclinações estruturalistas iniciais) o pai e a mãe se apoiavam mutuamente a partir das longas horas de trabalho do pai. Avaliei apreciativamente os muitos desafios que a família havia enfrentado e ainda estava enfrentando.

À medida que a sessão progredia, notei como minha apreensão inicial ia diminuindo, embora ainda me sentisse tenso em relação ao estado geral de alerta da família, o que não era surpreendente tendo em vista o contexto.

Na nossa segunda sessão, cerca de três semanas depois, percebi que estava bem menos ansioso em trabalhar com eles e me perguntei se isso se dava porque eles também pareciam mais relaxados quando se juntaram a nós para este segundo encontro. Comecei reconhecendo os momentos difíceis que haviam passado naquele período, já que Melanie havia ferido a si mesma. Rebecca falou sobre o quanto tudo era estressante e imprevisível, mas também observou que Melanie tinha estado mais aberta na semana anterior. Eu observava que Rebecca se posicionava como a porta-voz da família, ela parecia mais disposta a se engajar e conversar, e eu me perguntava o quão influente ela seria dentro do sistema familiar – será que ela havia escolhido ser a porta-voz ou teria sido colocada nesse lugar pelos outros membros da família? Minha sensação (tríplice) de ansiedade diminuída pode ter sido uma resposta ao desejo de Rebecca de ser mais falante.

Sentindo-me mais confiante, seguindo a fala de Rebecca sobre a imprevisibilidade da filha, expressei minha curiosidade sobre como os desafios usuais da vida cotidiana se juntavam aos obstáculos adicionais apresentados pelos problemas que a família enfrentava. Rebecca respondeu que a vida deles estava uma “confusão” naquele momento, mas tinha esperança de que isso iria melhorar aos poucos, e falou de alguns marcos que ela antecipava, incluindo Melanie recebendo alta e o processo judicial contra o pedófilo sendo resolvido, assim como algumas outras questões familiares. Cheguei a pensar em usar uma escala de resolução de problemas a partir dos marcos mencionados por Rebecca, mas não tinha certeza de que os outros membros da família compartilhassem esses objetivos.

Meus pensamentos (duplos) sobre o foco na resolução de problemas e o desejo de envolver outros membros da família levaram-me a perguntar sobre outros lugares onde Melanie preferiria estar. Analisando retrospectivamente, talvez tenha acontecido uma virada razoavelmente estética (quádrupla), enquanto Melanie falava com animação sobre a Flórida e o Siam Park em Tenerife. Gostei de ouvi-los falando dos momentos felizes que a família havia passado nesses lugares. Essa conversa animada foi uma mudança considerável e senti minha confiança aumentar.

Melanie mencionou ter visitado o Parque de Harry Potter na Flórida e se revelou uma fã de carteirinha de tudo o que tivesse a ver com as histórias de Harry Potter. Tendo eu mesmo algum conhecimento dessas histórias (tríplice), senti uma onda de entusiasmo, esperando que, talvez, essas histórias ricas pudessem levar a alguma metáfora útil sobre as dificuldades da família. Começamos a conversar sobre Harry Potter e eu fiz perguntas animadas sobre as diferentes casas de Hogwarts em que os membros da família poderiam estar. Foi a segunda tentativa de usar a circularidade, e admito que fiquei um pouco desapontado com o fato de não ter despertado muito interesse. A família se entreolhava e ninguém dizia nada. Fiquei confuso com a mudança da conversa animada para um silêncio constrangedor e a minha resposta interna (tríplice) era uma sensação de que algo não estava adequado para a família, embora na época não tivesse certeza sobre o que poderia ser. Em retrospectiva, este uso particular de circularidade era arriscado, uma vez que uma das Casas (Sonserina) tem conotações negativas e a resposta moderada da família pode ser proposital para proteger Gemma de ser apontada como o único membro de Sonserina. No entanto, naquele momento da terapia não havia ainda muitas conversas sobre as diferenças de Gemma, que iriam surgir mais tarde. Apesar do meu desapontamento, senti que ainda valia a pena ficar com o tema de Harry Potter, já que isso claramente instigava Melanie. Não posso afirmar que tenha acontecido uma mudança estética e quádrupla no momento em que propus que a anorexia de Melanie seria como um “dementador” ou como Lord Voldemort (para aqueles não familiarizados com as histórias de Harry Potter, Voldemort é o vilão e os dementadores são criaturas horríveis que roubam das mentes humanas felicidade e inteligência). Melanie respondeu que a anorexia estava em algum lugar entre os dois, e nomeou-a “Voldementador”. Contudo, após uma breve conversa em família sobre o impacto de Voldementador sobre todos eles, Melanie começou a se mostrar desinteressada e cansada. Voltando então minha atenção para os pais de Melanie, conversamos sobre a natureza transformadora das histórias de Harry Potter e o desafio de atravessar lugares sombrios para depois ressurgir transformado (há links claros entre a saga de Harry Potter, de J. K. Rowling, e os temas de alquimia e transformação, familiares para os leitores de Jung). Ambos indicaram que talvez algo bom pudesse emergir dos tempos sombrios que estavam atravessando.

Quando chegávamos ao final da sessão, o diálogo sobre as relações entre anorexia e transformação ofereceu uma oportunidade a James para falar de como ele não entendia completamente a condição de Melanie e sua luta para saber como ajudar;ao mesmo tempo, ele reconhecia claramente seu orgulho pelo progresso da filha. Fiquei feliz por ele ter sido capaz de compartilhar suas vulnerabilidades naquele momento, sobretudo porque já havia expressado anteriormente algumas dúvidas com relação à terapia familiar. Melanie o ouviu atentamente. Solicitei que a família avaliasse a sessão (visão única) e o consenso foi que tinha sido útil, mas que talvez fosse ainda difícil porque não enxergavam resultados claros, embora estivessem esperançosos; um sentido de direção começara a surgir.

No início do nosso terceiro encontro, apenas os pais estavam presentes. Melanie estava no lanche e Gemma havia viajado sozinha e não tinha retornado ainda. No início da sessão tivemos uma breve conversa sobre as pressões dentro da família, incluindo a falta de apoio quanto ao diagnóstico de Asperger de Gemma, o impacto da deficiência visual no trabalho de James e a saúde mental de Melanie. Rebecca começou a fazer muitas críticas à Gemma, dizendo que mal podia esperar até o momento de a filha mais velha sair de casa. Ela ainda estava compartilhando sua exasperação com relação à Gemma que, segundo ela, não colaborava nas tarefas domésticas, quando foi interrompida pela chegada de Melanie. Neste momento Rebecca mudou a conversa para falar sobre suas esperanças para o futuro e todos concordaram que gostariam de ter alguma normalidade de volta, como poder viajar em família.

Eu estava tentando processar esta informação (visão única), especialmente porque me senti  incomodado (tríplice) pela dureza de Rebecca em relação à Gemma, quando Gemma chegou. Ela havia trazido um presente para Melanie, lindamente embrulhado, e o entregou à irmã. Melanie desembrulhou calmamente o presente, enquanto Gemma (seguindo minhas dicas) explicava como  tinha escolhido a loja e o presente (um bicho de pelúcia), personagem de um filme que ela sabia que Melanie gostava. Fiquei impressionado com o quanto Gemma se dedicou a encontrar o presente, e comentei sobre isso, perguntando se os outros membros da família haviam notado a delicadeza de seu gesto.

O contraste entre meus sentimentos internos de incômodo diante da dureza de uma mãe com sua filha e minha resposta à delicadeza que essa filha havia demonstrado ao escolher um presente para sua irmã era grande. A tentativa de manter essas duas perspectivas tão diferentes (visão dupla) fazia a minha cabeça girar. Sentia que algo importante estava acontecendo, mas não conseguia expressar minha raiva ou outro sentimento sobre o que acontecia.

Rebecca e James pareciam genuinamente surpresos com o presente de Gemma, e eu senti que valia ampliar este sentimento naquele momento. Perguntei à Gemma sobre sua preocupação e cuidado com Melanie, e ela contou que vinha fazendo pesquisas sobre tratamentos para transtornos alimentares e descobriu que a terapia familiar apresentava as melhores evidências, então queria participar mais das conversas, apesar de se sentir pessoalmente limitada em participar de conversações. Depois de mostrar minha apreciação pelo seu empenho, decidi continuar perguntando se Gemma achava difícil entender os aspectos emocionais da anorexia; qual havia sido sua própria experiência?

Gemma falou sobre as dificuldades que tinha com a Síndrome de Asperger, contando-nos como alguém uma vez a tinha chamado de “robô”; falou de sua sensação de ser diferente e as verdadeiras lutas que tinha que travar para compreender problemas emocionais. A anorexia era algo estranho para ela. No entanto, ali estava, empenhada em ajudar sua irmã e trazendo um presente cuidadosamente escolhido, apesar das diferenças significativas entre elas.

E então aconteceu algo que realmente me impactou. Melanie, depois de ouvir atentamente a irmã e parecendo genuinamente surpresa com a preocupação e o interesse de Gemma, estendeu sua mão e as duas se deram as mãos. Senti uma onda de emoção (tríplice), embora Rebecca, aparentemente ainda não consciente do que acontecia na frente dela, começasse a falar dos problemas em casa. Eu a interrompi gentilmente, perguntando se havia notado que suas filhas estavam de mãos dadas. Rebecca e James olharam, a sala ficou em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, quando notei  as lágrimas lentamente brotando em seus olhos. Os dois, pai e mãe, testemunhavam a conexão de suas filhas. Parecia que, momentaneamente, todo o universo ficava em suspenso e senti uma  incrível comunhão com a família; um momento de visão quádrupla, pungente e emocionante.

Comentário

Refletindo sobre a terapia descrita acima, acredito que minha própria experiência de ter crescido com uma irmã mais velha com Asperger (assim como outras dificuldades de aprendizagem) e talvez uma sensibilidade particular para diferentes maneiras que as pessoas encontram para expressar cuidado e afeto tornaram-se fundamentais para mim. Tendo tido alguma experiência pessoal com terapia junguiana. Desenvolvi um interesse pelas ideias de Jung com relação à transformação e esses foram elementos importantes nas escolhas dos focos de atenção durante as sessões, junto com outras influências pessoais, profissionais, educacionais, teóricas e políticas, todas as quais, em maior ou menor grau, orientam meu pensamento e ação responsiva.

Em termos de teoria, embora me considere principalmente “colaborativo e dialógico” na minha prática, a partir de uma perspectiva de terapia narrativa seria fácil teorizar e identificar narrativas dominantes e alternativas sobre as irmãs e suas relações. Do ponto de vista estrutural, o relacionamento parental é interessante; o pai trabalha muitas horas para garantir a renda enquanto a mãe luta para tentar lidar com duas filhas com necessidades muito diferentes – isto poderia afetar a estrutura da família e seu funcionamento executivo.
Ampliando o foco, existem vários contextos em jogo aqui: uma internação em unidade de saúde mental, a família e suas conexões; trabalho, deficiência, adoecimento, família ampliada e comunidade. Contextos ainda mais amplos seriam os recursos culturais que Bourdieu (1990) nomeou como “habitus”, que descrevem como a cultura de um grupo social particular é socializada e então encarnada (internalizada) nos indivíduos; e também o que ele descreve como “doxa”, os pressupostos compartilhados que decorrem desse habitus cultural. Neste sentido, tanto a família quanto eu somos brancos, britânicos e de classe média, o que indica que podemos compartilhar hipóteses que podem não ser imediatamente evidentes; existem pontos cegos potenciais que poderiam ser questionados e dialogados, caso fossem apresentados.

Claro, existem contextos e discursos ainda mais amplos, societais e globais, dos quais fazemos parte. Por exemplo, na Inglaterra, há uma cultura bastante patriarcal e conservadora que valoriza o trabalho árduo e é intolerante à diferença.


Conclusão

Este artigo foi uma tentativa de articular uma abordagem em terapia familiar consistente com o que Gregory Bateson descreveu como epistemologia cibernética; um mundo de ideias e relações que era evidente tanto em seus escritos quanto nas suas interações pessoais. É importante enfatizar que não existe um certo ou errado em relação ao conceito de visão quádrupla – trata-se simplesmente de uma maneira de pensar sobre elementos de prática que são igualmente importantes e interligados. Não são domínios que precisam ser completamente atendidos e contemplados em uma estrutura formal ou rígida.

Em uma época em que “questões objetivas” e práticas baseadas em evidências parecem tão importantes para as agências de saúde, uma visão quádrupla oferece a oportunidade de satisfazer essas necessidades e ainda trabalhar com graça, endereçando as necessidades da família e do seu próprio self como terapeuta. Talvez as melhores palavras finais sejam as de Bateson:

É possível, no entanto, que o remédio para os males do propósito consciente esteja no indivíduo. Existe o que Freud chamou de caminho real para o inconsciente. Ele se referia aos sonhos, mas acho que podemos acrescentar aos sonhos a criatividade artística, ou a percepção artística, a poesia e coisas assim. E eu incluiria ainda o melhor da religião. Estas são atividades em que o indivíduo como um todo está envolvido. O artista pode ter uma intenção consciente de vender sua obra, talvez até o propósito consciente de fazê-lo. Mas, no processo de criar sua obra, ele precisa abrir mão de sua arrogância em favor de uma experiência criativa na qual a mente consciente desempenha apenas uma pequena parte. Podemos dizer que, na arte criativa, o homem deve experimentar a si mesmo – seu eu total – como modelo cibernético. (Bateson, 1972, pp. 445-446)




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* Artigo originalmente publicado (2017) em Human System: The Journal of Therapy, Consultation & Training, 28(1), 21-39.

 

1 Trata-se de um trocadilho não traduzível para o português; Urizen se pronuncia de forma muito semelhante a ‘your reason’, ou seja, ‘sua razão’ (N.T.).

I Terapeuta Sistêmico e de Família, registrado no Conselho Britânico de Psicoterapia. E-mail: hugh.palmer@sky.com.

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