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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Polifonias: Canções para conversar

 

Polyphonies: Songs to talk

   

 

José Luís Rodríguez FiestasI, Carlos Expósito AfonsoII, Juan Báez GarcíaIII

I Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias.

II Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias.

III Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias.

 

 


RESUMO

O trabalho com adolescentes normalmente é um desafio para os profissionais nas intervencões sociais. Neste artigo os autores relatam como se desenvolveu o proceso de construção de uma metodología de trabalho com adolescentes utilizando a música  e as ideias pós-modernas do Construcionismo Social, as Práticas Colaborativas e Dialógicas e a Terapia Narrativa. Além de detalhar a metodología que nomearam como “cancionear”, narram em primeira pessoa como o proceso afetoou-os, gerando mudanças e novas transformações neles e no ambiente à sua volta. O artigo tem a intenção de pôr em diálogo tanto a metodología como as histórias contadas, de forma que ambas gerem novas reflexões e conversações.

Palavras-chave: intervenção com adolescentes; práticas colaborativas e dialógicas; práticas narrativas.


ABSTRACT

Working with teenagers is a real challenge for social workers. In the present article, the authors describe the methodology used with teenagers, namely music, post-modern social constructionism, collaborative dialogue sessions and narratives practice. They also describe first hand and in a more profound sense the methodology, using the term "cancionear" (song-versation). This methodology generates changes and personal transformations not only within the teenagers themselves but around their environment too. The article tries to discuss both methodology and the story-telling, giving the chance for new thoughts and conversations to arise from them.

Key Words: intervention with adolescents; collaborative and dialogic practices; Narrative practices.


 

 

Ponto de partida

A história que contamos neste artigo procura descrever um dos processos que temos desenvolvido no âmbito do sistema de protecção de crianças no qual trabalhamos. Concretamente em um serviço especializado em intervenção com adolescentes prestado para a administração pública em Tenerife (Canárias, Espanha), no qual José e Carlos são os psicólogos e Juan o dirigente. A diversidade de circunstâncias com que temos de dar uma resposta especializada nesse campo nos convida a realizar uma busca de alternativas terapêuticas.

Temos sido influenciados pelos pressupostos teóricos do construcionismo social (Gergen, 2015) e abordagens conversacionais em psicoterapia (Andersen, 1994; Anderson, 2012) decorrentes do pensamento pós-moderno e, portanto, de uma crítica ideológica aos discursos monovocais e à autoridade científica como a principal base de conhecimento, caminhando em direção a uma pluralidade de narrativas locais, contextuais e fluidas que enfatizam o caráter relacional da construção do conhecimento.

Isto nos permitiu desenvolver a criatividade em nosso trabalho em diferentes áreas e especificamente com adolescentes, em que esta é ainda mais necessária. Temos recorrido a formas alternativas à interação verbal com eles e um dos recursos que mais temos utilizado é música.

Adolescentes usam a música para reforçar a identificação com seu grupo de pares, como um veículo para sua rebelião contra o convencional, para ajudá-los a estabelecer uma identidade separada da de seus pais ou simplesmente para relaxar, entreter-se ou evitar a sensação de solidão. Entendemos que a música pode desempenhar um papel importante na socialização e formação de identidade de adolescentes, sendo que se tornou um símbolo de sua busca pela identidade e autonomia e da qual temos nos aproximado para desenvolver uma intervenção especializada.

 

Os primeiros sons

Podemos distinguir duas estratégias metodológicas no uso que fizemos da música nos casos de intervenção. Por um lado, temos oferecido às/aos adolescentes a oportunidade de se expressar através da música. Para atender às dificuldades que muitos têm de colocar em palavras suas experiências, emoções, expectativas, etc., bem como a importância que sabemos ter a organização narrativa desses aspectos de suas vidas, propusemos a música como um facilitador, para que os meninos e as meninas escrevam e interpretem canções nas quais têm sido capazes de expressar o que – em interações verbais – lhes era extremamente difícil. Tais acções, além de facilitar sua expressão, permitem trabalhar com adolescentes em construções de narrativas sobre si mesmos, abrindo um ampla gama de possibilidades no processo de intervenção.

A outra metodologia  em que promovemos o uso da música como um veículo de intervenção se dá em situações onde a comunicação com os meninos e meninas é muito difícil na hora de abordar questões que consideramos relevantes, as quais estão relacionadas com sua história de vida, situação atual e projeções futuras. Nesses casos, a música nos deu o poder de oferecer visões de si mesmos e suas dificuldades – desde as quais foi possível trabalhar posteriormente através da composição de canções por nós;  oferecemos narrativas que valorizamos, que podem ofertar coerência a seus processos pessoais. A música é um recurso criativo para redefinir as situações vividas e facilitar a aceitação destas, favorecer o desenvolvimento de novos estilos cognitivos e estratégias reflexivas e/ou facilitar a transferência das visões de adultos ou profissionais sobre aspectos específicos da vida dos adolescentes. Esse trabalho tem sido realizado em formatos grupais.

As canções são gravadas em um formato profissional, o que nos permite adicionar ao conteúdo narrativo o componente que pode trazer musicalidade dado que, posteriormente, se realiza um processo de edição no qual são levados em conta os aspectos relacionados à musicoterapia e o potencial da música para gerar, transmitir e regular emoções. Trata-se de somar o conteúdo verbal com o sensorial que evoca a música, enfatizando, assim, as respostas emocionais quando se pretende atribuir importância a determinados aspectos.

Denominamos “cancionear” o processo pelo qual uma história, que é parte de uma intervenção terapêutica, é transformada em canção através do enriquecimento musical. Este termo é um neologismo surgido em nossos processos de reflexão e de relação que inclui diferentes práticas e metodologias. Temos sido influenciados por aquilo que uma companheira e professora1 nossa nos ensinou a chamar de linguagear, ou o que é o mesmo: inventar novas palavras que signifiquem as práticas que desenvolvemos.


Mais sons, novas harmonias

Desenvolvendo esses processos de trabalho começamos a acumular canções; quando superamos uma dezena, começamos a perceber em nossos diálogos que essas canções poderiam ser úteis para outros meninos e meninas, assim como haviam sido para os protagonistas. As canções em sua maioria falavam sobre processos pessoais inerentes ao ser humano e seu desenvolvimento evolutivo e, em alguns casos, aprofundavam sentimentos relacionados a experiências da vida dos adolescentes semelhantes aos de muitos outros com quem trabalhamos.

Nesse momento nos perguntamos: como podemos fazer uso das canções para  estabelecer diálogos terapêuticos? Como converter as canções em temas para conversas? A resposta a estas perguntas veio como um processo, porque nós pensamos que as músicas poderiam servir para convidar adolescentes a estabelecer uma conversa de caráter dialógico depois de serem ouvidas. O que Anderson (2012) nomeia como conversação dialógica é um processo generativo mútuo em que diferentes maneiras de entender, explicar ou significar experiências vividas são construídas. As canções podiam ser um convite para manter esse tipo de conversa, poderiam ser um tema para conversar. Decidimos testar esta hipótese com nós mesmos e nos atrevemos a deixar acontecer o que tivesse que acontecer.

A canção de Y passou por nós

Jose: "Há cerca de dois anos, uma colega me pediu para colaborar em um caso em que trabalhava com uma adolescente que gostava muito de música. Essa companheira pensava que através de um trabalho de composição musical conseguiria  se aproximar de uma situação pessoal pela qual estava passando essa adolescente. Veio a mim porque o meu amigo Carlos e eu estávamos começando a investigar o efeito da música no trabalho com nossos adolescentes e havíamos composto uma música para trabalhar com uma adolescente uma hipótese sobre o que podia estar passando por sua cabeça naquele momento, fazendo nossa narrativa como se fosse dela e oferecendo uma visão alternativa dessa história. A intenção era conectá-la com seus próprios processos internos, fazendo-a consciente do que poderia estar acontecendo e que ela não estava percebendo (sempre segundo nossa hipótese). O resultado foi uma canção que impactou muito a protagonista, que ela achou útil, embora não tenhamos explorado com ela a verdadeira dimensão deste trabalho.

Quando a colega me procura, o faz porque em algum momento eu sugeri ouvir a música que Carlos e eu fizéramos para essa menina. A letra conecta-se bem com a história de Y. e teve um efeito importante: ela se identificou com a letra da canção e expressou a necessidade de expressar seus próprios sentimentos em uma canção escrita por ela. Com esse movimento de Y. começamos a dar forma à sua canção. Tivemos uma reunião. Y., a colega Vicky e eu  conversamos sobre a intenção de sua música, o que ela queria expressar e quem queria que a ouvisse. Nessa reunião, Y. consolidou a ideia original: ela queria dizer à sua mãe como ela estava se sentindo naquele momento, em processo de ser acolhida pela família de um amigo dela, mas a presença de sua mãe a fazia se sentir terrivelmente culpada, mesmo que esta a tivesse submetido a abuso físico e emocional constante e não quisesse saber nada sobre sua filha. Esse sentimento de culpa estava fazendo com que Y., sem estar plenamente consciente, fosse boicotando o acolhimento, tendo comportamentos geradores de muito stress na casa da família acolhedora.

A primeira coisa que eu peço a Y. é que escreva a letra. Naquela mesma semana, escreveu uma letra profunda e honesta que fez chegar a mim pela colega. Vicky fica agradavelmente surpresa e animada porque Y está expressando coisas que, de outra maneira, não havia conseguido, propiciando conversas com ela sobre sentimentos, o que permitiu à terapeuta elaborar seus pensamentos com ela. Com a letra na mão, começo a me tornar íntimo das palavras para tentar encontrar a música apropriada para acompanhar o sentido da letra, o impulso em direção a seu objetivo. Há uma parte onde, como eu interpretei, uma tristeza de base carrega o peso da história que Y. está contando. Sua história de vida, marcada por negligência e maus-tratos de sua mãe e seus vários maridos. Há também dúvidas, sentimentos de estar perdida e sozinha.

Mas a história que Y. nos conta naquela letra evolui com força e determinação de seguir adiante com sua vida e deixar para trás a solidão e a tristeza que a envolvem todos os dias. Ela termina dizendo à sua mãe que ela a ama, mas deve deixá-la para trás em sua história, para avançar, e está firmemente decidida a fazê-lo naquele momento. Há uma  grande força que sustenta o tremendamente difícil que tem sido para ela tomar essa decisão. Em sua narrativa, Y. manifestava querer ter uma vida melhor, ter consciência do que está acontecendo com ela e faz uma história com um final alternativo que satisfaz suas necessidades melhor ... mostra uma enorme coragem.

Com esse conteúdo, eu elaborei uma harmonia onde as notas mais graves predominam antes do refrão, mas intercaladas com notas mais altas que jogam com os movimentos emocionais da letra. Eu decidi usar instrumentos nos pré-refrões que pela natureza do seu som nos transportam a um estado de melancolia e pesar que, em tons menores, encaixam com a emoção e intenção da letra nesse trecho da canção. O refrão muda ligeiramente em sua intenção, onde a mensagem é raiva, movendo em direção a algo mais, a intenção de mudar para melhor ... As harmonias mudam para um maior número de acordes maiores e uso instrumentos onde a percussão tem um protagonismo claro como o caminhar de um cavalo, com passos firmes e seguros.

Quando tenho o rascunho da música pronto, reunimo-nos novamente Y., Vicky e eu, para compartilhar impressões. Elas gostam do resultado e nós o cantamos. Y. tenta fazer sua a canção com a sua voz e ela gosta como se sente quando canta. Só faltava  gravar a canção no estúdio. O momento da gravação foi muito especial para todos, muito emocionante. Quando Y. enfrenta o microfone pela primeira vez e toma consciência de que vai cantar em voz alta os seus sentimentos para deixar permanentemente registrados e que qualquer pessoa poderá ouvir, sentiu vertigem e medo (segundo manifestou). Custou para sair sua voz e tivemos que fazer uns exercícios de respiração para tranquilizá-la um pouco. Depois de um tempo, Y. se arma de coragem e, finalmente, decide sacar, ‘retirar a canção de dentro de si, deixá-la vir à tona ... e grava ... o resultado é magnífico ... Quando termina de cantar a canção, observa-se uma mudança física em Y. e a vemos muito mais segura, mais calma, mais serena, erguida sobre si mesma ... e muito satisfeita.

Ao terminarmos o trabalho com a canção, eu me desvinculo do processo de Y. e a informação que me chega é da colega, que diz ter notado em Y. um antes e depois da gravacão da canção. Este processo deixou em mim um conjunto forte de vários sentimentos. Por um lado, a construção da canção me obrigou a buscar em mim  o meu conhecimento sobre a música que estava adormecido e compreensão sobre as pessoas e sua relação com a música. Despertou o interesse de investigar o poder transformador que a música tem sobre as pessoas, a natureza emocional pura que a música tem e o efeito, permitindo a experimentação de diferentes estados emocionais, gerando emoções ... o que me levou a pesquisar o poder de empregar música na terapia com a intenção de gerar certos estados ... me abriu uma porta que já havíamos entreaberto timidamente, oferecendo uma ferramenta com um poder ainda a ser determinado. Por outro lado, o envolvimento que tive no processo de Y. me deixou uma carga emocional que se arrastou por um tempo e não encontrei uma maneira de tirá-la até que tomei consciência do porquê havia ficado tal carga. Deixo com vocês a letra da canção:

Não sei por que
É tão difícil de explicar o que eu vejo
Quando olho para trás me lembro,
Minha vida cheia de prantos e também sorrisos
Não sei te explicar,
O que passa pela minha mente
Só posso dizer que tudo já é diferente
Tudo já é diferente
Quero gritar, quero chorar, quero sentir a felicidade
Não sei muito bem o que devo fazer para ser feliz
Me incomodam tantas coisas que nem eu sei por que me encontro mal
Eu não sei o que pensar, olhe para mim agora ... eu não sei quem eu sou
Eu não sei quem eu sou
Me vejo diferente dos demais, estranho coisas que eu nunca quis pensar
Lembro-me de minha vida anterior e me arrependo de quem fui
Mas não de quem eu sou
Sei que tenho uma oportunidade de ser melhor, mas não sei como fazê-lo
Tenho medo de perder tudo, de me ver sozinha e sem apoio
Me ver um dia no espelho e ver que eu nunca fui um exemplo
Às vezes me ponho a chorar, não sei se eu deveria vê-la ou deveria esperar
Há uma confusão na minha cabeça que não posso explicar
Tenho uma família que me apoia, que realmente me ama
Mas às vezes eu sinto que  não caibo em nenhum lugar
Com eles me sinto feliz, mas não sei, me falta algo que me preencha de verdade  Estranho coisas da minha vida, mas não quero voltar atrás
Quero gritar, quero chorar, quero sentir a felicidade
Não sei muito bem que devo fazer para ser feliz
Me incomodam tantas coisas que nem sei por que me encontro mal
Eu não sei o que pensar, olhe para mim agora ... eu não sei quem eu sou
Eu não sei quem eu sou
Não aguento mais, não vou olhar para trás
Vou seguir, vou lutar, vou sentir a felicidade
Olhe para mim, já sei o que fazer,
Não devo me calar, devo gritar
Devo dizer a verdade
Porque eu te amo, eu te quero
Devo dizer-te adeus, devo dizer-te adeus
Devo dizer-te adeus, devo dizer-te adeus, adeus.

Juan: "abriu-se a porta do meu escritório. José e Carlos ficaram comigo para testar um "Tema para conversar" (Ramos, 2008). Eles não escolheram nenhum em particular. Sentados na frente do meu computador, decidem ouvirmos a canção de Y. Minha escuta atenta foi interrompida nas primeiras palavras do refrão. O primeiro "quero gritar" da letra golpeou-me a boca do estômago, meus olhos se encheram de lágrimas e os meus pensamentos eram um diálogo interno sobre a coragem que significa para mim que alguém expresse seus sentimentos. Conectei-me com o valor dessa adolescente e me perguntei: o que isso diz sobre mim? A resposta a esta questão foi o contato com minha covardia quando se trata de expressar sentimentos, a minha dificuldade em fazê-lo. Meus pensamentos seguiram acompanhados pela canção até terminar e quando eu levantei a cabeça e olhei para José e Carlos para lhes dizer, basicamente, que havia um "tema para falar comigo" e que eu não havia podido ouvir toda a canção.

Expliquei-lhes o que tinha acontecido comigo, onde estavam meus pensamentos naquele momento e além de falar sobre o que se passava comigo, analisamos o processo juntos. Isso fez com que eles se perguntassem o que diziam sobre eles os aspectos que lhes tinham chamado atenção, o que fez com que se conectassem com "temas a conversar com eles". A canção tornou-se o motivo de um diálogo com nós mesmos e entre nós.
Aquele dia deu um impulso a esse trabalho. Nós nos tornamos parceiros em uma conversa mediada por este tema e concordamos em dar continuidade a uma proposta de trabalho que, se fosse útil para nós, também poderia ser para os outros.

Carlos: "ao longo da minha experiência profissional na área de crianças e famílias sempre estive ligado com a adolescência, voltando frequentemente à circunstância de ser parte de serviços específicos para o atendimento de adolescentes, algo que em todos os momentos me satisfez inteiramente, me sentindo muito confortável e de alguma forma como esse fosse o lugar ao qual pertenço. Não são poucas as coisas que identifico em mim dessa fase da vida e que fazem com que, embora ultrapasse os trinta, continue a me sentir em muitas maneiras mais adolescente do que adulto, algo que certamente não espero mudar.

Caberia falar sobre a imerecida "má reputação" que, em minha opinião, tem essa fase maravilhosa da vida, mas talvez não seja o tema deste artigo. Como eu me tornei parte da história de Y.? Como a história de Y. tornou-se parte da minha própria ...?

Há mais de três anos na busca de encontrar formas alternativas de comunicação com uma menina chamada A., com quem tivemos dificuldade em nos relacionar, ocorreu a meu companheiro de trabalho e batalhas, José, tentar se conectar a essa adolescente utilizando a música como veículo. Nossa intenção era fornecer a A. uma forma diferente de se entender, sentir e se relacionar. De certo modo e a posteriori acho que nós estávamos promovendo a reautoria através de uma história alternativa oferecida como uma narrativa de segunda ordem, mesmo sem saber esses conceitos narrativos. Essa experiência abriu para nós um caminho que continuamos percorrendo, onde a música é o pavimento ao longo do qual circulam as histórias de algumas das pessoas com quem trabalhamos.
 
Caminhando desta forma eu tive a sorte de compartilhar histórias tornadas canções (ou canções feitas de histórias), incluindo a decorrente da colaboração de José com outro colega de trabalho em seu relacionamento com uma adolescente chamada Y. que, depois de ouvir uma canção escrita por eles, decidiu contar sua própria história através da música. A primeira vez que ouvi a história de Y. notei a força emocional que transmite e como esta é reforçada pela musicalidade.

Aconteceu alguma coisa que a todos nós acontece quando uma canção "nos diz algo", isto é, eu passei dias com sua melodia e refrão na cabeça, descobrindo-me a cantarolá-la a qualquer hora do dia. Algum tempo depois, quando eu estava mais perto do construcionismo social e práticas narrativas me encontrei novamente com essa música feita história de Y. Em nosso serviço começamos a trabalhar com a ideia de explorar essas narrativas (já tínhamos mais de uma dezena de canções decorrentes dos processos de trabalho com adolescentes) nos processos relacionais-terapêuticos com outros adolescentes.
 
Trabalhando nessa linha José, Juan e eu como os psicólogos do serviço, com a intenção de compartilhar essas ideias com outros colegas preparamos uma dinâmica que nos levou a ouvir a história de Y. em várias ocasiões, conjuntamente, refletindo em seguida sobre o que "ressoava" em cada um ao ouvir. É neste momento e ao ouvir soozinho dias antes que essa música assume um significado especial para mim com a mesma força emocional que senti desde a primeira vez em que a ouvi, mas escutando, entendendo e sentindo outras dimensões da história.
 Eu continuo a ouvir essa música refletindo sobre o que me transmite e o que isso diz sobre mim. Sugere-me imagens de romper com determinadas experiências, pessoas e avançar impulsionado pela raiva, imagens que eu associo com fases relativamente recentes da minha vida e os vestígios que ainda existem em mim. Isso me traz à mente os conflitos entre meus "devos" e meus "queros". Evoca decisões difíceis que tive de enfrentar em meu caminho. Confusão, não saber, não me encaixar ... E de alguma forma cada vez que eu a escuto, dependendo do momento em que eu esteja, ela me gera novas sensações, ideias e emoções. Na verdade, no momento de escrever este texto, apenas depois de voltar a ouvir de novo a canção que as palavras vieram para mim e eu pude dar minhas impressões".

José: "desde o início do trabalho neste projeto, a ideia de trabalhar ajustando os processos e a metodologia às pessoas com quem trabalhamos estava presente. Minha relação com a música vem do "velho", quando na minha adolescência um dos elementos que me ajudou a desfazer meu mal-estar emocional foi a música e a composição de letras e melodias que deram acesso a uma forma alternativa ao discurso, no qual eu não me movia confortavelmente. No meu pensamento sempre está o "se a mim me ajuda, a outras pessoas também poderia ajudar".
 
Trabalhar com adolescentes requer o uso de metodologia criativa e próxima às  características deles, e música é um elemento central na vida dos jovens por ser não só um veículo de expressão, mas de identificação e integração social. E foi através de um caso com uma adolescente que começa esta aventura em que um momento de dificuldade para uma menina tornou-se o início de um trabalho emocionante. Meu amigo e colega Carlos e eu escrevemos uma canção para uma menina que estava em um momento de grande sofrimento emocional e manifestava comportamentos que eram muito fortes. Em nossa compreensão, ela não tinha certeza de por que se comportava e se sentia assim, não conseguia se entender e isto em si mantinha o comportamento e o mal-estar emocional. Por isso decidimos colocar a nossa hipótese do que poderia estar acontecendo com ela em uma linguagem para ela fácil de compreender: a música e as canções com uma narrativa que partia de nós e nossa leitura da sua situação pessoal.

Pensávamos que se ela pudesse escutar sua história de outra maneira, talvez conseguisse chegar a uma maior compreensão do processo em que estava naquele momento e isso iria ajudá-la a se sentir melhor, talvez aliviada, e a tomar decisões e estratégias de enfrentamento que fossem menos prejudiciais para ela.
A experiência com essa canção foi a força motriz que impulcionou um trabalho que vem até hoje, acumulando agora vinte canções que falam de processos de trabalho com pessoas, de expectativas, ilusões, reconstruções de identidade e desejos de futuro melhor. Entre esses temas, a história de Y.

Carlos, Juan e eu nos reunimos para falar sobre "Canções para conversar" e decidimos escutar a canção de Y. Essa canção foi muito importante na minha vida. Participar na sua criação, pensar na história que conta e compartilhá-la com Y. e com  outros mais tarde permitiu-me entrar em um processo de reflexão profunda, onde tomei decisões sobre aspectos que eu precisava mudar, mas sobre os quais não tinha me dado conta ainda. Escutamos a canção os três juntos, primeiro sem a letra e, em seguida, com a letra. E depois do exercício de ouvir, Juan compartilha seus sentimentos com a letra, a mensagem e a  música. Ele fala de coragem. Essa coragem de que ele fala cala forte na consciência e tenho um momento de revelação do que me tocava desde que conheci Y. e trabalhamos em sua canção.

Percebi naquele momento minha própria covardia e quanto eu admirava o fato de que Y. podia expressar-se como fez em sua canção. Conectei-me com a minha falta de honestidade e meu desejo de ser corajoso para expressar abertamente meu sentimento com pessoas que sentia que não podia fazê-lo. Esse processo me abriu um caminho pessoal de mudança e de  tomada de decisão que permanece até hoje. Senti-me muito grata a Juan e Carlos por compartilhar esse momento tão significativo e ser cúmplice de um "plano revolucionário" no mundo da terapia.

Depois da nossa escuta, o como

A experiência do processo nos permitiu compreender como poderíamos fazer uso das histórias que tínhamos para o nosso trabalho; encontramos respostas para a pergunta de como podíamos converter as canções em temas de conversa. Nem toda conversa é dialógica ou generativa: aprendemos a tentar estar nesta disposição que nos acompanha no processo e temos construído metodologias de trabalho sensíveis com uma prática relacional como esta. As canções são, portanto, um convite para manter essas conversas, uma vez que são ouvidas e nossa proposta é desenvolver a conversa sobre uma estrutura de 5 passos:

CONVIDAR – ESCUTAR – CONVERSAR – CONSTRUIR PONTES – CONVERSAR

Convidar: ouvir música é um comportamento muito humano e muito adolescente. As músicas que acompanham essa proposta metodológica são um convite para ouvir música e tanto esta como as letras que a acompanham podem se tornar um ‘Tema para Conversar’. Nossa intenção como profissionais é estar disponível para promover uma conversa dialógica se o adolescente quer dar um segundo passo. Temos a intenção de superar essa primeira dificuldade no trabalho terapêutico com adolescentes que assim o desejem. As músicas que nós propomos foram compostas por e para adolescentes do sistema de proteção, aspecto que pode despertar a curiosidade de ouvi-las e aceitar o nosso convite. Por outro lado, é um convite que nos permite muita plasticidade na execução. É fácil de transportar e as canções podem ser ouvidas em diferentes lugares: durante um translado de carro, num banco de jardim, em uma sala ... Trata-se de encontrar o momento para ativar o processo de conversação e o espaço dialógico, sendo que este formato permite um grande número de possibilidades para convidar...

Escutar a canção: uma vez que temos uma resposta positiva ao convite, o momento seguinte é de escuta; uma condição necessária para ativar o pensamento é o silêncio; passar de uma posição de escuta ativa ao processo reflexivo. A relação entre o pensamento e palavra é um processo dialógico entre o pensamento e a palavra, a palavra e o pensamento. O pensamento tende a se conectar, estabelecer relações e estar em evolução e movimento contínuos.

Conversar sobre o tema ouvido: nosso papel será caracterizado pela investigação compartilhada; presença para ouvir as palavras dos adolescentes e contribuição com as nossas para indagar os significados das canções; fala para posterior escuta e contribuição para a construção de novos significados. Devemos ter em mente que nenhuma expressão ou frase tem um sentido único, claro ou completo e que todo ato de comunicação contém sentidos não expressados. Esta premissa é fundamental para que a conversação tenha possibilidades transformativas e alcance o ainda não dito. A Indagação Compartilhada (Anderson & Burney, 1997) é caracterizada pela contínua troca e discussão de ideias, opiniões, sentimentos, preferências, memórias, observações, emoções, etc. É uma conversa em que se fala com o outro em vez de falar para o outro; é um processo de participação conjunta, de ida e volta, de dar e receber em que não supomos o que o outro diz, quer dizer ou quer. Comprometemo-nos a aprender com a outra pessoa, a tentar compreendê-la, buscando significados por meio da linguagem.

Construir pontes: construir pontes é, em nossa proposta, uma ferramenta para o trabalho colaborativo com o adolescente depois de ter ouvido e conversado sobre a canção. Seria relacionar o falado com o que está por vir e começar a orientar a conversação para as capacidades e o futuro.

Conversar com outros: trata-se de organizar com eles as conversações que irão ocorrer com os outros depois de dar por terminada a nossa, sempre que eles queiram. Tanto as do terapeuta com o resto da rede, como as do adolescente. Com isto pretendemos que o trabalho feito repercuta fora do contexto da sessão e outras pessoas possam  atuar como aliados apreciativos dos aprendizados obtidos na conversa.

O processo polifônico

Juan: "meu trabalho no serviço me dá a possibilidade de gerar momentos entre os profissionais para compartilhar experiências de trabalho, enriquecer e transformar a nossa prática. Esses momentos estão ligados à aprendizagem contínua que temos como um valor organizacional que permeia nosso trabalho. Como organização nos levou à flexibilidade, a uma estrutura plástica que tenta se ajustar às demandas a que atendemos, muito conscientes de que somos pessoas que trabalham com pessoas e tratando, portanto, de nos cuidarmos para poder cuidar. Quando trabalhamos ‘Temas para Conversar’ eu pensava em como tornar participantes do processo os companheiros da metodologia que estávamos criando. Pensava em que momento-espaço poderíamos compartilhá-la; elaboramos inclusive uma proposta e utilizamos a canção de Y. em algumas jornadas de trabalho na instituição. Minha própria experiência de ouvir a canção me fez pensar sobre a possibilidade de gerar o processo com os outros e que a melhor maneira de compartilhar a proposta de trabalho seria vivenciá-la. E foi o que eu fiz. Convidei os colegas para participarem de uma escuta da canção comigo. Foi na prática com os colegas que apareceu a influência da abordagem da Terapia Narrativa.

Até então a minha maneira de estar no processo era influenciada pela posição filosófica das práticas colaborativas graças às quais minha forma de me relacionar tornou-se mais humilde, tentativa, suavizou-se e me faz estar no mundo pessoal-profissional de uma forma mais cômoda e gratificante. (Báez,  2017). Minha aproximação à terapia narrativa é posterior e essa ocasião de cancionear com os companheiros foi a primeira em que senti que minha prática se deixava influenciar pela  abordagem narrativa. Um exemplo disto é  que cada conversaçãoo após cancionear teve uma devolução escrita por mim (White & Epston, 1993) e na minha maneira de estar na conversação apareciam formas de perguntar orientadas por Mapas da Terapia Narrativa. Essa sequência está relacionada com a minha aproximação a estas duas formas de trabalhar.
Cada sessão com os colegas era diferente, como seria de esperar. Uma variável que esteve presente em todas as sessões foi o que em mim havia despertado a escuta da canção. Foi parte de todas conversações e de alguma forma foi a maneira que eu encontrei para mostrar o meu compromisso com eles no processo e devolver minha gratidão aos colegas que responderam o convite; mostrar-me como eles se mostraram.

Cada conversa tomou um rumo diferente em termos de mapas narrativos; eu poderia dizer que desenvolvemos conversações de reassociação e reautoria (White, 2007). As primeiras são aquelas que tratam de se reconectar com histórias de relações significativas para resgatar perspectivas e pontos de vista de pessoas e relações que ao serem retomadas podem contribuir ao desenvolvimento da identidade. Nas conversações que mantivemos recuperamos histórias com amigos, avós, pais e algum personagem de contos. Conversações de reautoria são aquelas que tratam de vincular feitos únicos ou isolados vividos pela pessoa como exceções em seu desenvolvimento vital, que mostram formas de resolver a situação-problema no presente. Trata-se de integrá-las em um relato alternativo de modo que enriqueçam sua história de vida. Em nossas conversações enriquecemos relatos de coragem, força, perseverança, características que haviam passado despercebidas e se tornaram parte de novas tramas narrativas nas histórias de vida dos companheiros.

Eu poderia dizer que nós desenvolvemos conversações de reassociação e reautoria, no entanto cada uma delas foi rica em nuances e descrevê-las identificando apenas os mapas seria parcial. A experiência relacional é mais importante do que as palavras que usamos nas conversações que mantivemos e querer contar o que aconteceu em cada reunião seria uma utopia, porque o ambiente estava carregado de olhares, toques, sensações corporais, gestos, lágrimas e isso fez de cada encontro uma experiência relacional única, vibrante e motivadora para continuar a explorar essas formas de trabalho.

A primeira conversa que eu tive chamou minha atenção pela minha maneira de estar na mesma; há uma frase de Harlene Anderson (2012) que me encantou ler: "minha voz inclui as vozes deles, à medida que conto a minha/nossa história passo do eu ao nós”, em referência a conversas anteriores que ela teve e que informam sua vida. Naquele dia, enquanto eu escutava, me encontrava acompanhado por minha própria experiência e, portanto, por José, Carlos e este poema, que naquele dia em que tive a experiência de escutar com eles não compartilhei:

Deixe que aconteça.
Tempestades transformam árvores em troncos tísicos
e chorosos, às vezes inclinados,
e no entanto, como limpam o ar,
como te fazem chorar quando respira.
Deixe que aconteça.
As ondas varreram a costa,
varrem os passos os buracos,
e vivem um tempo feliz,
mas que tapete tão macio e brilhante fica.
Como seus pés afundam até que volte a água.
Deixe que aconteça,
E enquanto está acontecendo,
fragmenta o tempo em partículas infinitas
e embala cada uma delas em teu colo,
como um bebê que tem tudo à frente
e ao qual querias dizer quão feliz estavas quando aconteceu.
Deixe que aconteça.
Além das estrelas,
verás o universo, infinito ...

Eu não tinha compartilhado anteriormente porque era parte de uma área da minha intimidade, tornada pública para poucos. Sempre havia guardado para mim e poucas pessoas sabiam de sua existência. Naquele dia estava muito presente no meu diálogo interno e a conversa se transformou em uma conversa guiada por um mapa de externalização (White, 2007), mas carregada de uma entrega recíproca de máxima intimidade. Colocar em prática esse mapa se trata de estabelecer um contexto com o que é importante na vida das pessoas para definir sua posição com respeito aos problemas sobre os quais se está falando e ter uma voz mais forte acerca dos fundamentos de suas preocupações; trata-se de pôr em prática uma das frases de Michael White mais repetidas: “o problema é o problema e a pessoa é a pessoa”.

A sequência consta de quatro passos: no primeiro se nomeia o problema por meio da negociação de uma definição próxima à experiencia particular do problema com a pessoa. O segundo passo é a exploração dos efeitos e as consequências do problema na vida da pessoa. O terceiro passo é avaliação dos efeitos do problema ou, o que é a mesma coisa, convite a pessoa a tomar uma posição em relação ao problema e, por último, justificativa da avaliação permitindo à pessoa que comece a falar sobre seus valores, crenças, sonhos, princípios e/ou propósitos que são afetados pelo problema.

Quando demos a reunião por terminada, perguntei sobre o processo com a canção: "O que sucedeu a você durante esta experiência?". A resposta foi: "Eu estou muito bem, foi como um terremoto de palavras". Essas suas palavras ficaram ressoando em minha cabeça, tinha pensado em fazer chegar a você o poema, eu queria compartilhá-lo, primeiro movido pela profunda gratidão por sua entrega à conversa e ao diálogo depois da escuta. Pedi e obtive permissão ao autor para compartilhá-la, pensei que era importante fazê-lo, que o que tinha me servido poderia servir a outros.
 
Ao preparar o correio para enviar o poema, adicionei algumas palavras como uma metáfora da conversa e as fiz chegar. Minhas palavras geraram nele novos significadosespondeu com uma carta a enviar para a autora da canção e assim o fizemos. Os meus encontros seguintes com outros colegas tiveram uma devolução por escrito de minha parte; textos que tomavam as palavras textuais deles envolvidas em uma linguagem metafórica, uma prática que eu não havia desenvolvido até esse momento ou daquela maneira e que devo, sem dúvida, ao processo. Para mim aí se iniciou um processo polifônico, já que não deixaram de acontecer coisas associadas a este processo. Uma vez que começamos a compartilhar a proposta, foram adicionadas vozes e experiências de todos os tipos associadas a ela, como estar escrevendo este artigo.

Carlos: "e é assim que nos tornamos conscientes do potencial evocatório dessa maneira de se relacionar, da capacidade da canção de Y. para conectar com aspectos de cada pessoa na escuta, convertendo-se a história de Y. dessa maneira na história de cada um dos afortunados que a ouviram. Ao ouvir uma história fazêmo-la nossa, e nesse processo de apropriação da história de outra pessoa vamos escrevendo e reescrevendo a nossa própria. Nesse momento, decidimos que queríamos compartilhar isso com as outras pessoas, pensando que o que gerou em nós três pode ser um indicador do que suscite em outras pessoas.

De uma perspectiva narrativa as histórias de resiliência de uma pessoa podem ser motores para a resiliência de outra, ao mesmo tempo em que consolidam os processos de crescimento da primeira. Entendo que é semelhante ao processo que  ocorre nas cerimônias de definição (White, 2007), que são rituais que têm por objetivo enaltecer as histórias de vida das pessoas. Normalmente se realizam para consolidar processos de migração de identidade e então são narradas as histórias de vida alternativas à história do problema, ante um público selecionado especificamente para essa pessoa e que tem um papel de testemunha externa respondendo a escuta, recontando, expressando que partes da história atraíram sua atenção, que imagens evocaram, com que experiências pessoais ressoaram e sobre os sentimentos que a escuta  lhes evocou.

Assim como nas práticas narrativas comunitárias, arquivos de resistência de uma comunidade são transmitidos para outra, reforçando a história da primeira ao transmitir sua aprendizagem à segunda, que se beneficia dessa experiência vivida por outros. Estas ideias propiciam uma comunidade de aprendizagem horizontal e pessoal, onde são as próprias pessoas que transmitem sua aprendizagem para outro e fomentam assim a resiliência.

Com base nessas ideias, considero que a história de Y. pode ter utilidade para  outras crianças que atravessam situações semelhantes em sua passagem pelo sistema de protecção infantil, dado que entendo que certas emoções, experiências e reflexões que me evocam a canção de Y. podem ter um eco nas vidas dessas outras crianças. Com isto em mente, propusemos José, Juan e eu, compartilharmos a canção de Y. com outras pessoas e reunir as experiências e relatos que evocam, responsabilizando-me eu, especificamente, de agilizar esse processo com adolescentes da rede de proteção infantil  de Tenerife.
Iniciando essas experiências, propus a C. compartilhar com ela a música – história de Y. – acho que por saber que C. gosta de poesia, da sensibilidade e capacidade reflexiva que mostra cada vez que nos falamos. Pode ser interessante realizar este processo com ela. Escutamos a canção e a primeira reflexão de C. é a identificação com o processo humano de "não saber o que quer" e de uma fase de confusão, contextualizada de maneira particular na história, no período evolutivo em que se encontram tanto ela como Y., a adolescência.

Eu levantei a possibilidade de comentar brevemente o momento em que Y. se encontrava quando escreveu a canção, algo que inicialmente eu não tinha planejado fazer, mas surgiu na conversa. Refletindo sobre isso depois, acho que pode ter a ver com a semelhança entre as relações materno-filiais em ambas meninas, que eu interpreto que pode existir. Essa informação oferece um contexto diferente a partir do qual surgem novas reflexões em C., nas quais a adolescente começa a falar de si mesma, suas experiências e memórias, deixando progressivamente para trás na conversa a história de Y., que serviu como motor para iniciar um relato de sua própria e uma conversa sobre sua identidade, desejos, expectativas, emoções. O escutar a história de Y. favorece que a conversa vá se tornando na continuação de outras que estamos mantendo C. e eu, em que costumamos falar muito sobre sua mãe e a relação entre elas.

Passados alguns dias ocorreram determinadas situações de crise relacional no processo de C. e sua família. Na base dessa crise está a intenção de C. tomar uma decisão similar à que motivou a canção-história de Y. Não posso evitar a formulação, em minha cabeça, da hipótese de como a história de Y. e as conversas com C. derivadas dela foram geradoras de movimentos familiares que provocaram crises a partir das quais a família tem continuado a crescer e buscar seu equilíbrio relacional. Nos meses seguintes eu dei continuidade a essas experiências compartilhando a canção de Y. com outros meninos e meninas, sendo isto o motor de interessantes conversas e reflexões em que se produzem identificações, ressonâncias, etc. Em alguns casos promovendo processos de migração de identidade e servindo como inspiração para reflexões escritas por um menino sobre seu processo, em outros, levando uma menina a olhar seu passado com olhos diferentes, movidos pelas palavras de Y. "Me arrependo de quem fui, mas não de quem sou”.
 
Como parte dessas experiências, eu compartilhei uma conversa especificamente na qual não se deu essa dinâmica de conexão e reflexão depois de ouvir a história de Y., que me leva a pensar sobre como a relação construída entre o menino e eu, minhas expectativas sobre sua resposta ao ouvir a história e a forma de me relacionar com ele tenham influenciado significativamente a conversa que ocorre entre nós e provavelmente do mesmo modo no processo de intervenção que compartilhamos. Essa experiência faz-me lembrar um lema que aprendi com meus colegas de trabalho e que tornei meu: "como terapeutas não somos mais do que pessoas que se relacionam com  pessoas".

O processo relacional e reflexivo envolvido nesse trabalho com as histórias tornadas canções em que estamos imersos está deixando sua marca em mim e no serviço a que pertenço. Tem promovido a reflexão e revisão não apenas de nossas práticas de intervenção e nossas maneiras de interagir com as famílias com que trabalhamos, mas acho que também nos ajudou a olhar para os nossos próprios mundos internos, tanto individualmente como em termos do grupo humano que somos.

Essa nossa história não termina aqui. Neste texto apenas é apresentada uma parte da viagem percorrida até hoje. A viagem continua e, como em toda aventura, "colocas o pé na estrada e se não cuidas de teus seus passos, nunca sabes onde eles pode  te levar" (J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, 1954) ...


Polifonias que criarão outras

Recentemente tivemos a oportunidade de compartilhar, no III Congresso Internacional de Práticas Colaborativas e Dialógicas, parte do trabalho desenvolvido, e o fizemos de forma que os participantes do workshop pudessem experimentar a escuta da canção de Y. e o processo conosco como facilitadores do mesmo. Nesse dia, o processo saiu das nossas mãos ao ser compartilhado com profissionais de outras nacionalidades e dar um novo passo em nosso caminho, abrindo a possibilidade de que outros possam desenvolver processos semelhantes em seus próprios contextos. Também foi aberta a possibilidade de escrever estas palavras.
Poder compartilhar nossas experiências em um congresso com características dialógicas é como "jogar em casa"; de alguma forma conta-se com o apoio dos presentes. A experiência foi gratificante e através da proposta dinâmica os participantes se tornaram o que Michael White denominaria testemunhas externas, sendo nós os que narramos a nossa história entrelaçada com a história de Y, formando parte dela. Foi maravilhoso perceber como a nossa história, ambientada em um pequeno rincão do mundo, gerou ecos e ressonâncias em pessoas de lugares próximos e remotos geograficamente, intelectualmente ou espiritualmente. Pudemos ver como a força sentida por nós nesse processo se reflete em pessoas que se aproximam dele, como se emocionam, conectam com aspectos que são importantes em suas vidas e se únem à nossa história.

Entendemos que essa vivência facilita a compreensão e interesse na metodologia de trabalho da nossa experiência, o que – em última análise – entendemos como uma maneira de interagir e construir a realidade social a partir da qual privilegiamos colocar em circulação histórias de identidade como estratégia de construção e de reconstrução contínua de si mesmo. A música, a arte de "cancionear" as histórias nos fornece um veículo para compartilhar essas histórias, que funciona como ampliação das mesmas, que não só chega a um público maior, mas que faz parte da própria história transmitindo em sua linguagem emoções, sentimentos e  fazendo vibrar de uma maneira especial os ouvintes.

Além disso, gostaríamos de gerar novas reflexões e conversas entre e com pessoas que leiam este texto; que as experiências aqui narradas contribuam a continuar gerando conhecimento em um somar contínuo e transformador. Isto é o que Shotter (Anderson, 2012) chama de conhecimento do terceiro tipo, quer dizer, o conhecimento que surge na conversação quando as pessoas que se encontram nela compartilham, refletem e dialogam sobre seus conhecimentos e aprendizagens prévias.

Valorizar espaços de conversação em que é gerado esse tipo de conhecimento torna-se uma implicação prática promovida por profissionais que entendem a sua prática desde a pós-modernidade. Trata-se de uma oportunidade para o desenvolvimento de projetos como o que aqui colocamos em diálogo, no qual profissionais superam a dicotomia entre teoria e prática com o desenvolvimento de uma prática reflexiva em que se constróem conhecimentos que nos permitem desenvolver novos projetos em um futuro transformador – impossível por parte de instituições modernas – nos quais desenvolvemos o nosso trabalho pós-moderno, que passo a passo também se transforma.


Referências

Andersen, T. (1994). El equipo reflexivo: diálogos y diálogos sobre los diálogos Barcelona: Gedisa.         [ Links ]

Anderson, H. (2012). Conversación, lenguaje y posibilidades. Un enfoque postmoderno de la terapia. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Anderson, H. & Burney J. P. (1997). Collaborative inquiry: A postmodern approach to organizational consultation. Human Systems. TheJournal of SystemicConsultation and Managemen, 7(2-3), 177-188.         [ Links ]

Baez, J. (2017). Transformación: me detengo y sigo. MOSAICO: Revista de la Federación Española de Asociaciones de Terapia Familiar, 67, 77-85.         [ Links ]

Gergen, K. J. (2015). El ser relacional: más allá del yo y de la comunidad. Bilbao: Desclée de Brouwer.         [ Links ] 

Gergen, K. J. & Gergen, M. (2011). Reflexiones sobre la construcción social. Madrid: Paidós.         [ Links ]

Ramos R. (2008). Temas para conversar. Barcelona: Gedisa        [ Links ]

White, M. & Epston, D. (1993). Medios narrativos para fines terapéuticos. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ] 

White, M. (2007). Maps of narrative practice. New York: W. W. Norton.         [ Links ] 

White, M. (2011). Narrative practice: continuing the conversations (D. Denborough, Ed.). New York: W.W. Norton.         [ Links ]

Recebido em: 31/07/2017
Aprovado em: 20/09/2017

1 María Dolores García, doutora, profesora titular en el grado de Psicología de la Facultad de Ciencias de la Salud de la Universidad de La Laguna en Tenerife. Islas Canarias.

I José Luís Rodríguez Fiestas, psicólogo da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. joseluisrodriguez@asmundonuevo.com

II Carlos Expósito Afonso, psicólogo da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. carlosexposito@asmundonuevo.com

III Juan Báez García, psicólogo e diretor da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. juanbaez@asmundonuevo.com

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