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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo dez. 2017

 

ARTIGOS

 

O especialista relacional na terapia familiar de fundamentação epistemológica construcionista social

 

The relational expert in family therapy oriented by a social constructionist epistemology

 

 

Giovanna Cabral DoricciI, Laura Ferreira CrovadorII, Pedro Pablo Sampaio MartinsIII

 

 


RESUMO

Este artigo descreve algumas reflexões e questionamentos sobre a postura do não saber em terapia colaborativa. A postura do não saber é sempre útil? Os conhecimentos prévios do terapeuta devem, necessariamente, serem silenciados para se obter uma relação colaborativa? Essas e outras questões são trabalhadas e fundamentadas teoricamente ao longo do artigo. Buscamos descrever diferentes sentidos relacionados à postura do não saber e as implicações que decorrem desses sentidos na prática do terapeuta familiar. Por meio de uma análise teórica, apresentamos como conclusão a postura do especialista relacional como uma possibilidade inserida na terapia de fundamentação epistemológica construcionista social e, também, como uma postura que pode manter a responsividade e a colaboração entre terapeuta e cliente. Esperamos com este artigo contribuir para o início de um diálogo no campo que reconheça as especialidades tradicionais, ou seja, os conteúdos específicos de conhecimentos dos terapeutas, como potencialmente úteis, a depender do modo como são utilizadas na prática da terapia familiar.

Palavras-chave: Terapia Familiar; Terapia Colaborativa; Construcionismo Social.


ABSTRACT

This article describes some reflections and questions about the not-knowing stance in collaborative therapy. Is this stance always useful? Should therapists’ previous knowledge of necessarily be silenced in order for a collaborative relationship to be obtained? These questions, as well as others, are reflected on, and theoretically sustained throughout the article. We seek to describe different meanings related to the not-knowing stance, and to reflect on their implications for the practice of family therapy. By means of a theoretical analysis of the concept, we conclude that the stance of a relational expert is a possibility in face of social constructionist epistemology. Additionally, we describe how this stance can work for the maintenance of the responsivity and collaboration between therapist and client. We hope that this article is a contribution for the start of a dialogue in the field, where traditional expertise (i.e., therapists’ particular specialized knowledge) is regarded as potentially useful, depending on how they are used in the practice of family therapy.

Key Words: Family Therapy; Collaborative Therapy; Social Constructionism.


 

 

“Quando alguém te pergunta: ‘Que queres dizer com isso?’, referindo-se a algo que acabas de fazer ou dizer, tua resposta apropriada seria: ‘Ainda não sei, ainda não terminamos nossa conversação.” (John Shotter)

A história da terapia familiar é diversa e contempla diferentes conceituações sobre família, modelos de atendimento e abordagens epistemológicas as quais causaram transformações paradigmáticas em sua prática. Seu início se caracteriza no campo das terapias fundamentadas pela prática clínica da psicanálise tendo como foco de atuação o indivíduo e o entendimento de seus conflitos como causados por conteúdos intrapsíquicos. A perspectiva sistêmica, neste campo de conhecimento, iniciou uma grande mudança ao deslocar o foco de atuação para a família e o entendimento de seus conflitos como fazendo parte de uma causalidade circular, marcada pelas relações interpessoais entre seus membros, como em um sistema. Tal alteração foi considerada a primeira mudança paradigmática, uma vez que deslocou a ênfase, até então fixada no indivíduo e em sua vida intrapsíquica, para o contexto e sua vida inserida em sistemas relacionais (Grandesso, 2000; Paula-Ravagnani, McNamee, Rasera, & Guanaes-Lorenzi, 2016; Rapizo, 1996).

Da psicanálise para a terapia familiar sistêmica, entretanto, a despeito da mudança do foco do indivíduo para a família, não houve mudança significativa na postura do terapeuta, que continuou a ser compreendido como especialista no que se refere aos modos de funcionamento da família, cuja especialidade se baseava em um saber teórico anterior ao encontro com as famílias. A exemplo, o grupo de Milão buscava entender o jogo relacional jogado pela família para, então, montar um contra-jogo com o objetivo de alcançar a mudança vista pelos terapeutas como necessária. Com o desenvolvimento de suas ideias, o próprio grupo de Milão passou a entender que, na prática da terapia, profissionais e familiares, juntos, formavam um sistema. Voltaram sua atenção ao sistema terapêutico mais do que ao sistema familiar ao aplicar o conceito de cibernética à própria cibernética. Passaram a trabalhar, então, com a noção da cibernética de segunda ordem (Cecchin, 1987). Assim, o papel do terapeuta passou a ser repensado e compreendido de outras maneiras. A partir da consideração da impossibilidade de controle do sistema e da identificação de não neutralidade do observador, a posição do terapeuta como especialista começou a ser posta em questão, conforme explicam algumas produções que fazem esse resgate histórico (Grandesso, 2000; Paula-Ravagnani, McNamee, Rasera, & Guanaes-Lorenzi, 2016; Rapizo, 1996).

Em retrospectiva, é possível ver uma progressão lógica na discussão acerca do lugar da especialidade em terapia familiar, saindo de um terapeuta extremamente interventivo e que se pretendia conhecedor da realidade das famílias, em direção a um terapeuta que abre mão de seu lugar de especialidade e privilegia relações mais horizontais na construção conjunta de realidades preferíveis para essas famílias (Rapizo, 1996). Com relação a essa última posição, a chamada postura do não saber, como um conceito associado à terapia colaborativa, teve especial relevância na área por ter proposto reorientar, de forma radical para a época, o tipo de relação preconizado entre terapeuta-cliente (Anderson & Goolishian, 1992).

Ao localizarmos historicamente a construção da terapia colaborativa, é possível reconhecer que ela se opunha à tradicional especialidade de um terapeuta que supunha conhecer os melhores caminhos para a intervenção quanto às formas de viver das famílias. Isso se fez em um terreno fértil de discussão na área da terapia familiar à época, que teve nos processos reflexivos propostos por Tom Andersen (1991) um pioneirismo no questionamento sobre o tipo de relação terapêutica produzido a partir dessa noção de especialidade. Coerente com essa proposta, a postura do não saber propunha um terapeuta disposto a conhecer com as famílias suas próprias formas de entender a si mesmas e seus dilemas. Tornou-se, assim, um discurso potente, amplamente compartilhado por terapeutas familiares e considerado muito útil no campo (Gergen & Warhuus, 2001; Sundet, 2011; Sutherland & Strong, 2011). Ao mesmo tempo, o ineditismo e radicalismo da proposta suscitou muitos debates e questionamentos, sobretudo considerando que a colaboração e o não saber presumiriam uma relação de igualdade entre terapeuta e cliente que não seria possível alcançar. Com isso, autores da área apontaram que as relações de poder presentes na terapia estariam sendo desconsideradas, de modo a inadvertidamente reproduzir a opressão que, justamente, buscavam evitar (Guilfoyle, 2003; Hare-Mustin, 1994; Zimmerman, 2011).

Inseridos neste campo de debate teórico – em nossas próprias práticas com famílias e em constante processo de aprendizagem – vivemos experiências que dialogam com os dois tipos de discussões teóricas citadas acima. Por um lado, nos sentimos confortáveis com a ideia do terapeuta que assume a posição de aprendiz e colaborador, pois também não nos sentimos à vontade com uma postura de autoridade diante dos clientes. Por outro lado, contudo, percebemos que esse entendimento, muitas vezes, convida a um significado negativo a respeito do terapeuta que ocupa a posição do especialista ao oferecer seus entendimentos baseados em conhecimentos prévios. Em nossas práticas, frequentemente deparamo-nos com situações nas quais os clientes ativamente solicitam olhares e pareceres próprios da posição do especialista. Entendemos este posicionamento como algo historicamente construído no campo do cuidado, em que se espera que o profissional possua um conhecimento específico, uma especialidade a qual deve ser utilizada em seu trabalho. Percebemos como estes pedidos, quando colocados em diálogo com a postura do não saber, causam certo conflito teórico e prático sobre a possibilidade de conciliar os diferentes entendimentos presentes no processo terapêutico acerca da especialidade.

Movidos por essas inquietações teóricas e práticas, nos perguntamos: o que caracteriza a postura do não saber proposta pela terapia colaborativa? Quais as diferentes formas de compreendê-la? Ao se contrapor ao lugar do terapeuta como especialista, a terapia colaborativa constrói que tipo de atuação possível? É possível estar na posição de especialista e ainda atuar de forma colaborativa e em consonância com a epistemologia construcionista social?

Buscando responder a essas perguntas, este artigo tem como objetivo refletir sobre a postura do não saber e o lugar do especialista na terapia colaborativa. Exploraremos duas diferentes possibilidades de significação dessa postura e seus efeitos para a construção prática da especialidade em terapia familiar. Nosso objetivo não é produzir uma argumentação em favor de uma ou outra maneira de conduzir as conversas terapêuticas, mas dar visibilidade a como diferentes leituras sobre o lugar do especialista em terapia colaborativa proporcionam determinadas formas práticas em detrimento de outras.

Com isso, buscamos ampliar entendimentos quanto à postura do terapeuta familiar, trazendo à luz as teorias com as quais dialogam e posicionando-os como alternativas potencialmente úteis. Ao final da discussão propomos a postura do especialista, a depender do modo como a significamos, como potencialmente relacional e colaborativa. A partir desse enquadre, argumentamos que um dos entendimentos em específico quanto à postura do não saber – aquele que se refere ao especialista relacional em terapia familiar – favorece uma prática na qual os conhecimentos prévios do terapeuta, trazidos para a relação, podem ser recursos úteis e importantes, não sendo necessário deixá-los de fora da conversa.

 

O contexto teórico e prático do não saber: Construcionismo Social e Terapia Colaborativa

O campo da terapia familiar experimentou importantes transformações epistemológicas a partir da década de 80, com sua aproximação ao movimento científico e cultural da pós-modernidade. Dentre as várias implicações desse contato, o tradicional interesse na compreensão e intervenção na estrutura e funcionamento das famílias deu lugar a um enfoque nos processos de construção de sentindo, valorizando especificamente os entendimentos atribuídos pelos próprios clientes às suas vidas (Gergen & Warhuus, 2001). De um terapeuta interessado em conhecer e intervir sobre a realidade da família (ditada pela teoria), o campo passou a valorizar um terapeuta preocupado em construir junto às famílias sentidos sobre suas experiências que pudessem ser úteis na transformação de suas formas de viver e lidar com seus dilemas (McNamee & Gergen, 1992; Rapizo, 1996).

O Construcionismo Social compõe parte deste movimento, promovendo algumas transformações. A premissa fundamental dessa perspectiva descreve a terapia como conversa, um contexto específico de construção relacional de sentidos e de realidades sociais. O foco está no modo como o terapeuta se coloca em relação com seu cliente. Dessa forma, o Construcionismo Social oferece primordialmente, para o campo da terapia familiar, uma orientação ou postura com relação à produção do conhecimento a partir da qual as diferentes teorias e técnicas se transformam em opções discursivas para o engajamento no processo conversacional (McNamee, 2004). Não há, portanto, uma única proposta específica de prática construcionista. Contudo, No entanto, diferentes propostas terapêuticas são sensíveis a esses pressupostos e reconhecidas pela comunidade internacional como compartilhando de ênfases importantes para a terapia como construção social. Essas ênfases têm a ver com a flexibilidade, a consciência da construção social, a colaboração e o reconhecimento da relevância dos valores na prática terapêutica (Gergen & Warhuus, 2001).

Dentre essas propostas, a terapia colaborativa (Anderson, 2012; Anderson & Gehart, 2007; Anderson & Goolishian, 1992) é uma das mais tradicionalmente reconhecidas como compartilhando de uma orientação epistemológica construcionista social. De acordo com Harlene Anderson (2007a), a terapia colaborativa decorre de sua parceria com Harold Goolishian nos anos 70, quando trabalharam juntos na University of Texas Medical Branch em Galveston, nos Estados Unidos da América. Desde então, foi sendo construída, reconstruída e ampliada em sua prática por diferentes autores e grupos de pesquisadores em diversos países. Embora reconheçamos essa difusão que possibilita a origem de diferentes discursos e práticas sobre a terapia colaborativa, destacaremos neste artigo a fundamentação epistemológica e características centrais dessa perspectiva conforme descritas na própria obra de Anderson (2012, 2007a,b,c,d).

Para além de sua fundamentação no movimento construcionista social, a terapia colaborativa também foi influenciada por outras linhas de pensamento pós-modernas, como a hermenêutica contemporânea. Em comum, a hermenêutica e o movimento construcionista consideram o conhecimento e a linguagem como atividades dialógicas e relacionais, as quais dão sentido e constroem as nossas relações sociais e descrições sobre o mundo (Anderson, 2007b).

Assim, a partir dos anos 80, no campo da terapia familiar, os sistemas humanos deixaram de ser pensados como cibernéticos e passaram a ser compreendidos como sistemas linguísticos. Autores como Wittgenstein, Bakhtin, Billig, Vygotsky e Voloshinov permitiram o início de um movimento crítico às psicoterapias tradicionais modernas e sua linguagem baseada no déficit, na tradição do especialista e classificação diagnóstica. Também nesse momento histórico, com a influência da metáfora narrativa o self passou a ser considerado uma narrativa dialógica (Anderson, 2007b).

O foco central da terapia colaborativa está na linguagem, no diálogo e no estabelecimento de uma relação dialógica entre terapeuta e cliente. Sua proposta parte de uma mudança radical “...dos métodos tradicionais em que o terapeuta ensina sua linguagem para o cliente para um enfoque no terapeuta aprendendo a linguagem do cliente” (Anderson, 2007c, p. 24, tradução nossa). A partir deste entendimento, a postura do não saber é central a essa proposta terapêutica. Ela descreve a importância do profissional se deixar guiar pelo cliente, sendo este considerado o especialista do conteúdo trazido para a conversa. Ao profissional caberia, em contrapartida, o cuidado na construção do contexto de comunicação, no qual esses conteúdos pudessem ser negociados e transformados (Anderson & Goolishian, 1992).

Contudo, a partir de diferentes contextos de conversa, como, por exemplo, em nossas próprias práticas profissionais com clientes e colegas, em congressos sobre a temática ou, ainda, ao explorarmos a literatura pertinente à área, notamos haver diferentes possibilidades de entendimento acerca da postura do não saber. Cada uma dessas possibilidades constrói a especialidade em terapia familiar de forma específica, decorrendo daí certas ações possíveis e/ou preferíveis para os terapeutas diante da prática. A seguir, buscamos explorar alguns desses entendimentos, conectando-os com suas tradições teóricas de compreensão e buscando refletir sobre suas implicações para a prática.

O especialista do processo: um entendimento possível sobre o não saber

A forma mais tradicional de compreensão do “não saber”, a partir da proposta da terapia colaborativa, entende o conceito como propondo uma diferenciação de duas especialidades no encontro terapêutico. De um lado, os clientes e famílias são os especialistas do conteúdo, pois sabem sobre suas próprias vidas e experiências; do outro, os terapeutas são os especialistas do processo, organizadores da conversa terapêutica com intuito de expandir o processo de construção de sentidos em direções úteis para os objetivos situados da terapia (Anderson & Goolishian, 1992).

Há nesse entendimento uma forma específica de participação na conversa proposta para o terapeuta que direciona sua atenção para o processo conversacional. Isso demanda, em grande medida, que o terapeuta suspenda ou abandone seus conhecimentos prévios, aqueles que não foram construídos no diálogo, na relação imediata, para se tornar curioso com relação à história do cliente. O terapeuta, portanto, não deve fazer análises e descrições baseadas em seus conhecimentos prévios, pois seu objetivo é compreender o que o cliente traz e, ao mesmo tempo, manter o diálogo em movimento (Anderson, 2007b). Dito de outro modo:

O terapeuta não direciona o relato narrativo, não escolhe qual descrição deve emergir, não privilegia uma descrição sobre outra, e não determina qual é a mais verdadeira, mais útil, ou preferível. O papel do terapeuta é convidar e encorajar um espaço e um processo dialógico, mantendo-se aberto para a inesperada novidade que emergirá. (Anderson, 2007b, p. 18, tradução nossa)

A postura do não saber é descrita como um dos recursos que proporciona ao terapeuta a possibilidade de estabelecer essa relação de aprendizagem. Assim, ao exercê-la, o terapeuta se reconhece como aprendiz, deixando em suspenso seus conhecimentos prévios (Anderson, 2007d). Ele permanece completamente voltado para apreender as descrições e compreensões de seus clientes. Em resumo:

Nós nos tornamos genuinamente imersos e interessados em conhecer as histórias dos nossos clientes. (…) Ou seja, nós, cada vez menos, buscamos dar sentido às histórias de nossos clientes a partir de nossos mapas de compreensão enquanto terapeutas. Ao invés disso, nós nos tornamos absorvidos na tentativa de compreender o sentido que os clientes dão às coisas a partir de seus mapas de compreensão. Consequentemente, nesse esforço para aprender e compreender o que eles dizem (…) nossas questões passam a ser informadas por aquilo que acabara de ser dito ou o que mais tarde descrevemos como vindo de dentro das conversas locais, ao invés de sendo informadas por conhecimento prévio trazido de fora. (Anderson, 2007c, p. 25, tradução nossa, grifo no original)

Como premissa básica e fundamental, a postura colaborativa considera o diálogo como intrinsecamente generativo, sendo papel do terapeuta encorajar que ele aconteça (Anderson, 2007d). Considera-se que a postura do não saber exercida pelo terapeuta auxilia no processo de manutenção do diálogo. Refletindo sobre as implicações dessa forma de compreensão do não saber para o lugar da especialidade do terapeuta na conversa, Gergen e Warhuus (2001) apontam que muitos terapeutas colaborativos desenvolveram certa animosidade em relação às intervenções tradicionais. Esses terapeutas entendem tais intervenções como monológicas, ou seja, como estáticas e fechadas, que não enriquecem as possibilidades de entendimento mútuo e de ser dos participantes. Consequentemente, presumem que adotar a posição de especialista afasta o terapeuta de uma modalidade de conversa dialógica, na qual os interlocutores, de forma fluída, constroem conjuntamente entendimentos sobre suas questões (Littlejohn & Foss, 2008).

Segundo Gergen e Warhuus (2001), “para o especialista colaborativo, a ação terapêutica é, não só manipulativa, mas também geradora de um sentido de participação inautêntica na relação terapêutica (e.g., a realidade do terapeuta está fora da cena)” (p. 38). Assim, os autores descrevem essa possibilidade de significação a respeito da postura do não saber como um discurso que se faz presente na área em que alguns terapeutas consideram que, ao se opor à postura do especialista, “não saber” significa considerar a participação direta do terapeuta (através de significações advindas de conhecimentos prévios) como algo indesejável e, até mesmo, impróprio e incoerente. Dessa forma, percebemos que esse entendimento da postura do não saber tem como decorrência possível a construção de um significado negativo a respeito da utilização do saber do especialista na conversa com os clientes – mesmo que essa não fosse a intenção inicial dos autores ao propor as bases da terapia colaborativa.

Ao colocar o papel do terapeuta como sendo ouvir e compreender o conteúdo trazido pelos clientes e fomentar um diálogo que permaneça relacionado a esse conteúdo, Anderson (2007a,b,c,d) gera um entendimento possível de que tudo aquilo que o terapeuta possui como conhecimento anterior à relação estabelecida com o cliente deveria ser silenciado. Afinal, a linguagem do terapeuta, seus conhecimentos prévios adquiridos com a leitura de outras teorias ou abordagem do campo psi dificilmente emergiriam como conteúdo a partir da fala dos clientes.

Em nossas práticas, o questionamento a esse entendimento iniciou quando notamos que não responder às expectativas dos clientes de assumirmos certos lugares de especialidade algumas vezes gerava desconforto e quebra no diálogo. Nesses casos, notamos que uma conversa que se mantinha nos entendimentos prévios dos clientes deixava, aos poucos, de fazer sentido para eles quando suas expectativas eram receber novos olhares. Tais inquietações parecem incongruentes com o entendimento de que a especialidade do terapeuta está focada unicamente no processo conversacional e que “não saber” se refere a não saber o quê (conteúdo), mas apenas como (processo) em terapia. Como podemos, então, construir um sentido para essas inquietações a partir de outros entendimentos?

Inquietações com a especialidade do terapeuta limitada ao processo

Retornemos brevemente ao contexto histórico no qual a proposta de não saber se produziu. Em um campo de práticas marcado pela especialidade e intervenções diretivas como a terapia familiar faz sentido que a proposta tenha sido entendida como uma negação ao status quo. Contudo, Gergen e Warhuus (2001) argumentam que “não existe nada no Construcionismo que conduza necessariamente contra ‘o assumir uma postura do saber’ numa relação terapêutica; opiniões fortes podem por vezes ser úteis” (p. 37). Também Anderson (2012), em outra ocasião, buscou borrar os limites entre “saber” e “não saber”. Para ela, se o conhecimento e a linguagem são processos contextualizados e locais, então quaisquer entendimentos produzidos sobre as pessoas são fruto de processos interativos. Não é possível alguém – seja terapeuta ou cliente – “saber” ou “não saber” sozinho: quaisquer entendimentos em terapia são realizações relacionais e, portanto, produtos de determinados modos de interação.

Em nosso entendimento, esse foco mais amplo para a discussão (saindo do que o terapeuta pode ou não saber, em direção à discussão sobre a terapia como um processo relacional), funciona para dissolver a problemática quanto à distinção entre conteúdo e processo que deu origem à nossa inquietação. A partir de uma epistemologia construcionista social – da qual a terapia colaborativa compartilha – entendemos os sentidos produzidos em interação como construções relacionais. Assim, para compreender uma conversa, não podemos descolar uma única frase de seu contexto conversacional. Toda fala é um complemento de alguma frase anterior e, ao mesmo tempo, material para a próxima resposta. Neste sentido, quando “...se pretende compreender a comunicação humana, a menor unidade de análise deve ser uma tríade de ações” (Pearce, 1996, p. 180). Essa tríade é composta por sequências de movimentos em uma interação, e mostra como, para fazer sentido, cada movimento depende do que o antecedeu, bem como daquele que o sucede.
Dessa forma, qualquer análise pautada apenas na fala do terapeuta ou do cliente, ou seja, em um único movimento da interação, desconsidera a tríade das ações (a fala anterior do cliente ou terapeuta, a resposta a essa fala e a fala posterior). Isso cria a ideia mal orientada de que seria possível o conteúdo da conversa ser unicamente responsabilidade de alguém. É curioso notar como essa interpretação – apesar de possível e amplamente difundida – é produto de uma leitura específica, de uma forma de dar sentido ao material associado à terapia colaborativa a partir de uma visão da linguagem como representativa do mundo, diferente daquela que fundamenta o movimento construcionista social. Contudo, destacamos que esse mesmo material sempre apontou também para as relações e a conversa como aspecto central da prática. Assim, de acordo com Anderson (2007d, p. 39), “escutar, ouvir e falar são igualmente importantes”.

Entendemos, portanto, que a nossa inquietação quanto ao entendimento da especialidade do terapeuta estar limitada exclusivamente ao processo surge quando focalizamos a fala do terapeuta deslocada do contexto no qual se produz, como se o conteúdo trazido pelo terapeuta a partir de seus conhecimentos prévios tivesse um sentido em si mesmo e independente do modo como o cliente responderá a ele. Nos momentos em que os clientes nos solicitam entendimentos diferentes dos que já possuem, em que nos pedem um olhar específico de nossa especialidade, compreendemos que, ao manter o foco no conteúdo trazido por eles e responder a partir disso ou com novas perguntas, corremos o risco de perder a responsividade na conversa. Manter-se responsivo, nesse contexto de conversa, significaria responder a partir da fala imediata do cliente, o qual, explicitamente, solicitou um olhar diferente. Essa responsividade é necessária para a manutenção de qualquer diálogo, uma vez que os sentidos não se encontram nas palavras e nem no interior do falante ou do ouvinte, mas são construídos em interação (Voloshinov et al., 1973, citado por Lannamann & McNamee, 2011).

Dessa forma, é possível entender que conteúdos anteriores à conversa com os clientes poderiam servir, quando solicitados, como convites para a produção de novas descrições, diferentes daquelas originais trazidas por eles, mas que também fizessem sentido diante de suas experiências vividas. Quando o terapeuta se nega a estar nesse lugar – independente do contexto conversacional construído na relação –, ele não está sendo responsivo à interação imediata, mas a uma postura de não saber trazida pela teoria e, portanto, também externa à conversa em si mesma.

Como vimos, a responsividade é essencial para a manutenção do diálogo. Assim, deixar de oferecer novas descrições pautadas em seus conhecimentos anteriores, quando solicitado, seria incoerente com a proposta dialógica e de construção relacional de sentidos que fundamenta a própria terapia colaborativa. Buscamos discutir que essa descrição do especialista como ruim em qualquer contexto de conversa pode gerar, da mesma forma, a quebra no diálogo a qual a postura buscou prevenir.

Buscando diferenças adequadamente incomuns na construção do diálogo

Com relação ao diálogo, Stewart e Zediker (2000) identificam duas principais formas de entendimento presentes na literatura. Autores que compartilham de abordagens descritivas para o diálogo entendem-no como uma característica prevalente e definidora dos seres humanos – seres sociais, relacionais e interacionais – que simplesmente está dada em qualquer relação e precisa ser descrita e estudada. Na segunda forma, abordagens prescritivas para o diálogo entendem que nem toda interação é necessariamente dialógica, e que construí-las como tal exige esforços e escolhas específicas por parte dos interlocutores em suas formas de relacionamento.

A depender da discussão empreendida, a terapia colaborativa (Anderson, 2012; Anderson & Gehart, 2007) toma o diálogo de forma descritiva ou prescritiva. Quando propõe formas específicas de interação que funcionariam para a construção da dialogia na interação, compartilha de uma perspectiva prescritiva para o diálogo. Contudo, em muitos outros momentos, partindo de uma abordagem descritiva, argumenta que o diálogo é generativo em si mesmo. A partir dessa premissa, a principal tarefa do terapeuta seria manter a conversa em movimento, sempre através de perguntas curiosas e da postura do não saber.

Em nosso entendimento, essa última forma de abordagem para o diálogo – descritiva – no contexto da terapia colaborativa fomenta o tipo de leitura negativa com relação à postura do especialista nas relações. Explicamos: se consideramos que o diálogo é sempre generativo em si mesmo, então a escolha de evitar a inserção de conteúdos à conversa que não tenham sido trazidos pelo próprio cliente faz sentido na medida em que há aqui uma compreensão de que o próprio engajamento no diálogo, eventualmente, poderá ser transformador. Contudo, se partirmos de uma abordagem prescritiva, essa premissa não faz sentido: nem toda conversa é generativa, independente do conteúdo e do processo como se conversa. Em nossa experiência, em alguns casos, embora a conversa seja mantida a partir da insistência na postura do não saber, não notamos mudanças nas narrativas ou nos posicionamentos dos clientes. Com isso, passamos a questionar a utilidade de sempre tomar uma abordagem descritiva para o diálogo em terapia.

Em congruência com uma abordagem prescritiva, ao discorrer sobre os efeitos das intervenções do terapeuta junto às famílias, Tom Andersen (1991) aponta para três tipos de diferenças possíveis de acontecerem em um diálogo. Primeiro, quando as pessoas se encontram com ideias demasiadamente comuns às que já possuem, ou seja, muito parecidas com o que já trazem, elas tendem a ficar iguais. Segundo, ao se encontrarem com ideias demasiadamente incomuns, diferentes demais, elas tendem a se fechar e o diálogo paralisa. Por fim, ao se encontrarem com ideias adequadamente incomuns, tal encontro pode propiciar uma mudança. A esse último tipo de ideia Bateson (1972) chamava de “diferença que faz diferença”.

Para Andersen (1991), portanto, o diálogo não seria sempre transformador; a transformação seria uma das possibilidades, algo que ocorre diante da apresentação de diferenças adequadamente incomuns na conversa. A partir dessa premissa, a solicitação de ideias ou sugestões para os terapeutas, por parte dos clientes, pode ser compreendida no contexto de uma busca por descrições adequadamente incomuns de suas histórias. Com essa diferença que faz diferença, o diálogo se torna generativo e a mudança terapêutica possível.

No contexto dessas ideias, a diferenciação entre especialidades de conteúdo e processo não é suficientemente satisfatória, pois uma abordagem prescritiva para o diálogo traz a noção de que nem toda conversa é dialógica e, portanto, não se pode assumir que participar dela a partir dos conteúdos exclusivamente trazidos pelo cliente produzirá mudanças. Nesse sentido, Linell e Luckmann (1991, citados por Sutherland & Strong, 2011) apontam que a diferença entre o terapeuta e o cliente, em termos de conhecimento e outros aspectos, é algo inevitável e necessário para a manutenção do diálogo. Sem essas diferenças, a colaboração e a comunicação seriam desnecessárias. Nessa mesma linha de raciocínio, Gergen e Warhuus (2001) explicam que diferentes inteligibilidades flexibilizam o momento interativo e podem enriquecer o diálogo: “A terapia eficaz pode requerer – e tipicamente requer – o uso de múltiplos gêneros discursivos, incluindo os da cultura envolvente. Tal significa que, para efeitos da prática terapêutica, a porta está aberta a todo o leque de significados culturais” (p. 33).

O desafio aqui está em trazer os entendimentos do terapeuta para a coordenação na conversa de forma que sirvam como convites para a continuidade do diálogo – e não como sendo uma descrição mais acurada ou verdadeira de sua realidade (McNamee, 2004). Nesse sentido, Campbell e Ungar (2004) descrevem que a polivocalidade, ou seja, a presença de múltiplos sentidos através de diferentes vozes, garante a possibilidade para o cliente desconstruir discursos anteriores e construir novas histórias sobre si mesmo. Pensamos, a partir disso, que o pedido dos clientes por um olhar do terapeuta pode ser aproveitado como oportunidade para oferecer e construir tal polivocalidade como possibilidade na relação.

Nesse sentido, entendemos que o conhecimento prévio do terapeuta, mesmo aquele descrito como especialidade, pode funcionar como material para a produção de novas descrições e novos sentidos no contexto da conversa terapêutica imediata. Chegamos, com isso, à proposta de entendimento sobre um especialista relacional.

O especialista relacional: uma compreensão alternativa

O entendimento do não saber como sendo uma negação dos conhecimentos prévios do terapeuta impõe limitações importantes à prática. A partir dessa reflexão, propomos aqui uma leitura para a questão a partir de uma definição do terapeuta como um especialista relacional. Se partimos da premissa de que o diálogo não será sempre generativo, é possível considerar que os saberes do terapeuta podem oferecer diferentes perspectivas potencialmente transformadoras. Nesse caso, a posição de saber do especialista poderia ser considerada útil para o processo terapêutico a depender da relação estabelecida e do contexto da conversa. Compartilhando de uma fundamentação construcionista social, entendemos que não se trata de abandonar saberes tradicionais classificados como especialidades, mas sim refletir sobre como e em quais momentos esses saberes podem ser úteis na relação terapêutica construída (Gergen & Warhuus, 2001; McNamee, 2004). Dessa forma, o lugar e a adequação da especialidade em terapia não podem ser determinados a priori, porém sempre a partir de sua construção em um contexto relacional.

A partir disso, os saberes do especialista não seriam vistos como oposição à construção do diálogo, mas sim como uma das maneiras de torná-lo generativo. Aqui, é fundamental que o terapeuta respeite o modo como o cliente participa da conversa, tendo como critério principal de avaliação acerca dessa construção o próprio andamento da conversa. Quando os clientes nos pedem um olhar da posição do especialista, eles o fazem buscando ajuda para pensar algo que ainda não pensaram sozinhos; não necessariamente para seguir instruções e realizar tarefas. Participar de uma conversa com um especialista não precisa significar abrir mão de sua própria reflexão e escolha diante das condutas a seguir em sua vida, mas sim ampliar repertórios aos quais, muitas vezes, as pessoas não têm acesso em suas relações cotidianas. A relação estabelecida e a forma como a conversa é conduzida guiarão a possibilidade de agenciamento do cliente, e não a fala do terapeuta em si mesma, recortada do contexto da conversa, fora da tríade das falas (McNamee, 2004).

Essa posição parte de um entendimento de que, como terapeutas, não podemos entrar para a conversa sem nossas próprias tradições históricas, nossas relações e formas de discurso. Ao invés de evitarmos essas tradições, nos perguntamos como elas podem ser vocabulários úteis para o caminhar na conversa com os clientes (McNamee, 2004). Muitos autores no campo fazem propostas de tipos e formatos de conversa específicos que, apesar de trazerem conteúdos muitas vezes distintos daqueles colocados pelos clientes, se mantêm coerentes com uma epistemologia construcionista social. A seguir, citamos alguns exemplos.

Primeiro, a terapia focada na solução, que possui um amplo repertório de perguntas específicas que posicionam os terapeutas a construírem uma realidade na conversa que foque nos recursos, e não nos problemas (de Shazer, 1985). Nesse mesmo sentido, a proposta da equipe reflexiva (Andersen, 1991) mostra como a introdução de um tipo especializado de conversa funciona para a coordenação de diferentes olhares e conceitos, de forma não autoritária, em terapia. A partir da fala dos membros da equipe, a família pode ouvir diversas possibilidades interpretativas sobre sua história continuando livre para escolher quais dessas versões comentar ou não. Também Cecchin, Lane e Ray (1992, citados por Gergen & Warhuus, 2001) enfatizam a importância de os terapeutas serem desleais a determinada ideia ou história quando estas deixam de ser úteis, pois a insistência em uma história levaria ao empobrecimento da realidade terapêutica. Mais recentemente, Martins e Guanaes Lorenzi (2017) argumentam que a autorrevelação do terapeuta, ou seja, quando o terapeuta deliberadamente escolhe compartilhar aspectos de sua vida pessoal em sessão, pode ser um recurso potente de conversa, desde que utilizada de forma reflexiva e politicamente refletida.

Assim, argumentamos que o terapeuta fundamentado pela epistemologia construcionista pode utilizar conhecimentos prévios, decorrentes de sua formação pessoal e profissional, e ainda ser coerente com a postura do não saber. Isso é possível desde que o profissional não imponha seus conhecimentos como a versão mais correta ou definitiva da história do cliente. Quando autores como os descritos acima apontam intervenções desejáveis ao terapeuta, entendemos que os mesmos não estão propondo um retorno à postura do especialista como único detentor da Verdade, característica do paradigma moderno. Isso porque a maneira com que propõem as intervenções, de forma flexível e sempre observando sua utilidade na conversa, se difere radicalmente deste paradigma anterior.

Entendemos que esses autores (Andersen, 1991; Cecchin, Lane, & Ray, 1992, citados por Gergen & Warhuus, 2001; Martins & Guanaes Lorenzi, 2017; McNamee, 2004; Shazer, 1985) também consideram seus clientes como especialistas em suas próprias vidas e se mostram dispostos e curiosos para aprender com eles a respeito de seus significados particulares, seus valores e histórias singulares. Buscam, assim, compreender de que maneira os clientes constroem suas relações, seus recursos e suas dificuldades. Contudo, esses autores apontam que, para reconhecer o cliente como especialista, não é necessário negar os saberes do terapeuta.

Concluímos, então, argumentando pela especialidade relacional: o que enquadra um especialista em uma relação de autoridade não é a utilização de saberes prévios na conversa, mas sim o tipo de relação que o terapeuta estabelece ao participar da conversa. De que forma esse terapeuta entende sua intervenção: como uma verdade ou como um recurso para o caminhar da conversa? Como essa intervenção é colocada na relação com a família atendida: de forma impositiva ou como uma abertura para discussão? Acreditamos que o especialista relacional se constrói como uma postura possível de colaboração quando a conversa – incluindo especificamente a resposta dos clientes frente à “especialidade” do terapeuta – se torna o foco da avaliação.

A chave para compreender essas reflexões não é uma preocupação com o fato de o terapeuta ter compartilhado seus conhecimentos, mas sim o como o fez (Sutherland & Strong, 2011). A relação de colaboração pode ser mantida quando o terapeuta não pretende sobrepor seu conhecimento ao do cliente, mas participa ativamente do diálogo. Os conhecimentos trazidos para a interação, quando descolados do contexto da conversa, podem até mesmo parecer próprios da postura do especialista. Mas quando analisados no contexto de construção da conversa, tornam-se parte de uma especialidade relacional. O conhecimento prévio do terapeuta, se utilizado responsivamente na conversa, auxilia na tarefa de construção de sentidos úteis para os clientes. Essa perspectiva só pode fazer sentido quando olhamos para a linguagem em ação, no que se inclui não somente a participação do terapeuta na conversa, mas principalmente a resposta dos clientes (Martins, Silva, & Guanaes-Lorenzi, 2014).

Considerações finais

Buscamos, com este artigo, reconhecer diferentes entendimentos sobre a postura do não saber e suas implicações para a construção do lugar da especialidade na terapia familiar de fundamentação construcionista, em geral, e terapia colaborativa, especificamente. Notamos que, para ser relacional e colaborativo, não é necessário descartar os conhecimentos advindos de teorias e construções próprias das especialidades modernas tradicionais. Ao contrário, simplesmente negar a especialidade em um contexto de cuidado que histórica e culturalmente nos coloca nessa posição pode gerar um estranhamento por parte dos clientes que procuram atendimento em busca desse saber. Algumas vezes, esse estranhamento pode gerar uma ruptura no diálogo por ser demasiadamente incomum para o cliente.

Sendo assim, a proposta do artigo é refletir sobre como diferentes construções teóricas e saberes prévios dos terapeutas podem servir como material potente para a construção de novos sentidos na conversa. Sensível ao desenvolvimento passo a passo do diálogo, o especialista relacional oferece seu conhecimento, advindo tanto de sua experiência acadêmica e prática (McNamee, 2004), como de sua própria experiência de vida (Martins & Guanaes-Lorenzi, 2017), e fica atento a como seus clientes se posicionam diante disso. Esse tipo de fala ajuda ou atrapalha a conversa a caminhar? Que possibilidades de ação são construídas diante dessa intervenção? A atenção ao momento interativo é central na construção da utilidade ou inadequação de qualquer intervenção – incluindo aquelas que envolvem o compartilhamento de informações do terapeuta que não surgiram propriamente do conteúdo trazido pelos clientes.

Se considerarmos a terapia como um processo de influência e transformação mútuas (Sutherland & Strong, 2011), então, a depender do modo como o cliente responde à “especialidade” ou “conhecimento” do terapeuta, este conhecimento pode ser também transformado. Afinal, o terapeuta considera e busca uma relação de engajamento e construção conjunta de sentidos, flexibilizando também suas formas de compreensão.

Ao refletir criticamente sobre diferentes entendimentos para a especialidade e o não saber em terapia colaborativa, não temos a intenção de oferecer uma versão finalizada ou mais verdadeira sobre essas posturas e conceitos tampouco de desvalorizá-los. Pelo contrário, esperamos que este exercício teórico funcione para fomentar o diálogo sobre como diferentes apreensões e usos dos conceitos, na prática, os transformam e criam diversas possibilidades de atuação.


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Recebido em: 29/08/2017
Aprovado em: 22/09/2017
 

I José Luís Rodríguez Fiestas, psicólogo da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. joseluisrodriguez@asmundonuevo.com

II Carlos Expósito Afonso, psicólogo da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. carlosexposito@asmundonuevo.com

III Juan Báez García, psicólogo e diretor da Asociación Solidaria Mundo Nuevo, Tenerife, Ilhas Canárias. juanbaez@asmundonuevo.com

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