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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

Perspectivas de Profissionais sobre Acolhimento de Crianças e Adolescentes e Reintegração Familiar

 

Professional Perspectives on Institutional Embracement of Children and Adolescents and on Family Reintegration

 

 

 

Joselma Regilda dos PassosIIsabela Machado da SilvaII

I Interpsi – Brasília, DF, Brasil.
II Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF, Brasil.

 


RESUMO

Diante da realidade do acolhimento institucional de crianças e adolescentes em nosso país, este estudo visa à verificação da perspectiva dos profissionais que atuam nessas instituições sobre as famílias e a reintegração familiar. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com três profissionais. Na análise dos dados, adotaram-se como pilares teóricos os fundamentos da Teoria Sistêmica e da Psicologia Positiva, utilizando-se como eixos de análise a atuação multidisciplinar, os fatores de proteção e risco para a reintegração familiar, as vulnerabilidades dessas famílias e os caminhos possíveis para fortalecer sua resiliência. Fatores como vulnerabilidade social, repetição transgeracional da violência e a permanência dos motivos que levaram ao abrigamento destacaram-se na fala dos participantes deste estudo. Constatou-se a necessidade de atuação de equipes multidisciplinares qualificadas para lidar com situações tão complexas.

Palavras-chave: fatores de risco e proteção; acolhimento; vulnerabilidade; resiliência; reintegração familiar.


ABSTRACT

Considering the reality of institutional embracement of children and adolescents in our country, this study aims to verify the perspectives of professionals working in these institutions on these families and family reintegration. Semi-structured interviews were carried on with three professionals. In data analysis, Systemic Theory and Positive Psychology fundamentals were adopted as theoretical pillars, using as analytical categories multidisciplinary team performance, protection and risk factors for family reintegration, vulnerabilities of these families and possible ways to strengthen their resilience. Factors such as social vulnerability, transgenerational transmission of violence and the permanence of the reasons for embracement were highlighted by the participants of this study. It was noted the need of expertise of multidisciplinary teams, which should be qualified to deal with such complex situations.

Key Words: protection and risk factors; user embracement; vulnerability; resilience; family reintegration.


 

Introdução

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n. 8.069/1990) destaca o direito à criação e à educação no seio da família. No entanto, prevê, em situações excepcionais, o acolhimento institucional de crianças e adolescentes que se encontrem em situações de risco ou violência como forma de garantir sua proteção e priorizar seu interesse.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil contava, em 2014, com um total de 45.524 crianças e adolescentes acolhidos em 4.196 instituições (CNJ, 2015). Os motivos de encaminhamento para essas instituições englobam acusações de negligência dos pais ou responsáveis, dependência de álcool e outras drogas, abandono, violência doméstica e abuso sexual, sendo que, em grande parte dos casos, há mais de uma motivação registrada (Conselho Nacional do Ministério Público [CNMP], 2013).

O acolhimento institucional não deve ultrapassar o período máximo de 02 anos (Lei n.12.010/2009), pois, embora se destaque a importância do abrigo ao proteger, em momentos de crise, crianças e adolescentes cujos direitos foram violados, entende-se que o mesmo não substitui a proximidade e a personalização dos vínculos familiares (Ladvocat, 2016). Assim, as instituições devem desenvolver ações visando à garantia do convívio com a família de origem e trabalhar em prol da reintegração familiar (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2009).

Os textos normativos e legais reconhecem que os laços familiares e a afetividade garantida na família são de fundamental importância para o desenvolvimento, proteção e socialização das crianças e adolescentes. Assim, visam garantir o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária. (Furlan & Souza, 2014, p. 502)

Essa meta, no entanto, não é alcançada para muitas das crianças e dos adolescentes acolhidos institucionalmente. Mesmo em São Paulo, um dos estados com maiores índices de reintegração familiar, menos de 50% das crianças e dos adolescentes voltaram a conviver com suas famílias de origem ou foram encaminhados à sua família extensa entre 2012 e 2013 (CNMP, 2013). Segundo a revisão da literatura conduzida por Brito, Rosa e Trindade (2014), os fatores relacionados à dificuldade para a reintegração familiar incluem as condições socioeconômicas das famílias e a falta de políticas públicas voltadas à sua melhoria, bem como dificuldades relacionais associadas ao tempo de institucionalização e à escassez de iniciativas voltadas à manutenção do vínculo entre as crianças, os adolescentes e suas famílias durante o período do acolhimento.

Tem-se sugerido, ainda, que o processo de reintegração familiar possa se mostrar afetado pela visão que os profissionais que atuam nas instituições de acolhimento têm dessas famílias. A busca por um modelo ideal que se afasta da realidade das famílias de baixo nível socioeconômico de nosso país e uma consequente visão crítica acerca da sua capacidade de propiciar condições adequadas para o desenvolvimento de suas crianças e adolescentes tendem a desestimular ações de reintegração e a favorecer a ideia de que a instituição pode ser a melhor alternativa (Brito et al., 2014; Ladvocat, 2016; Lauz & Borges, 2013).

Em estudo realizado no Rio Grande do Sul, Lauz e Borges (2013) identificaram, entre os profissionais de uma instituição de acolhimento, uma visão predominantemente negativa acerca das famílias de crianças e adolescentes acolhidos. Destacou-se uma visão culpabilizadora dessas famílias, descritas como incapazes de criarem adequadamente seus filhos e propensas a lhes gerarem danos devido à sua suposta falta de responsabilidade, compromisso e afeto, bem como à presença de transtornos mentais. Esses profissionais ressaltaram, assim, os fatores de risco presentes nessas famílias e destacaram sua descrença na capacidade de mudança da família, minimizando possíveis fatores de proteção. Nesse contexto, iniciativas voltadas à reintegração familiar foram apresentadas como responsabilidade do Estado e não dos profissionais que atuam nas instituições de acolhimento.

Já em um estudo conduzido no Espírito Santo por Brito et al. (2014), os profissionais que atuavam em instituições de acolhimento mostraram-se comprometidos com a proposta de reintegração familiar. Destacaram, porém, os desafios presentes nesse processo, os quais envolvem a baixa adesão das famílias às iniciativas promovidas pelos profissionais da instituição e as poucas visitas realizadas às crianças e aos adolescentes durante o período de acolhimento. Outro fator destacado referiu-se à crença apresentada pelas famílias de que as crianças e os adolescentes estariam melhores na instituição, dadas as condições materiais oferecidas. Identificou-se, assim, a valorização das condições materiais em detrimento das relações afetivas das crianças e dos adolescentes com suas famílias.

Em uma pesquisa desenvolvida no estado de São Paulo (Furlan & Souza, 2014), os técnicos de uma instituição de acolhimento destacaram a vulnerabilidade econômica das famílias de origem das crianças e dos adolescentes acolhidos institucionalmente, bem como suas repercussões na garantia de acesso a direitos que também não se mostram providos pelo Estado.

Fica claro, portanto, que mesmo os profissionais do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente compreendendo que a pobreza não deve ser fator determinante do impedimento das famílias terem direito a cuidar de seus filhos, essa problemática ainda está colocada nesta realidade. A falha na garantia dos direitos das famílias, dos direitos à moradia, à saúde, à educação, a saneamento básico, etc. gera consequências no seio das famílias que repercutem no direito da criança e adolescente à convivência familiar e comunitária. (...) Com relação a isso, cria-se no imaginário social uma ideia de que a família pobre é desqualificada, perigosa, desestruturada, incompetente, fracassada, delinquente, dentre outros atributos de inferioridade. ... A família pobre, portanto, ganha uma nova identidade: a de família negligente. Essa categorização está deslocada da crítica à realidade social que gera injustiça e violação dos direitos. (Furlan & Souza, 2014, p. 507)

Esses dados são corroborados pela pesquisa realizada por Cavalcante, Araújo, Góes e Magalhães (2014) no estado do Pará. Segundo dados relativos ao ano de 2009, a maior parte dos responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes acolhidos institucionalmente possuía Ensino Fundamental incompleto ou era analfabeta, relatava estar desempregada ou em trabalho informal e possuía renda igual ou inferior a um salário mínimo.

Identifica-se, portanto, que se trata de uma realidade complexa. No entanto, embora cada vez mais pesquisadores estejam se dedicando ao estudo do acolhimento institucional devido ao seu potencial impacto no desenvolvimento de crianças e adolescentes, ainda são poucos os estudos voltados à compreensão da reintegração familiar conduzidos no Brasil (Brito et al., 2014), em especial considerando a visão que os profissionais que atuam nessas instituições apresentam sobre as famílias. Assim, este estudo visa a investigar a perspectiva dos profissionais que atuam em uma instituição de acolhimento situada na região Centro-Oeste sobre as famílias e o processo de reintegração familiar de crianças e adolescentes. Foram usados como pilares teóricos para essa análise os fundamentos da Teoria Sistêmica e da Psicologia Positiva que convergem no sentido de priorizar as relações e seu contexto.

A Teoria Sistêmica e a Psicologia Positiva

O que atualmente se compreende como Teoria Familiar Sistêmica é fruto das contribuições de diferentes escolas que se desenvolveram a partir dos anos 1950 e que tinham em comum a ideia de que o indivíduo não deve ser visto isoladamente, mas a partir de seu contexto e do seu universo relacional. Para a Teoria Sistêmica, o indivíduo é parte de contextos mais amplos, ou seja, é um subsistema de sistemas maiores, como a família e a sociedade. Dessa forma, os indivíduos não podem ser compreendidos sem que se considere o contexto em que estão inseridos. Alterações no contexto repercutem no indivíduo ao mesmo tempo em que mudanças no indivíduo repercutem em sua família e, em última instância, na sociedade como um todo. Sistemas e subsistemas se influenciam mútua e constantemente em um movimento ininterrupto e circular. O indivíduo pode ser, portanto, visto como o resultado desse processo relacional que se dá no contexto familiar e social, levando-se em conta também suas características individuais. Assim, ao abordar seu processo de desenvolvimento a partir dessa perspectiva, deve-se levar em consideração: sua história de vida, seus valores, seu potencial e suas habilidades pessoais, bem como suas relações (Grandesso, 2011; Minuchin, 1985; Nichols & Schwartz, 2007).

Embora a influência do contexto tenha sido afirmada pelos teóricos sistêmicos desde os seus primórdios, sua abordagem foi refinada com o passar dos anos. Passou-se a considerar de forma explícita como questões culturais, de raça, de gênero e de classe social influenciam os significados que as pessoas atribuem às suas experiências, bem como a forma como se relacionam. Destaca-se, portanto, a necessidade de os profissionais que atuam junto a famílias serem sensíveis às diversas diferenças que marcam os grupos humanos (Nichols & Schwartz, 2007).

A Teoria Familiar Sistêmica tem defendido historicamente uma “visão otimista” do ser humano e a busca pelas habilidades presentes na própria família para a superação de suas dificuldades, embora nem todas as escolas tenham enfatizado esta questão igualmente (Nichols & Schwartz, 2007, p. 119). A chamada Psicologia Positiva veio a reforçar essa ideia e a tomá-la como aspecto central de sua abordagem, que defende que a mudança pode ser alcançada a partir da força de experiências positivas vivenciadas no passado, somada às características individuais – especificamente virtudes, habilidades e potenciais da pessoa –, em meio à influência positiva do grupo ou comunidade na qual se está inserido (Paludo & Koller, 2007). Conforme destacam Conoley e Conoley (2009), a combinação entre a Teoria Familiar Sistêmica e a Psicologia Positiva permite uma “abordagem que se baseia nas forças presentes na família para favorecer o crescimento de cada um dos seus membros” (p. 01). Nesse sentido, importantes terapeutas familiares sistêmicos, como Froma Walsh (2005, 2006), utilizaram conceitos oriundos da Psicologia Positiva em sua abordagem às famílias.

A Psicologia Positiva sustenta-se em três pilares: (a) a experiência subjetiva; (b) as características individuais – forças pessoais e virtudes; (c) as instituições e comunidades. Muitos estudos demonstram e reconhecem que as virtudes e as forças pessoais atuam como agentes protetores e preventivos. Assim, o conhecimento das forças e virtudes poderia propiciar o que se tem chamado de florescimento (flourishing) das pessoas, comunidades e instituições (Paludo & Koller, 2007).

Nesse sentido, um dos principais conceitos no campo da Psicologia Positiva refere-se à resiliência. Não obstante o fato de a resiliência ter sido relacionada, logo no início dos estudos sobre o tema, aos termos invencibilidade ou invulnerabilidade ao estresse, que remetem a características intrínsecas do indivíduo, o avanço nas pesquisas demonstrou suas bases constitucionais e ambientais. Indica-se, assim, que a resiliência é relativa e se apresenta em graus variados como resultado da interação do indivíduo com o meio, as circunstâncias e o contexto no qual está inserido (Yunes, 2003). Portanto, o poder das virtudes e forças pessoais é diretamente influenciado pelas relações que o indivíduo estabelece ao longo de sua vida, seja no ambiente familiar, social ou em outro qualquer no qual interaja, o que pode levar ao fortalecimento ou arrefecimento da sua capacidade de realizar mudanças.

A aplicação do conceito de resiliência à compreensão e ao trabalho com famílias envolve a sua capacidade de identificar os seus pontos fortes e potencialidades, ou seja, os aspectos que promovem o desenvolvimento e o fortalecimento de seus membros, entre eles o de atentar aos vínculos familiares, mesmo em situações adversas, de vulnerabilidade e risco, com a adoção de uma perspectiva positiva diante dos desafios (Giffoni, 2014; Rooke & Pereira-Silva, 2012).

A abordagem da resiliência familiar é especialmente relevante à prática clínica e à assistência social, pois a maior parte dos clientes busca ajuda em momentos de dificuldade. Por definição, resiliência envolve forças sob estresse e forjadas durante a crise e adversidades prolongadas. Em oposição à prática de modelos focados no déficit, essa abordagem orientada em direção à resiliência envolve transformação positiva e crescimento. Ao construir sua resiliência relacional, as famílias forjam vínculos mais fortes e desenvolvem recursos para enfrentar desafios futuros. Assim, cada intervenção tem benefícios preventivos. (Walsh, 2006, p. x)

Nesse sentido, a compreensão do processo de resiliência familiar perpassa uma abordagem sistêmica. Segundo Walsh (2005, 2006), o foco na Resiliência Familiar busca identificar e implementar os processos-chave em três aspectos de funcionamento da família: seu sistema de crenças, o seu modo de organização e os processos de comunicação. No primeiro, destaca-se o sentido que a família atribui às adversidades e ao desequilíbrio, ao manejo das crises e à busca por elementos explicativos, com uma visão positiva de esperança e confiança frente ao inesperado. Quanto ao modo de organização da família, ressalta-se a sua flexibilidade, o vínculo e a união entre seus membros e o acesso às redes e aos recursos sociais disponíveis. Já no processo de comunicação da família, sobressaem-se a clareza e a verdade de suas mensagens, palavras ou atos, o compartilhar de sentimentos e de expressões emocionais, bem como habilidades para a tomada de decisão compartilhada e para a resolução dos conflitos. Esse processo de fortalecimento da resiliência familiar possibilita às famílias não só lidarem de forma mais eficiente com as situações de crise, mas a saírem delas fortalecidas, preservando a sua unidade funcional e fortalecendo a resiliência em todos os seus membros.
Nesse sentido, as crenças, o modo de organização e os processos de comunicação familiares podem atuar como fatores de risco ou de proteção nas trajetórias das famílias. Fatores de proteção são aqueles que tendem a minimizar os efeitos de situações de estresse, contribuindo para a saúde emocional dos indivíduos. Já os fatores de risco tendem a aumentar a probabilidade de efeitos negativos diante de certos eventos ou situações (Siqueira & Dell’Aglio, 2007).

Quanto menores os fatores de proteção e maiores os fatores de risco, maior a vulnerabilidade do indivíduo ou da família (Brandão, Mahfoud, & Gianordolli-Nascimento, 2011). Vale frisar que as famílias cujos filhos foram acolhidos em instituições de acolhimento encontram-se, em geral, em situação de vulnerabilidade social e estão desprovidas dos parcos recursos provenientes das políticas públicas de proteção social (Silva & Arpini, 2013). Conforme descrito por Morais, Rafaelli e Koller (2012, p. 119), a vulnerabilidade social pode ser entendida como

o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais oriundas do Estado, do mercado e da sociedade (Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima, & Martinelli, 2002). Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores e está relacionado com o maior ou menor grau de qualidade de vida das pessoas (Rocha, 2007).

Siqueira e Dell’Aglio (2007) utilizaram a Psicologia Positiva como fundamentação teórica em um estudo de caso que avaliou a institucionalização de uma adolescente e os diversos fatores que levaram ao insucesso de sua reintegração familiar. A adolescente de 12 anos afirmou ter sofrido abuso sexual de seu padrasto, versão que não foi aceita por sua mãe, mas que, diante das evidências, culminou no seu acolhimento. A mãe tinha sido vítima de abuso sexual cometido pelo próprio pai quando tinha sete anos de idade, realçando a percepção da transgeracionalidade da violência, em especial do abuso sexual. Considerando-se tanto os fatores de proteção como os fatores de risco presentes na família da adolescente, constatou-se a gravidade e o predomínio destes, o que levou as pesquisadoras a concluírem que o acolhimento institucional poderia, de fato, representar a melhor alternativa para a adolescente naquele momento. Um dos principais motivos que levou ao insucesso da reintegração familiar e ao reabrigamento da adolescente foi o descrédito da mãe em relação ao abuso sofrido e a permanência do padrasto na casa, inclusive durante o período da reintegração, quando teria ocorrido a reincidência do abuso, segundo relato da própria adolescente.

Silveira (2002) demonstrou a importância de os profissionais atentarem às potencialidades da família ao apresentar o relato da reintegração familiar de dois irmãos. A casa da mãe chamava atenção em razão da precariedade das condições materiais e de moradia. O processo de desligamento do abrigo e de reintegração foi acompanhado pelos profissionais da instituição, sendo manifestada pela autora uma preocupação com o período da pós-reintegração, já que a mudança de vida seria relevante para as crianças que saíram do abrigo, citado como um local organizado, limpo e bem estruturado, para a convivência com a família em condições de vida muito piores do ponto de vista material. Porém, no contato da pesquisadora com um dos irmãos nesse período, ele manifestou-lhe o lado que para ele importava nessa situação: poder voltar a viver com a mãe, apesar de toda a precariedade e das dificuldades na convivência com o padrasto. Dessa forma, “parecia ser vital permanecer no espaço da sua casa, onde, para ele, a garantia de nutrição afetiva prevalecia em meio ao caos da falta” (p. 74).

Método

Participantes

Foi definida uma Instituição de Acolhimento de Crianças e Adolescentes que atua na região Centro-Oeste, classificada como organização não governamental sem fins lucrativos e selecionada por conveniência da autora. Essa instituição atende a crianças e adolescentes na faixa etária de zero a 17 anos sendo que, na ocasião (outubro de 2016), atendia em torno de 15 crianças e adolescentes, divididos em duas casas-lares, com idade variando entre 8 e 18 anos.

Participaram do estudo três profissionais que atuavam nessa instituição quando da realização deste, sendo um psicólogo (P1) e dois assistentes sociais (P2 e P3). No que se refere à sua formação, P1 e P2 tinham menos de 5 anos de formados, enquanto P3 tinha mais de 20. Os três profissionais cursavam algum tipo de pós-graduação no momento da pesquisa. P1 e P2 trabalhavam na instituição há 1 ano e P3 há 3 anos.

Instrumentos

Foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada contendo 10 questões. Abordaram-se temas relacionados à formação profissional, ao trabalho desenvolvido junto ao público atendido e suas famílias, bem como às crenças quanto à reintegração familiar.

Procedimentos

As entrevistas foram devidamente agendadas e realizadas na instituição onde os profissionais atuavam, tendo sido gravadas com a sua autorização. Os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em que constavam as regras e condições adotadas para uso das informações provenientes das entrevistas, das quais destacam-se: o compromisso com o sigilo da identidade dos participantes, o arquivamento da transcrição das entrevistas por até um ano e a possibilidade de uma eventual publicação do estudo.

Realizou-se uma análise de conteúdo (Laville & Dionne, 1999) em que os dados coletados nas entrevistas realizadas foram classificados em quatro categorias, sendo elas:

1– Atuação Multidisciplinar
2 – Vulnerabilidades Familiares
3 – Fatores de Proteção e de Risco ao Processo de Reintegração Familiar
4 – Caminhos Possíveis para o Fortalecimento da Resiliência Familiar

Resultados e Discussão

Atuação Multidisciplinar

Muito embora se tenha verificado uma forte sintonia e equilíbrio nas visões manifestadas pelos profissionais entrevistados, houve divergências a serem consideradas: os que possuíam formação em Serviço Social relataram, com maior ênfase, os aspectos extrafamiliares, inclusive os relacionados à rede de proteção e às políticas públicas governamentais, com uma visão crítica em relação às questões socioeconômicas estruturantes: “no Brasil, tudo funciona a passo de tartaruga, o Estado não nos ajuda como deveria ajudar, as instituições que deveriam estar abertas às políticas públicas, na prática isso não ocorre. O artigo 5º da Constituição é lindo, mas não acontece na prática” (P2); “vários atores da rede sofrem pressão da política, do desgaste institucional, de várias mudanças que vêm ocorrendo, principalmente na assistência social, e não fica um trabalho pleno” (P3).

É possível supor que tal manifestação esteja relacionada ao próprio contexto de sua formação acadêmica, que os torna vigilantes acerca da existência e efetividade de políticas públicas inclusivas que promovam o resgate da dignidade do ser humano e dos seus direitos fundamentais de cidadão. O foco é no empoderamento da camada mais pobre da população, que está em situação de vulnerabilidade social, para o fortalecimento da resiliência e dos fatores de proteção nas famílias.

Por outro lado, é possível observar, nas palavras do psicólogo, o enfoque nas questões intrapsíquicas e inter-relacionais que perpassam a problemática estudada, inclusive em relação à equipe multiprofissional que atua no processo, sem deixar de considerar os aspectos sociais e de caráter amplo que nele interferem. Essa visão pode se mostrar relacionada, também, à sua formação acadêmica, que privilegia o estudo dos elementos psíquicos e comportamentais do ser humano. Em algumas falas é possível identificar esse enfoque: “são tantas violências que já passaram ao longo da vida, que voltar a acreditar neles mesmos é um processo”, “na maioria das vezes é um processo psicoeducativo falho que pode ser corrigido” e “há desespero e despreparo dos profissionais” (P1).

Embora represente uma área de significativa inserção profissional na atualidade, deve-se considerar que a atuação do psicólogo na área da assistência social mostra-se recente (Moreira & Paiva, 2015). Conforme destacaram Macêdo, Pessoa e Alberto (2015), a atuação do psicólogo nesse contexto pode representar um desafio: ao mesmo tempo em que demanda do profissional uma postura crítica e reflexiva, também exige que se abandone uma perspectiva individualista em prol de um olhar que privilegie os grupos e as comunidades. Em estudo realizado com psicólogos que trabalhavam em serviços de acolhimento (Moreira & Paiva, 2015), estes destacaram como sua formação não os preparou para sua atuação nesse contexto, o que pode ser relacionado ao fato de ainda haver cursos que priorizam a formação para a atuação na clínica individual (Macêdo et al., 2015).

Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da equipe multiprofissional para o trabalho desenvolvido nas instituições de acolhimento, tanto no caso da instituição em estudo, quanto de modo geral, conforme preconiza o ECA. A multidisciplinaridade propicia diferentes olhares para o mesmo fenômeno, estando em sintonia com a visão sistêmica e ensejando a complementariedade da análise dos diagnósticos aos prognósticos das situações psicossociais identificadas. Além disso, tende a contribuir à formulação de propostas de condutas mais adequadas e próximas à complexidade dos casos atendidos.

Vulnerabilidades Familiares

Os principais aspectos de vulnerabilidade familiar apontados pelos entrevistados foram desemprego, pobreza e carência de recursos materiais, negligência e violência doméstica – física, psicológica e de maus tratos, além do uso abusivo de álcool e outras drogas por pais e/ou responsáveis: “a grande maioria das famílias atendidas tem questões sociais fortes, como negligência e violência doméstica, vive em situação de vulnerabilidade social e está na parte inferior da pirâmide social” (P2). Na mesma direção, também se destacou a falta de acesso das famílias a programas de proteção oferecidos pela rede de atendimento ou o seu descaso em participar dos mesmos: “falta acesso aos espaços que garantam maior qualidade de vida à família, educação, saúde, emprego” (P3). Nesse sentido, pode-se observar um “ciclo de violação de direitos” (Furlan & Souza, 2014, p. 507) em que a vulnerabilidade econômica contribui para a falta de acesso a uma série de direitos essenciais ao pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes, o que potencializa a vulnerabilidade dessas famílias e dificulta seu acesso a fatores de proteção, criando um contexto que tende a se repetir em diferentes gerações.

Foi também mencionada a transgeracionalidade nos comportamentos agressivos, inclusive em relação ao abuso sexual, sendo pais ou responsáveis descritos como possíveis abusadores ou omissos frente ao problema: “há a reprodução da cultura do abuso, que leva a não entender abuso como algo errado. Se o pai fez isso com ela, não sabe o que fazer quando isso acontece com a filha” (P1); “são pais que foram agredidos e que se tornaram agressores” (P2).

Na Teoria Sistêmica, é possível encontrar diferentes abordagens quanto à
transgeracionalidade. A que melhor se enquadra na chamada transmissão da violência refere-se à aprendizagem direta de padrões interacionais junto à família de origem (Minuchin, Lee, & Simon, 2008). A criança observa ou vivencia comportamentos e relações que lhe servirão como modelos (Ângelo, 1995; Miermont, 1994) a serem evitados ou seguidos futuramente (Falcke, Wagner, & Mosmann, 2005). Nesse sentido, adultos que conviveram com a violência durante a infância em suas famílias de origem podem vir a repeti-la com seus próprios filhos, dando espaço ao chamado ciclo da violência (Ramos & Oliveira, 2008). Essa repetição é, por vezes, atribuída à crença de que esse seja o padrão educativo mais correto ou à ausência de outros modelos a serem seguidos, de forma que os pais se sentem sem recursos alternativos. No entanto, deve-se considerar que o contexto atual em que esses pais vivem com os seus filhos, no que se inclui sua rede de apoio social, também pode atuar como fator de risco ou de proteção para as relações que serão estabelecidas (Ramos & Oliveira, 2008).

Fatores de Proteção e de Risco ao Processo de Reintegração Familiar

Destacou-se como fator de proteção primordial o interesse e a vontade dos pais, responsáveis ou outros familiares, principalmente da mãe, em recuperar a convivência com o(s) filho(s) ou parentes institucionalizados, sendo esse considerado um fator determinante para o sucesso no processo de reintegração familiar: “é importante as famílias, principalmente as mães, assumirem suas responsabilidades perante seus filhos” (P2). A preservação de laços familiares e vínculos afetivos, seja com pais e avós, seja com irmãos e outros familiares, foi destacada: “o que tem que prevalecer é o afeto, o desejo de resgatar o vínculo com aquela criança” (P1). Outros fatores de proteção como emprego, educação, saúde e demais direitos sociais foram apresentados como forma de proteger as famílias frente à vulnerabilidade social.

Os fatores de risco relacionam-se aos aspectos de vulnerabilidade identificados. Corroborando a literatura (Brito et al., 2014; Ladvocat, 2016; Lauz & Borges, 2013), citou-se a visão de muitas famílias em relação ao papel da instituição na vida dos filhos, considerando ser lá o local ideal para a sua permanência: “as famílias veem os profissionais e as instituições como a salvação, principalmente quando a vulnerabilidade é extrema” (P2).

As demais questões de vulnerabilidade social – como desemprego, pobreza, uso abusivo de álcool e drogas, por exemplo – também foram consideradas como fatores de risco ao processo de reintegração familiar. Inclui-se, nessa avaliação, a gravidade do motivo que levou à institucionalização da criança ou adolescente e a forma como a família o compreendeu, bem como a permanência das condições de risco ou do agressor na família: “os pareceres sobre abuso sexual são os mais difíceis. Se a mãe nega o que aconteceu ou prefere ficar com o companheiro que abusou, o parecer é negativo. Há casos em que a mãe acusa a criança de ter se insinuado” (P2); “às vezes o vínculo até existe, com uma avó ou uma tia, mas se o agressor continua no local, a reintegração é negada para preservar a criança” (P3).

Os participantes relataram ainda situações de famílias que lhes chamaram atenção em sua atuação cotidiana. Um deles citou o caso de uma mãe que sucumbiu às adversidades e não conseguiu o restabelecimento necessário para a reintegração familiar por não aderir às demandas apresentadas para sair do espaço de violação dos direitos da criança, tendo o processo culminado na permanência da filha na instituição, apesar do esforço da equipe técnica: “foi uma luta de dois anos e acabou que a gente descobriu que tem gente que não quer, não tem como você querer fazer alguma coisa, não tem jeito” (P3).

Contudo, relataram outras situações em que as famílias superaram as evidências e adversidades. Em uma delas, a mãe conseguiu se afastar dos vícios e realizar uma escolha mais consciente e assertiva do companheiro, priorizando o bem-estar das crianças. Segundo o entrevistado, tal atitude se deu por amor a elas: “a mãe chegou na instituição como leoa para defender as crianças” (P2).

De modo geral, é possível verificar que a percepção dos profissionais entrevistados está alinhada aos dados obtidos por outros autores que investigaram o tema (Brito et al., 2014; Lauz & Borges, 2013; Siqueira & Dell’Aglio, 2007). Situações de vulnerabilidade social, a repetição transgeracional da violência, a permanência das situações que levaram ao abrigamento e a forma como foram compreendidas pela família são fatores que se destacaram na fala dos participantes deste estudo. Acrescenta-se a esses a importância da forma como a família percebe a instituição. Nesses contextos, em que as dificuldades das famílias tendem a ser reforçadas frente às suas potencialidades, não é raro que se abata sobre elas essa descrença em relação às próprias capacidades de proverem as necessidades de seus filhos. A falta de crença nas próprias habilidades e competências pode ser considerada como um fator que ameaça a resiliência familiar (Walsh, 2005, 2006), uma vez que a forma como se vê a si mesmo e as situações em que se está inserido tende a influenciar as atitudes que serão tomadas (Tomm, 1998). 

Dessa forma, embora os profissionais tenham destacado o “querer” das famílias como um fator de proteção relevante à reintegração familiar, deve-se considerar a complexidade das situações vividas por essas famílias. Depois de viverem anos em contextos que destacaram seus déficits em detrimento de suas potencialidades e em que muitas de suas tentativas podem ter sido minadas pelas vulnerabilidades com que se defrontaram, podemos imaginar que, mesmo que queiram seus filhos de volta, essas famílias não se sintam capazes de mudarem suas realidades. Assim, não se trata apenas de uma questão de escolha, mas também de se avaliar repercussões que estados de vulnerabilidade possam ter trazido às famílias de forma particular.

É interessante notar que a única interpretação corrente para a atitude de algumas famílias (e prevalentemente das mães) de deixar que os filhos fiquem abrigados e de não se moverem para que eles retornem às suas casas tem sido o abandono, a negligência, a falta de afeto e responsabilidade para com os filhos. Não se percebe, muitas vezes, que essa atitude pode revelar, de um lado, a internalização do sentimento de impotência e incompetência dessas mães e dessas famílias, despotencializadas e desvitalizadas diante de suas condições de existência. Por outro lado, esse comportamento também pode conotar a certeza de que elas estão oferecendo aos filhos, por meio da Casa de Acolhimento, o melhor que podem: um espaço seguro, a garantia da escola, o atendimento à saúde, uma boa alimentação e o acesso ao lazer. (Moreira, 2014, p. 35)

As questões de gênero também se destacaram na fala dos participantes deste estudo. Reforçou-se o papel protagonista da mãe na criação dos filhos e a sua responsabilidade sobre eles, em contrapartida à ausência dos pais nessa relação: “na maioria das vezes, os pais das crianças vão embora, deixam as mães sozinhas com os filhos, sem condições, sem preparo, sem escolaridade, sem nada” (P1). Nas situações que desencadeiam o acolhimento de crianças e adolescentes, parece haver uma tendência à culpabilização das famílias e, em especial, das mães. Assim, as mães são consideradas responsáveis, quase que exclusivamente, tanto pelos motivos que levaram ao acolhimento quanto pelo sucesso ou fracasso do processo de reintegração familiar.

Conforme assinala Zanello (2016), há uma naturalização da maternidade em nossa cultura, predominando uma perspectiva segundo a qual ser [uma boa] mãe constituiria uma das principais atribuições femininas, sendo as mulheres “constituídas como cuidadoras ‘natas’” (pp. 111-112). Entende-se o ser mãe como parte essencial do ser mulher, havendo uma estigmatização daquelas mulheres que se afastam do ideal do que é ser uma boa mãe e sua culpabilização por quaisquer dificuldades apresentadas pelos filhos ou presentes nas famílias. Estas são, assim, vistas como decorrentes do fracasso da mãe em desempenhar sua função essencial e natural de cuidar e prover de afeto, não havendo espaço para que se acolham e debatam os sofrimentos relacionados ao exercício da maternidade ou para que se considerem todos os outros aspectos que fazem parte da vida familiar, no que se inclui a responsabilidade paterna na criação dos filhos (Xavier & Zanello, 2016; Zanello, 2016). Da mesma forma, minimizam-se os impactos relacionados à vulnerabilidade econômica e social, bem como os diversos fatores de risco associados (Xavier & Zanello, 2016).

Há uma marginalização e judicialização de mulheres que não cumprem a maternidade da forma considerada socialmente aceita. (...) Especificamente quanto à questão da classe social, pode-se pontuar que exercer a maternidade em uma classe mais abastada viabiliza certas vivências que ajudam no trato com as crianças, tais como contratar cuidadores ou ainda colocar na pré-escola desde tenra idade, o que muitas vezes é impossibilitado às mulheres em condição socioeconômica vulnerável devido ao pouco apoio familiar ou, ainda, à dificuldade de acesso a políticas públicas sócioassistenciais. (...) Segundo Swift (1995), o próprio sistema que atribui às mulheres a obrigatoriedade de maternar também cria as mães consideradas negligentes e violentas. (Xavier & Zanello, 2016, p. 130)

Torna-se necessário, assim, que os profissionais questionem os automatismos presentes nessa responsabilização materna, os quais se baseiam nos processos de socialização de gênero ainda presentes em nossa cultura. Deve-se considerar que, no Brasil, as famílias são cada vez mais monoparentalizadas e matrifocais, ou seja, chefiadas por mulheres (Brito et al., 2014; Yunes, Garcia, & Albuquerque, 2007), para que se possa apoiar essas mães e refletir sobre o porquê da falta de envolvimento desses pais.

Assim como este, outros estudos apontam para a transmissão geracional da violência e do abuso sexual entre gerações, especialmente as repetições de comportamentos de risco nessas famílias, que reforçam os fatores de vulnerabilidade e a exposição das crianças e adolescentes à violência, especialmente a doméstica. Contudo, tal constatação fortalece a crença nas possibilidades de superação e quebra desse “ciclo de repetições” por meio de um atendimento psicossocial adequado (Penso & Neves, 2008). O destaque é para a importância de intervenções qualificadas junto a essas famílias, bem como da capacitação dos profissionais em um olhar que lhes permita ver além dos déficits.

Quais os Caminhos Possíveis para o Fortalecimento da Resiliência Familiar

Foram apontados pelos entrevistados diversos caminhos possíveis para se alcançar êxito no trato da complexa questão da institucionalização de crianças e adolescentes e da reintegração familiar. A esperança dos profissionais que atuam nessa frente foi destacada: “todas as partes precisam ter esperança e otimismo, trabalhar de forma correta e legítima” (P2); “os profissionais têm papel fundamental nessa superação” (P1).

Na visão macro, os principais caminhos apontados referem-se a questões estruturantes – voltadas ao resgate da dignidade humana, à diminuição da miséria e da concentração de renda – que favoreçam condições dignas de vida, com melhorias socioeconômicas que possibilitem a maior geração de emprego, a capacitação das famílias para exercer o direito à renda, à autonomia e à quebra desse ciclo vicioso. Destacou-se, assim, a necessidade de atuação do Estado com políticas públicas integradas e efetivas que visem à melhoria da qualidade e do acesso aos serviços públicos de educação, saúde, moradia e segurança pública.

Nos apontamentos, observa-se uma visão ampla da difícil realidade social vivida no Brasil, com mazelas complexas e, em grande parte, insolúveis no curto e médio prazos. Nesse contexto, a situação da institucionalização e acolhimento de crianças e adolescentes e os desafios no processo de reintegração familiar poderiam ser considerados como apenas mais uma variável nesse emaranhado de problemas sociais vivenciados em nossa realidade.

Além dessas questões estruturantes, de alta relevância e de longo prazo na sua efetivação, foi citada como imprescindível e como medida emergencial e de curtíssimo prazo a necessidade de integração e melhoria do atendimento oferecido pelos serviços de proteção às crianças, adolescentes e famílias na rede pública de assistência social. Esses serviços foram descritos como insuficientes, além de oferecidos de forma desintegrada e sem unificação dos esforços para aumentar a sua eficiência e eficácia: “a ineficiência da rede sobrecarrega as instituições, que precisam desempenhar o papel de outros atores” (P3).

Ainda com foco no atendimento a essas famílias, foi mencionada a importância de uma maior capacitação dos profissionais que lidam com essas situações: “precisa de maior capacitação dos profissionais, não só nas instituições, mas em toda rede; há muito desespero e despreparo” (P1). Dessa forma, seria possível resgatar e fortalecer a credibilidade dos serviços oferecidos: “o fundamental é sempre fazer um estudo social com qualidade... já vi coisas terríveis como ter que voltar atrás numa situação de perda do poder familiar porque o parecer do profissional foi equivocado” (P3). Além disso, poder-se-ia reconhecer, assim, as próprias potencialidades dessas famílias e fortalecer os vínculos afetivos e familiares: “se não conseguir um emprego formal, por exemplo, buscar alternativas no empreendedorismo, dentro dos talentos identificados na família” (P3).

Conforme bem assinala Silveira (2002), é necessária uma compreensão ampliada acerca da forma como crianças e adolescentes institucionalizados concebem uma família. Ao se abordar o tema da institucionalização de crianças e adolescentes, fala-se, necessariamente, da existência de suas famílias e da referência e influência que estas exercem sobre sua vida. A despeito do senso comum, que leva, muitas vezes, a não se reconhecer as famílias de crianças e adolescentes acolhidos ou em situação de rua, a grande maioria desse público mantém contato com suas famílias.


Considerações finais

A proposta deste estudo foi demonstrar, segundo a perspectiva de profissionais que atuam em uma instituição de acolhimento situada no Centro-Oeste, os caminhos possíveis para contribuir para a resiliência das famílias, fortalecendo os fatores de proteção e minimizando os fatores de risco no processo de acolhimento e de reintegração familiar. É certo que os caminhos sinalizados são, em sua maioria, muito abrangentes, assim como são complexas as medidas consideradas necessárias ao enfrentamento da difícil questão da miséria e de todos os seus efeitos avassaladores para a sociedade, em especial para as camadas mais pobres da população. Não obstante, a crença na possibilidade de restauração dos vínculos afetivos, do resgate de emoções positivas vivenciadas e da resiliência das famílias é um dos caminhos possíveis indicados para o trato do processo de acolhimento e de reintegração de crianças e adolescentes em suas famílias. É na força das potencialidades humanas que se pode vislumbrar, em um cenário tão desolador, a capacidade de superação e a esperança.

Entretanto, cabe destacar um ponto de máxima importância trazido à tona neste estudo: a necessidade de capacitação dos profissionais que atuam nesse processo – desde as instituições de acolhimento até a rede de assistência social como um todo. A sua grande responsabilidade, seja pela relevância de suas análises e pareceres para a vida de todos os envolvidos, seja pelo seu potencial para o desenvolvimento, nessas famílias, da crença na superação das adversidades, deve, necessariamente, ensejar medidas de acolhimento, capacitação, desenvolvimento e reconhecimento desses profissionais, pois “para bem cuidar eles precisam ser cuidados” (P1). Faz-se necessário, assim, criar espaços e condições para uma atuação multidisciplinar qualificada.

Por fim, ressalta-se uma síntese das falas daqueles que doam o seu potencial e habilidades em prol dessa causa tão importante para todos os que estão, direta ou indiretamente, envolvidos com a situação dessas crianças, adolescentes e suas famílias: é preciso acreditar que é possível superar a situação de miséria e abandono em que vive significativa parcela da nossa população, assim como é imprescindível que cada ator envolvido faça a sua parte com empenho, crença, esperança, capacitação técnica e eficiência, especialmente no serviço público.


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Recebido em: 04/06/2017
Aprovado em: 28/09/2017

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