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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo Dec. 2017

 

ARTIGO

 

Relações Colaborativas – Práticas colaborativas no trabalho

 

Collaborative Relationships – Collaborative practices at work

 

 

Cristina VillaçaI


 


RESUMO

Esse artigo apresenta a construção e realização de um trabalho no ambiente corporativo, na área de desenvolvimento organizacional, a partir de uma visão sistêmica pós-moderna, utilizando, dentre outros, recursos das abordagens colaborativas e narrativas. O objetivo principal do trabalho foi buscar alternativas para incrementar produtividade e inovação através de melhores relacionamentos e práticas que colocam as pessoas em primeiro plano, autoras e atores de processos que beneficiam a si mesmas, aos colegas e à empresa.

Palavras-chave: ambiente corporativo; abordagens colaborativas e narrativas.


ABSTRACT

This article presents the construction and execution of a work in a corporative environment, related to the organizational development area, from a post-modern systemic view, using, among others, resources of collaborative and narrative approaches. The main purpose of this work was to search for alternatives to increase productivity and innovation through better relationships and practices that consider people in the first place, as authors and actors of the processes that bring benefits to themselves, their co-workers and to the company.

Key Words: Corporative environment; collaborative and narrative practices.


 


“Não faço distinções entre teoria, prática clínica, ensino e consultoria organizacional. Abordo tudo isso sob a mesma base filosófica. Todos são esforços colaborativos.” Harlene Anderson (2009)

O presente artigo tem o propósito de servir como uma documentação, por meio da articulação de práticas e teorias, sobre um trabalho realizado a partir de uma visão sistêmica pós-moderna no ambiente corporativo, além de servir como estímulo para que profissionais das áreas de terapia sistêmica e afins conquistem mais esse espaço de trabalho dentro de empresas, onde têm muito a contribuir.

A escuta da demanda

Assim como em tantas outras atividades, a escuta inicial da queixa/demanda da empresa que busca consultoria é primordial não só para garantir o trabalho, fazendo uma proposta de execução adequada ao que for pedido, como também para garantir a qualidade, coerência e alcance de metas esperadas ao longo e ao fim do processo. Nas palavras de Harlene Anderson (2009), ajudar as empresas como elas querem ser ajudadas. E o que está envolvido na qualidade dessa escuta? No caso presente, trabalhando em dupla já asseguramos uma escuta ampliada, enriquecida pela percepção de dois profissionais. E dizemos percepção porque simultaneamente ouvimos, tomamos nota, fazemos perguntas de esclarecimento, de curiosidade e também ficamos atentos aos “não ditos” – às hipóteses e impressões que formulamos internamente, à sutileza (ou não) de expressões verbais e não verbais, à observação do ambiente em geral. Marilene Grandesso, parafraseando Derrida, reforça esta ideia: “na descrição do que é, falo sobre o que não é. E por que não é?” (Grandesso, 2015).

Enriquecemos esta dupla escuta – nomeada por Kenneth Gergen (Gergen & Gergen, 2010, p. 18) como básica a todo construcionista social1 – através da qual apreendemos conteúdo, mas também valores e importância com mais elementos relacionados ao que é único em cada cliente. Um desses elementos refere-se à elaboração conjunta de significados que tomam forma dentro de uma ação coordenada, derivada dos relacionamentos e tendo como pano de fundo a cultura e a história – que tanto precedem como seguem as ações em si (Gergen, 2016, p.13). Desde o primeiro momento prestamos atenção na linguagem que constrói significados os quais, por sua vez, atribuem singularidade aos pequenos e grandes grupos, ou seja, à complexa trama que constitui a cultura particular de cada empresa. Imbuídos de uma visão pós-moderna de discurso “que procura legitimar as diferenças nas nossas possíveis descrições de mundo” (Moscheta, 2014, p. 36), consideramos todas as diferentes formas de fala de cada pessoa sobre si, sobre a situação e sobre os colegas, investindo numa aproximação possível de significados que pudessem colaborar para um múltiplo olhar e múltiplas possibilidades coordenadas de atuação. Trabalhamos para transformar a linguagem numa via de mão dupla onde tanto aprendemos os termos e expressões locais quanto colaboramos com os nossos próprios termos e expressões, utilizando uma linguagem respeitosa, não violenta e legitimadora. Como diz Grandesso:

Fazemos uma aproximação inicial máxima da linguagem do cliente, depois construímos juntos parte da conversa com nossas linguagens individuais. A linguagem do profissional também colabora na abertura de possibilidades de narrativa e significado para o cliente, e vice-versa. (Grandesso 2015, p. x2

Outro elemento que demanda atenção por parte dos consultores ao fomentar ambientes que propiciem processos colaborativos e dialógicos são as descrições, as narrativas coletivas que são consideradas não como homogêneas (embora muitas vezes sejam entendidas como tal), mas sim como um feixe de várias versões legítimas. As diferentes versões interessam, são valorizadas publicamente e contribuem para o emergir de diferentes possibilidades de compreensão e ação, além do reconhecimento das vozes individuais. Tal como enfatiza Anderson (2017, p. 29), não há busca por um consenso entre versões. Cabe aos consultores-facilitadores gerar uma atmosfera de confiança que permita a exposição de ideias sem medo de críticas negativas ou de erro, em diálogos construtivos, positivos, depurados de palavras ou intenções acusatórias, ofensivas, antagonizantes, entre outras posturas não colaborativas.

Um dos consultores recebeu informalmente de um dos sócios da organização3 o pedido para um trabalho junto aos gestores de sua empresa principal, priorizando os colaboradores envolvidos em longos, cansativos e prejudiciais conflitos, arrastando um enorme desgaste para todos. A situação emergencial que deflagrou o pedido de consultoria foi um conflito aberto entre dois gestores, na presença de seus colegas e deles mesmos, os sócios. Após este evento marcante, fizemos uma primeira reunião com os sócios para conversar sobre o desenvolvimento do trabalho. Tivemos a sorte, nesse caso, de sermos contratados por pessoas muito abertas, colaborativas, que nos deram liberdade de ação e apoio durante todo o processo. Isso não é pouco! A demanda incluía uma intervenção para redução de conflitos e melhor integração entre os diferentes setores da cadeia de produção, que mais pareciam pequenos feudos, distintos uns dos outros e até competitivos entre si. Ouvimos também, em nossas escutas atentas, algumas dificuldades de relacionamento e posicionamento dos próprios sócios que poderiam estar contribuindo para as situações descritas. 

Apresentamos sucintamente nossa forma de trabalhar, checamos a compreensão do que desejavam e esperavam, ficamos de elaborar uma proposta que seria apresentada em uma próxima reunião. Há certa dificuldade em vender um trabalho que não tem uma proposta estruturada, objetiva, com metodologias e recursos mais comumente conhecidos no mercado. Procuramos construir uma proposta “customizada” para cada cliente, atendendo à sua demanda e levando em consideração as pessoas envolvidas, as particularidades de cada situação, o contexto e a cultura locais. O que, então, oferecemos inicialmente que pode ser tangível para o contratante? Nossa visão sistêmica, contextual, algumas metodologias e processos colaborativos, enfatizando a confiança na capacidade que as pessoas envolvidas têm de conhecerem e resolverem suas próprias questões, de construírem juntas um futuro mais satisfatório para todos, com o “reforço” temporário de nossa consultoria. E assim se encerrou a primeira etapa, de valor fundamental para todo o desenvolvimento do trabalho. 


A escuta dos gestores

Escolhemos iniciar nossa consultoria entrevistando os gestores: sete diretores e gerentes. Nossa metodologia, principalmente nesta etapa, foi fortemente influenciada pelos princípios da Investigação Apreciativa (IA). Segundo os autores David L. Cooperrider e Diana Whitney (2006), a IA busca resgatar os sucessos alcançados pela empresa e pelas pessoas através da descoberta de suas melhores práticas e conquistas, apresentando um processo que facilita a capitalização dessas experiências para o alcance da visão de futuro. É uma abordagem que proporciona um diálogo aberto, a participação ativa e oferece um espaço para sonhar o que verdadeiramente se deseja no futuro, a partir da crença incondicional no potencial das pessoas. Desenvolve-se em quatro etapas: descoberta; sonho; planejamento; destino.4 Segundo esta abordagem, perguntar por problemas e queixas nos deixa atados ao que é negativo, imobilizado, sem saída, além de ser desnecessário: as pessoas falarão sobre eles de qualquer jeito, porém, sem nosso incentivo direto e ênfase. Consideramos fundamental nesse momento estabelecer vínculos de empatia, de compartilhamento do desejo de um futuro melhor, da confiança possível e de tudo que seja estimulante para gerarmos relações mais construtivas e colaborativas dali em diante.

A maior parte das entrevistas foi feita pela dupla de consultores, com atenção e acolhimento às colocações de cada gestor, além de coleta de informações sobre práticas de sucesso, suas e da empresa, e sugestões de iniciativas para uma evolução desejada da empresa e de seu setor em um futuro de curto, médio e longo prazos. “Um profissional colaborativo mantém a ênfase em saber com o outro, ao invés de saber sobre o outro. Conhecer ‘com’ é crucial para o processo dialógico” (Anderson, 2017, p. 30) Assim, conhecemos um pouco da empresa a partir da visão dos gestores, trocamos ideias, percepções, sensações e hipóteses entre nós e elaboramos o esboço de uma possível pauta para a próxima etapa: os encontros coletivos com sócios, diretores e gerentes.

Ficamos curiosos ao observar que os usos de linguagem e o ideário da cultura da empresa não eram vistos coletivamente, mas sim de modo particular dentro de cada setor e/ou gestor na relação com os sócios e na distinção entre eles e os outros setores correspondentes nas outras empresas da organização, o que inclui a filial em São Paulo. Não que esses elementos, linguagem e compreensão da cultura organizacional tenham que ser homogêneos, mas se espera que suas diferentes versões conversem entre si, se afinem e se complementem em benefício do melhor ambiente de trabalho, da produtividade e da inovação. Os sócios, por sua vez, apreciavam um certo grau de informalidade que dispensava algumas referências de caráter indicativo da unidade da organização, do pertencimento a uma coletividade com características próprias e únicas (como um simples organograma, uma comunicação interna ágil e agregadora, atividades integradoras, por exemplo), imaginando talvez que com isto desanuviassem o peso da hierarquia. A falta de dados claros sobre cargos gerava confusões e distorções externa e internamente sobre, entre outros fatores, o posicionamento dos profissionais e autonomia na tomada de decisões, fazendo com que todos tivessem que recorrer aos sócios para decidir as tarefas mais básicas e seus pequenos conflitos. Fácil perceber o cansaço, o desgaste e as interrupções constantes no fluxo do trabalho dos sócios e dos gestores.

Encontros com grupos – abordagem narrativa e facilitação sistêmica

Desde o início havia a expectativa de não atuarmos como outros tipos de consultoria, mais usuais no mercado, que já haviam sido contratadas em outros momentos pela empresa. Se por um lado isto nos deixou à vontade, porque não temos mesmo esse tipo de perfil e formação, por outro nos trouxe algumas inquietações: e se o que oferecêssemos fosse diferente demais, não fazendo sentido, dificultando a elaboração de significados comuns que se realizam em ações coordenadas?

Nosso melhor antídoto para esse perigoso veneno da expertise, do lugar do “sabemos-o-que-vocês-não-sabem” e do “sabemos-melhor-o-que-vocês-pensam-que-sabem” é o exercício permanente da escuta curiosa, que legitima o conhecimento local e a experiência vivida de quem fala, da aproximação de compreensão das falas e das situações através de uma “postura e comunicação empáticas” (Sluzki, 20165), de diálogos abertos e públicos, de conversações reflexivas e transformadoras (Anderson, 2009; Grandesso, 2009), entre muitas outras posturas colaborativas. Essas posturas tornam nosso trabalho mais leve e prazeroso, compartilhando com os participantes a responsabilidade pela elaboração das formas e dos conteúdos das conversas, assim como de seus desdobramentos. Outros recursos valiosos nessa etapa do trabalho vieram de práticas narrativas, a partir das ideias de Michael White (2012), David Denborough (2014)6, assim como da Facilitação Sistêmica de Processos Coletivos, modelo desenvolvido por Saúl Fuks e Eloisa Vidal Rosas.

A missão que um facilitador assume como sentido de seu trabalho é contribuir com suas competências para a criação de organizações flexíveis, criativas, adaptáveis e resilientes nas quais as pessoas sejam vistas como uma riqueza e não como um problema. (Fuks & Rosas, 2014, p. 9) 

A ideia desenvolvida por White e Epston (1990) de que o problema é o problema e não a pessoa opera como uma bússola em nossa forma de conversar sobre as questões a serem resolvidas, contornando a tendência generalizada de nomear as pessoas como se fossem o problema. A externalização dos problemas foi proposta por esses autores como uma forma de ajudar as pessoas a separarem-se das descrições de suas vidas e relações “saturadas pelo problema” (White & Epston, 1990). White e Epston também propõem as conversações de reautoria, recurso que contribui para a mudança através da construção de novas narrativas. A introdução dessa forma de conversa é estranha para muitos e sua prática, sua continuidade, depende de persistência e atenção redobrada no desenrolar dos diálogos. Tratamos, no grupo, de temas, de questões, não das pessoas. Estas foram atendidas, pontualmente, em encontros individuais, tendo sempre em mente o fluxo do trabalho coletivo, a visão relacional entre o colaborador e seus colegas, com reflexões sobre a repercussão da atuação individual em sua equipe e na empresa de forma geral. 

Por sua vez, a metodologia FSPC – Facilitação Sistêmica de Processos Coletivos – propõe etapas para o desenvolvimento de um fluxo de trabalho com grupos que compreendem: (a) criação de contexto; (b) os recursos – colheita de experiências e saberes; (c) o desdobramento – padrões, formas, redundâncias, sequências significativas; (d) o surgimento e contribuição de informações, ideias, teorias possíveis; (f) a construção e experimentação de instrumentos; (g) a transformação do produzido em modos de atuar úteis, viáveis e sustentáveis. A partir da etapa anterior, quando havíamos sido habilitados a ingressar na intimidade das tramas relacionais pouco visíveis e tínhamos as condições e recebido o aval para propor uma convocatória (Fuks & Rosas, 2014, p. 12), marcamos com os sócios a primeira de uma sequência de reuniões, incluindo eles próprios, os gestores e nós como facilitadores. Importante ressaltar que reuniões decisórias e de planejamento nesta empresa não contam com participantes de todos os setores, o que naturalmente cria uma escala de maior importância entre uns e outros, sem que os critérios para isso estejam claros. Dentro da visão de que todos são imprescindíveis para que a empresa funcione, chamamos todos os gestores a participarem de nossas reuniões e isto, por si só, já trouxe alguns significados sobre nossa postura e sobre o trabalho a ser realizado. Significou muito para os gestores menos escutados coletivamente, como eles mesmos disseram, terem voz, legitimação de seu lugar e de suas contribuições, mesmo considerando suas compreensíveis dificuldades iniciais de participação.

Iniciamos então a etapa de reuniões coletivas com as histórias do passado, da formação da organização. O que pensamos que duraria uma reunião acabou atravessando três, tamanho o interesse despertado pelas histórias. A narrativa foi iniciada através da proposta de uma linha do tempo da empresa, recurso que foi enriquecido com perguntas inspiradas na já citada abordagem de práticas narrativas. Como diz Grandesso,

As práticas narrativas consideram que as pessoas vivem suas vidas através de histórias; que as histórias organizam e dão sentido à experiência e que os problemas existem na linguagem, sendo capturados nas histórias dominantes. (2009, p. 112) 

Inspirados por David Denborough (2014), acreditamos que as histórias são constituídas de eventos conectados, ligados pela narrativa, e o interesse pelas pequenas coisas ajuda a construir histórias alternativas, de eventos de sucesso e recursos úteis para a busca de soluções no presente e para o futuro. Assim, à medida que as histórias dos empreendimentos familiares eram narradas, aconteceram vários insights sobre pontos em comum entre os ciclos geracionais, o que permitiu ir clareando as análises de como haviam chegado até ali. Através de perguntas exploramos alguns temas como fatos relevantes, contextos de decisões marcantes, práticas de sucesso e insucesso, recursos, períodos críticos e seus encaminhamentos, repercussões na família (Sluzki, citado por Grandesso, 2009). 

Esta foi uma oportunidade extraordinária para os irmãos-sócios contarem juntos a história de sua família por meio da história da empresa para os vários gestores, que estavam em alguns casos escutando essas histórias pela primeira vez, e também para nós, que pudemos mergulhar mais profundamente no contexto do trabalho e no conhecimento das pessoas envolvidas. À medida que a narrativa dos sócios foi se aproximando do presente, os gestores foram se incluindo na linha do tempo, trazendo suas próprias narrativas e sendo, ao mesmo tempo, reconhecidos e legitimados coletivamente em seus percursos. 

Ainda dentro das práticas narrativas, realizamos o exercício “Árvore da vida”, desenvolvido por David Denborough e Ncazelo Ncube (2011), com algumas modificações. Essa abordagem convida as pessoas a falarem sobre suas vidas de modo a torná-las mais fortes, discorrendo sobre suas raízes (de onde vieram), suas habilidades e conhecimentos, suas esperanças e seus sonhos, assim como sobre as pessoas especiais que delas fazem parte (Dulwich Center, 2016). Imprimimos uma frondosa árvore em um pôster. Ao final da linha do tempo e de tantas histórias, pedimos que escrevessem individualmente em adesivos palavras significativas inspiradas pelas diversas narrativas e colocamo-las na raiz da árvore-pôster, retratando coletivamente a visão de princípios, valores, recursos que constituíram a trajetória dessa empresa até aquele momento. Posteriormente também imprimimos uma nuvem com as palavras escolhidas, o que foi recebido com satisfação e reconhecimento pelos sócios. Foi um fechamento cheio de simbolismo, visualmente ilustrativo, à altura da emoção que acompanhou as narrativas.

Depois das três primeiras reuniões, iniciamos a etapa de facilitação de grupos de reflexão e discussão sobre questões a serem melhoradas ou desenvolvidas em diversas áreas. Eram grupos multissetoriais que incluíam a participação dos sócios. Assim, o que começava como um olhar individual para seu próprio setor acabava sendo incorporado ou abandonado na ampliação para questões mais gerais, mais coletivas. Alguns assuntos menores foram resolvidos durante esse processo. A cada reunião os temas eram agrupados e tratados por todos.

O processo de encontros em grupo iniciou um incrível movimento na empresa. A partir da constatação e reconhecimento de todos de que um dos departamentos estava sem espaço apropriado, com muitos colaboradores e material comprimidos em um pequeno local, os sócios decidiram fazer uma grande transformação na arquitetura de toda a empresa, o que implicaria derrubar paredes, tornando os ambientes amplos e a movimentação mais fluida entre os setores. Para que isso acontecesse, toda a empresa teve que se acomodar em metade do espaço que ocupava, forçando a convivência lado a lado de pessoas e setores que estavam isolados em suas salas, inclusive a sala dos sócios, que passou a ficar muito mais exposta. Foi interessante acompanhar essa transição que preparou forçosamente as pessoas para as novas condições físicas e de convivência que viriam com a reforma. Essa situação perdurou por mais ou menos três meses e a reforma já incluiu sugestões elaboradas nas reuniões conosco, tais como ter área de convivência e refeitório. Não foi, contudo, um processo sem conflitos – alguns velados, outros nem tanto –, com demonstrações de pressões e insatisfações.

Neste momento já estávamos desenvolvendo outra parte de nosso trabalho de consultoria, realizando encontros com grupos menores de gestores que traziam questões pontuais. Em alguns desses encontros utilizamos técnicas de mediação de conflitos7 e de negociações inspiradas nos princípios de Harvard8, com norteadores baseados na coexistência de diferenças e na sustentabilidade do diálogo (Almeida, 20119).

Havíamos, além disso, iniciado encontros de facilitação de processos coletivos dentro de cada setor, começando pelos dois setores cujos gestores estavam em conflito. Se tivéssemos que destacar um único resultado pelo qual todo o processo já teria valido a pena, seria aquele em que todos os colaboradores, de todos os níveis e funções, sentaram juntos com seus gestores para conversarem sobre seus trabalhos, seu setor, levantando questões a serem melhoradas e reafirmando o que funcionava bem. Poucos setores faziam reuniões mais focadas nesse tipo de processo, no qual foi incluída uma desafiadora inovação: fazerem coletivamente um feedback construtivo e respeitoso de cada um deles e do gestor.

O voo da autonomia

Se o trabalho respeita o saber e o contexto locais, abrindo portas conversacionais colaborativas com olhar para o futuro, algo novo poderá surgir coletivamente, no caso de trabalho com grupos. Na experiência aqui descrita, o que de maior destaque surgiu, em nossa opinião, foi o “Comitê de Integração”, uma construção conjunta, colaborativa e intersetorial. Não há receitas nem regras capazes de gerenciar a arquitetura de ações entre diferentes personalidades e posições na empresa. Tudo é diferente e particular, mesmo que possa ser articulado com teorias, análises e estudos ou associado com outras iniciativas, como fazemos aqui ao relacionar este trabalho de consultoria com metodologias desenvolvidas em outros contextos, por exemplo.

O Comitê surgiu, sobretudo, das necessidades levantadas nas primeiras etapas do trabalho, bem como da liderança de alguns gestores que, apesar de muito entusiasmados, não acreditavam na possibilidade de criarem um grupo representativo de todos os setores da empresa que trabalhasse em conjunto e realizasse coletivamente suas conquistas, em um contexto conversacional de autonomia, dialógico, entrecruzado de perspectivas, com todos os membros tendo igual direito à voz (Aun, 2005, p. 102). A partir desse momento puderam vislumbrar essa possibilidade e persistiram, ultrapassando os sempre difíceis obstáculos inerentes a esse tipo de iniciativa, com o suporte dos consultores. Contudo, como o movimento de criação do Comitê coincidiu com o encerramento contratual da consultoria, a iniciativa acabou definhando e paralisando. Talvez ainda não estivesse “madura” o suficiente para prosseguir sem o nosso suporte. Poucos meses depois fomos contratados para novo período de consultoria e o movimento foi retomado.

Um trabalho realizado dentro das ideias e práticas descritas neste artigo não se perde, não volta à estaca zero. A brasa que ficou permitiu que, em poucas reuniões, a chama reacendesse: o Comitê de Integração foi estruturado, fortalecido e colocou em prática uma série de ações que envolveram todos os colaboradores, toda a vida da empresa. Entre as principais iniciativas destacamos a elaboração de um Regimento Interno, de um Manual de Sugestões de Convivência, uma nova identidade visual da empresa para uso interno e externo, medidas de sustentabilidade – como o uso de canecas individuais no lugar dos copos plásticos –, uma urna para recolhimento de sugestões dos colaboradores, o retorno de eventos de confraternização – como a festa de fim de ano. Foi adotado um sistema de autogestão que incluiu rodízio na coordenação e secretaria do Comitê com um representante não fixo de cada setor participando de reuniões mensais onde resolvem entre si muitos assuntos e encaminham aos sócios os que o grupo não tem autonomia para decidir.

Passaram igualmente a adotar a prática de formarem subgrupos para a execução de tarefas que, depois de aprovadas, seriam postas em prática por todos. O Comitê elaborou uma cartilha sobre seu próprio trabalho e toda essa produção foi apresentada formalmente por alguns de seus membros perante toda a empresa, em julho de 2016. Nós, os consultores, nos sentimos realizados, testemunhando com orgulho e alegria o belo trabalho que fizeram.

Considerações finais

Tudo começa com uma escuta ativa, atenta, curiosa e cuidadosa da demanda de nosso cliente-contratante. Prosseguimos com essa escuta durante todo o trabalho por acreditarmos que este é um dos nossos recursos fundamentais e mais valiosos. A demanda inicial varia muito de cliente para cliente, com situações problemáticas nem sempre claras, mas sempre urgentes e necessitadas de rápida solução. Uma das dificuldades iniciais consiste em ter alguma objetividade no atendimento a essas situações, mesmo compreendendo que elas só serão mais bem resolvidas através de processos mais profundos e complexos. No entanto, é importante que as pessoas e o ambiente fiquem mais tranquilos para que nosso trabalho tenha continuidade e aprofundamento.

Durante todo o trabalho uma pergunta nos acompanhou: como nossas práticas coletivas, colaborativas e dialógicas podem ajudar no dia a dia dos trabalhadores e organizações, onde a competitividade, o brilho solitário, a avaliação quantitativa de produtividade são ainda os valores dominantes? Esse é um enorme desafio: ser colaborativo em ambiente competitivo – que muitas vezes vai sendo enfrentado na prática –, ganhando espaço à medida que boas práticas e melhores resultados vão acontecendo..

Após a escuta da demanda, formulamos e apresentamos um projeto de trabalho elaborado a partir dessa necessidade e das particularidades conhecidas da empresa. Para nós este é sempre um projeto provisório, que poderá ser modificado posteriormente. O processo de ampliação e transformação da demanda inicial começa a partir desse momento, em decorrência das entrevistas investigativas com gestores e pessoas envolvidas nas situações relatadas no início do processo. Paralelamente, algumas questões mais pontuais podem ser atendidas, tanto para satisfazer necessidades imediatas do cliente quanto para favorecer o fluxo do trabalho. O atendimento individual, quando achamos necessário, requer muita atenção e cuidado, pois não pode comprometer o trabalho coletivo. Conforme o caso, apresentamos uma adequação, ampliação, aprofundamento do projeto inicial, com as múltiplas vozes que entraram no processo através das entrevistas. A partir das entrevistas, um caminho possível é a facilitação sistêmica de processos coletivos com as equipes dos setores/departamentos. Nessas reuniões lançamos mão de vários recursos, norteados pelas práticas colaborativas e narrativas que entendermos mais úteis em cada contexto. Continuamos também realizando investigações apreciativas. Frequentemente, organizamos duplas de discussão para levantamento de temas a serem trabalhados que serão depois ampliados para grupos cada vez maiores, até estarem todos juntos.

Quando perguntamos sobre o que funciona adequadamente sobre as histórias de sucesso e boas resoluções, é comum ouvirmos sobre o que não vai bem e pode ser melhorado. Daí surgem as sugestões sobre o que fazer, como, quando e por quem. Como consultores contratados, observamos se as questões levantadas na demanda inicial estão presentes, o que na nossa experiência normalmente acontece quando os gestores estão atentos. Facilitamos também as conversas sobre como utilizar recursos e competências eficazes para a dissolução das questões problematizadas.

Quanto mais pessoas forem respeitosamente escutadas e tiverem suas colocações consideradas, transformando suas queixas em possibilidade de ações proativas, maior engajamento, comprometimento acontece no processo do trabalho, transformando modos usuais de individualismo, competitividade nociva, estresse, fofoca, implicâncias em relações e atuações mais coletivas, colaborativas, dialógicas, plenas de autonomia e autoria, de compartilhamento. Passa a ser uma prática expandida, sustentável e mais eficaz, tornando muito difícil o retorno a antigas formas.

É de emocionar e admirar, dentro dessa forma de trabalhar, os momentos em que pessoas/funcionários não habituados a ouvirem suas próprias vozes em público e a serem escutados se enchem de coragem e satisfação por contribuir e participar na busca de soluções para os desafios apontados. Entendemos que seja isso. Contudo, julgamos ser importante fazer uma ressalva – a horizontalidade não é uma real possibilidade na grande maioria de nossas empresas no Brasil. Neste sentido, para que as diferentes vozes sejam ouvidas e consideradas, importa muito o engajamento dos gestores, donos, executivos e a confiança conquistada pelos consultores. Importante também que os consultores fiquem muito atentos para não serem capturados nos enredos e disputas internas que levaram justamente à deflagração de conflitos.

Nesse caminhar, com o ganho de espaço e confiança nos processos coletivos e na capacidade das pessoas envolvidas, vamos preparando nossa saída, confiantes de que nosso melhor “legado” é facilitar e reforçar a autoria/autonomia de todos e cada um na incessante busca de melhores condições de trabalho, de vida.

Como profissionais sistêmicos, com múltiplas formações e habilidades, constatamos o quanto nossos recursos são positivamente diferenciados dentro de um mercado cheio de instrutores que chegam nas empresas com receitas prontas sobre o que e como fazer, ignorando a complexidade e particularidade das pessoas e do ambiente de trabalho. Nossa experiência e conhecimento no trabalho com pessoas e seus relacionamentos são ferramentas poderosas. Afinal, é disso que tudo se trata: seres humanos e seu bem-estar no mundo.


Agradeço a Dado Salem a oportunidade de realização desse trabalho.

Referências

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Recebido em: 29/08/2017
Aprovado em: 25/09/2017
 


1 Referência a uma escuta que privilegia ao mesmo tempo o conteúdo do que é dito e seus efeitos. Nos termos do autor, o Construcionismo coloca a ênfase não nos indivíduos, mas nas relações entre eles, que constituem “o locus de construção do mundo”. (Gergen & Gergen, 2010, p. 18)
2 Grandesso, M. (2015). Conversando com a família – práticas narrativas. Anotações a partir do curso sobre a abordagem colaborativa e as práticas narrativas coletivas realizado por Reciclando Mentes.
3 Trata-se de empresa familiar e que está na terceira geração de sócios-executivos.
4 Em inglês são os quatro ”D”: Discovery; Dream; Design; Destiny.
5 Sluzki, C. (2016). Comunicação oral. Plenária de abertura do XII Congresso de Terapia Familiar em Gramado, RS.
6 Denborough, D. (2014). Práticas Narrativas. Workshop realizado na PUC-RJ.
7 A “caixa de ferramentas” da Mediação de Conflitos oferece recursos de comunicação e de negociação, uma conversa compactuada em cima de acordos claros e com perspectiva ganha-ganha, onde as partes conseguem chegar a encaminhamentos satisfatórios para todos (Almeida, 2011, p. 2).
8 Negociação e princípios de Harvard: discriminar e separar a relação entre as pessoas das questões a serem negociadas; focalizar os interesses e não as posições; criar opções para benefício mútuo; usar critérios objetivos. Negociação baseada em interesses (Almeida, 2011, p. 31).
9 Almeida, T. (2011). Curso Básico em Mediação de Conflitos. Material apostilado e adquirido em    aula. Rio de Janeiro: Mediare.

I Terapeuta de casal e família, consultora em desenvolvimento de pessoas e organizações, terapeuta comunitária, membro da equipe de formação do CEFAI, assistente social especializada em comunidades e políticas públicas de saúde e educação. E-mail: villacacristina@yahoo.com.br

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