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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo Dec. 2017

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

Monsieur & Madame Adelman

   

 

João Bosco Alves de SousaI

 


 

 


“Por mais de 45 anos, Sarah (Doria Tillier) e Victor (Nicolas Bedos) estiveram juntos. Como eles conseguiram isso? Quem realmente é Sarah, essa mulher enigmática que sempre viveu na sombra do seu marido? No funeral do personagem-título, sua esposa é abordada por um jornalista que deseja escrever sobre o finado, um escritor renomado. O pulo do gato seria trazer sua história de vida a partir dos olhos de quem o acompanhou por 45 anos, desde quando ainda era um desconhecido, em um imenso flashback.” Essa é a resenha do filme nos sites de cinema.

No entanto, não vou escrever uma crítica a respeito, mas narrar sob uma outra perspectiva o que me afetou nas nuances e delicadezas do filme. Ao refletir e ao escrever sobre os Adelman, a primeira coisa que me ocorreu é que ninguém escreve impunemente. A gente escreve sobre o que nos afeta. E sobre o visto e as experiências vividas quantas narrativas são possíveis? Sobre quantos e quais recortes, camadas, perspectivas nós podemos olhar uma obra e nela refletir ou deixá-la incidir sobre nossa história? O filme é uma história sobre um escritor, um casal, um amor, sobre famílias, a respeito de uma época; narrada por uma mulher, a esposa, a mãe, a mentora, a musa para um jornalista, outro futuro narrador.

Todos aspectos relevantes. Não é o jornalista que nos apresenta os Adelman, é a mulher, Sarah, nas suas memórias. E a memória é uma paleta ou ilha de edição, como já dizia Waly Salomão. Ao narrar, editamos e misturamos as nossas memórias, nossas histórias e estamos permanentemente construindo outras que nos deem sentido e, podendo reinventá-las, nos libertamos ou as usamos para culparmos outros pelo que somos ou não conseguimos ser. Sarah externaliza, desconstrói e reinventa sua história com Victor Adelman no momento em que conversa com o jornalista.

Quando contamos uma história, seja de que modo for, sobre um relacionamento, um amor vivido, seja a de outro ou principalmente a nossa, nós perdemos a noção da hora. Quanto mais tempo vivendo juntos, as lembranças vão se embaralhando, as pontas dos fios dos eventos vão se enredando e já não sabemos, muitas vezes, a quem pertence aquela história ou como começou, quem a protagonizou. E aí, como diz o poeta Chico Buarque, “se na bagunça do teu coração meu sangue errou de veia e se perdeu. Como, se na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido e o meu sapato inda pisa no teu”, me diz agora o que devo contar.

Sarah, ao narrar a história da sua vida junto a Victor, é amorosa e generosa. Enfeita, recorta, expõe defeitos e qualidades deles, das histórias familiares de origem, dos (des)caminhos profissionais, revela segredos, mágoas, frustrações, momentos sublimes. Conta as verdades dela com malícia, bom humor e melancolia. Se reinventa! Conta-nos uma história de amor com a dor e delícia de ser o que foi a partir de suas escolhas. Revela-nos suas memórias numa aparente ordem cronológica, mas a partir de um final, cena última de uma vida, a morte de Victor, pois ela sabe que tudo finda – os livros, a fama, os filmes, as séries, as novelas, as histórias reais de amor, ficando apenas a versão de cada um que viveu. Ela traz a sua versão.
A única coisa que não podemos alterar é o futuro; ao passado podemos dar mil novos significados. Juntamos fotos, narrativas de outros, inventamos, mentimos, criamos, exageramos nas tintas, nos dramas, responsabilizamos os deuses, os astros, desde que... possamos “explicar” o que para nós tem seu nexo, plexo e sentido.
Foi a história do escritor que gerou inicialmente em mim a vontade de ver o filme e, posteriormente, a ressonância gerada me fez escolhê-lo para escrever este artigo. Na minha ilha de edição algumas cenas ressaltarei para compartilhar com vocês.

Logo no início da história somos apresentados a Victor por uma homenagem póstuma no momento do seu enterro. Um escritor laureado e de sucesso. Mas o que sobressai na narrativa de Sarah é Victor, o homem, que desde o início ela escolheu para amar. Ela é determinada e decidida e ele, atabalhoado, demora a entender e aceitar o amor que bate na porta. Até acho que os homens são mais lerdinhos ou medrosos para estas decisões. Ou talvez, como ela nos apresenta, o fato de ele estar mais preso à vaidade de ser escritor e o medo de uma mulher crítica e inteligente o impediram escolhê-la de imediato como companheira. A vaidade exagerada enche o mundo de espelhos, selves, likes, engajamentos.
É preciso se abrir ao outro para inventar histórias e, sem medo, ter a honestidade de saber que as nossas vidas e narrativas são um permanente inter-texto. Somos antropofágicos, devoramos as lembranças, os textos, as citações, as experiências e, se tivermos sorte, produziremos uma nova versão de nós mesmos. Quais seriam os livros publicados de Victor sem a voz, a presença de Sarah? Não saberemos, apesar de ela aventar rumos.

Outro aspecto que me veio aos olhos foi a admiração recíproca que os sustenta. Uma das coisas que harmoniza um relacionamento é o grau de admiração que um mantém pelo outro. E onde, ou em qual aspecto, ancoramos esta admiração. É preciso olhar para o outro de maneira ampla, em seus mais diversos enquadramentos e sabedor de que o tempo altera as cenas, o corpo, o ser. Isso o filme traz bem resolvido. E é bonito ver os percalços que esta admiração sofre para se manter na trajetória da vida, pour savoir combien de temps c’est la durée del’amour, para saber quanto tempo dura um amor.

Adelman, sobrenome judeu, é da família de Sarah. Entretanto, Victor, no decorrer de sua vida profissional, assume como seu o sobrenome dela. Indo além, se dizendo ou se “identificando” como de família judia. É inusitado o impacto disso na sua criatividade. Não é uma mera questão de quem assume o sobrenome ou rompimento com o que manda o patriarcado, que a mulher assuma o sobrenome do marido, atualmente em desuso. O que vem na minha moviola e reflito é o quanto assumimos as histórias familiares dos nossos companheiros ou companheiras, com graus diferentes de incorporação nessas e dessas histórias. Isto passa pela aceitação das diferenças culturais, amorosidade, valorização da história e repertório do outro. Uma outra situação é quando, por nossa fragilidade, autodesvalorização ou desconhecimento da própria história, nos deixamos ser incorporados, nos deixamos fagocitar pelas histórias dos outros e nos perdemos.

O filme e esta cena lembraram-me da ocasião em que fiz o meu próprio genograma, onde fui iluminando determinadas passagens, dando novos significados, e me estimulou a imaginar como seria minha história contada pelos meus filhos, minha mulher, minhas irmãs, amigos... as minhas múltiplas versões.

Os diversos sistemas familiares são cenas também marcantes no filme. As famílias originárias de Sarah, uma judia sobrevivente da guerra, a outra, de Victor, católica, burguesa, conservadora, e o núcleo que eles formaram. As famílias e sua história transgeracional podem ser nosso grande porto para as tempestades da vida ou o hospício onde seremos trancafiados. Ainda bem que os desejos são subversivos, rebeldes, transgridem e transcendem; do contrário, impossibilitados de escolher amores diferentes de nós, viveríamos em uma sociedade “incestuosa”, eugênica, presa a casamentos entre castas, famílias, classes. Victor e Sarah buscam o que o outro tem como história nas suas diferenças e hábitos e mesmo com seus defeitos de fabricação, para depois descobrirem e inventarem o seu próprio mundo, sua própria história. Mas o hospício que nos espreita está também na repetição dos hábitos e costumes perversos que as famílias às vezes constroem para si, nos doam e levamos nas nossas bagagens como presentes matrimoniais, junto com os enxovais da cama.

Acho importante trazer uma última questão, que é a pergunta que o repórter faz para Sarah depois de ouvi-la e ficar estupefato com algumas revelações de alguns segredos: “posso escrever isto?  Ela responde que não. Ele contra-argumenta dizendo que os “leitores de Victor têm o direito de saber a verdade”. Qual verdade? Os livros que ele tinha que escrever já escreveu, as diversas biografias já foram publicadas e alguns segredos devem ser mantidos. Mais ou menos isto, ela responde. Nos relacionamentos amorosos são tantas “verdades” e segredos, o que me fez lembrar o poema ‘Lisboa revistada’, do Fernando Pessoa.

E assim, com as diversas vozes que permearam meu juízo ao escrever este artigo, escuto Caetano Veloso compondo minha trilha:

“Não me venha falar da malícia de toda mulher. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim. Cale a boca e não cale na boca notícia ruim. Você sabe explicar. Você sabe entender tudo bem... Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”. (Cateano, 1986)

Eu teria uma série de outras questões marcantes a serem escritas. Até porque, nesse exercício do refletir e escrever sobre esta obra, operam em mim novas ideias, mudanças sobre o modo de olhar o amor, os casamentos, os meus relacionamentos e até mesmo as histórias de famílias que se apresentam no meu consultório. Por isto, recomendo assistirem ao filme, inventarem e re-narrarem suas histórias de amor.


Referências

Bedos N. (2017). Monsieur & Madame Adelman [Filme/vídeo]. Roteiro D. Tillier & N. Bedos, Prod. François Kraus. França: Imovision.         [ Links ]

Jobim, A. C. & Buarque, C. (1980). Eu te amo.  In Vida [LP, álbum, faixa 8, 4,55 min.]. Portugal: Philips.         [ Links ]

Veloso, C. (1986). Dom de iludir.   In Totalmente demais [LP álbum, faixa 11, 3,24 min.]. Rio de Janeiro: Polygram.         [ Links ]

I Psicólogo, terapeuta de famílias e escritor autor do livro Contando Histórias – Fazendo História. São Paulo. PUC/EDUC, 2007. E-mail: sousajb@terra.com.br

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