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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo Dec. 2017

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

Percepções dos trabalhadores da construção civil do Rio de Janeiro sobre a questão de gênero 

 

Marina Sidrim TeixeiraI

 


 

 

Nota do Editor:
Consideramos muito importante divulgar, sempre que possível, notas breves de relatórios de pesquisas realizados nacionalmente sobre temas de grande interesse. Neste sentido, nossa seção Família e Comunidade em Foco da edição 59 da Nova Perspectiva Sistêmica traz o breve relato da pesquisadora Marina Sidrim Teixeira sobre pesquisa realizada pelo Instituto Noos, em parceria com SECONCI e Instituto Avon, sobre o tema gênero e violência. Pensamos que esta temática contribui em diversos âmbitos para os leitores e leitoras de nossa revista, em suas práticas institucionais e privadas, assim como estudos e pesquisas afins.
Editor Coord. NPS.

A pesquisa “MAPEAMENTO DAS PERCEPÇÕES SOBRE GÊNERO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE TRABALHADORES DO NÍVEL OPERACIONAL DA CONSTRUÇÃO CIVIL”, em cujos resultados se baseia este artigo, foi realizada pelo Instituto Noos, tendo como instituição parceira o SECONCI e como órgão financiador o Instituto AVON. Foram ouvidos 800 trabalhadores homens exercendo funções operacionais do setor da construção habitacional e seus resultados são válidos para os 37.494 trabalhadores na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, dos quais 2,9% são mulheres1.

A pesquisa faz parte de um projeto mais amplo – “Equidade em Construção” – cujo objetivo é contribuir para o engajamento do setor da construção civil do Rio de Janeiro no enfrentamento à violência de gênero e doméstica contra a mulher. Pretendeu entender melhor o fenômeno da violência de gênero no contexto da construção civil e, não dissociado, da violência doméstica, com o intuito de mapear os valores e cultura que permeiam esse contexto e seus participantes com vistas a instrumentalizar as demais ações que compõem o projeto.

Para tanto investigou o perfil socioeconômico dos trabalhadores, suas atitudes e comportamentos frente às mulheres e sua posição sobre a entrada da mulher no setor da CC. Os resultados estão consubstanciados em um longo relatório, mas alguns pontos concentram seus principais achados. São eles:

  • Defasagem entre atitudes que revelam uma certa consciência do que seria desejável em termos de maior equidade de gênero e posições comportamentais ainda arraigadas ao modelo hegemônico de subordinação da mulher ao homem e à divisão sexual do trabalho.
  • Maior percepção da violência doméstica contra a mulher nos outros homens do que em si mesmos: perguntados diretamente se achavam já ter agredido de alguma maneira uma parceira, em proporção bem inferior aos 61,2% de conhecimento que disseram ter de homens próximos a eles que agrediram, 25,5% dos trabalhadores responderam afirmativamente a esta questão. Entre as agressões admitidas pelos próprios entrevistados, predominam as de ordem psicológica, seguidas pela física.
  • Consciência das dificuldades de diversas naturezas para que a mulher possa ser positivamente integrada aos canteiros de obras e revelação de disposição para enfrentar essas dificuldades.
  • Homogeneidade de pensamento/conhecimento: ou seja, os resultados obtidos para o conjunto dos trabalhadores do nível operacional da construção civil não registram diferenças estatisticamente significativas quando cruzados pelas funções que exercem no setor no que tange às suas percepções sobre os temas centrais da pesquisa. As diferenças ocorrem apenas nos seus perfis, uma vez que as funções estão inseridas em uma hierarquia própria da organização do setor e a ascensão nesta hierarquia implica tempo, experiência e qualificação. Isso é mais forte quando fica claro que existem diferenças geracionais, de tempo de migração e de religião hegemônica (alternância entre católicos e evangélicos) entre eles que poderiam afetar sobremaneira suas visões de mundo.

Face aos limites deste texto, optou-se por explorar mais a questão da dissonância cognitiva2, ou seja, o descompasso entre atitude e comportamento apresentado pelos trabalhadores ao comentar alguns dos resultados que apontam para a sua existência e que perpassam basicamente todos os achados da pesquisa:

  • Ao expor a sua opinião sobre quem pode desempenhar algumas tarefas do coti-diano e tendo à sua disposição as alternativas “só mulher”, “só homem” e “ho-mem e mulher”, para todas as atividades escolheram predominantemente a ter-ceira alternativa. Tais escolhas poderiam levar a crer que o caminho para uma relação com mais equidade já estivesse bastante trilhado. Contudo, a ordenação das respostas “ambos” mostra que as escolhas ainda são balizadas pelos papéis tradicionais atribuídos a homens e mulheres na nossa sociedade, mesmo reve-lando surpreendente evolução. É nas alternativas “só mulher” e “só homem” que se percebe o quanto estes papéis ainda estão cristalizados.
    Assim são ordenadas as tarefas que só poderiam ser desempenhadas pelas mu-lheres: lavar e passar roupa (32,9%); cozinhar (18%); limpar e arrumar a casa (15,5%); cuidar dos filhos (5,6%); ter a iniciativa de convidar o/a parceiro/a para fazer sexo (1,7%). Nesta lista só surpreendem os quase 2% de trabalhadores que atribuem à mulher pleno protagonismo sobre sua vida sexual dentro da relação. No mais, uma parcela dos trabalhadores ainda se exime de qualquer participação na responsabilidade sobre algumas tarefas domésticas do cotidiano.
    Já só aos homens caberia: fazer pequenos consertos em casa (53,8%); garantir o dinheiro necessário para o sustento da casa (30,9%); ter a última palavra nas decisões importantes para a família (17,9%); dirigir carros (5,2%); ter a iniciativa de convidar o/a parceiro/a para fazer sexo (3,9%); educar os filhos (1,2%); limpar e arrumar a casa (0,7%); cozinhar (0,5%) e cuidar dos filhos (0,1%). São, portanto, as tarefas tidas como femininas as que menos podem ser desempenhadas somente pelos homens, valendo destacar a significativa parcela de trabalhadores que ainda se veem como únicos no papel de provedor da casa.
  • O nível de concordância dos trabalhadores com algumas máximas disseminadas pelo senso comum mostrou que privilegiaram a defesa da não interferência ex-terna em brigas de marido e mulher (manutenção do assunto no nível do priva-do) e legitimação da defesa da honra. Mais da metade concorda também que a lei Maria da Penha interfere em situações que devem ser resolvidas unicamente pelos casais.
    Ainda neste tópico, a afirmação de que “existem momentos nos quais a mulher merece apanhar” obteve um expressivo score de discordância: 94% dos traba-lhadores; isso evidencia que, no plano da atitude, este seria um “valor” pratica-mente descartado.   
    A despeito de 94% dos trabalhadores discordarem da assertiva de que “existem momentos em que a mulher merece apanhar”, os mesmos assim se posicionaram quando questionados sobre “em quais situações você acha justificável um ho-mem agredir fisicamente uma mulher”: 40,9% quando ela trai; 22,1% quando ela se comporta ou veste de forma provocativa; 14,7% quando ela não cuida bem dos filhos; 13,1% quando ela bebe ou tem outros vícios; 4,4% quando ela dispara a falar e não o escuta; 3,3% quando ela não cumpre suas tarefas domésticas; 1,5% quando ela não quer transar quando ele quer.
    Na verdade, esta contradição, já expressa em outras pesquisas, mostra que, na prática, o recurso à agressão física volta a ser admitido no repertório dos homens mesmo quando eles já sabem racionalmente que a atitude não é “politicamente correta”. O fato de a traição feminina ser a maior causa de agressão justificável também mostra a permanência do sentimento de posse sobre a mulher, ainda que, outra vez, ao nível racional eles discordem da recíproca, como foi visto acima.
    Em resposta livre, aqueles que assinalaram a alternativa “outros motivos pelos quais achavam justificável agredir fisicamente a parceira” mencionaram tanto razões relativizantes do tipo “depende da situação” como, principalmente, o re-vide a situações nas quais a mulher agrediu primeiro e o homem tem que agir “em legítima defesa”. Respostas que, em última instância, responsabilizam a mulher por deflagrar a violência ou, pelo menos, dão conta de que as agressões devem ser entendidas na relação.
  • A grande maioria tem uma visão positiva da mulher trabalhadora da CC e usa preferencialmente a palavra guerreira para expressar sua admiração. Pensam que ela deve ter salário e tipo de contrato iguais aos dos homens e, em menores proporções, acham que deveriam ter uma jornada de trabalho também igual. Contudo, como outras pesquisas também já haviam registrado, preferem que esta mulher não seja a sua mulher.
    Os que têm uma visão negativa ou, mais explicitamente, são contra o ingresso da mulher no setor, apoiam-se em razões bem “tradicionais” para justificar sua posição: condições físicas diferenciadas, falta de habilidade para as funções, necessidades de longos afastamentos por causa da gravidez e a defesa da mulher restrita ao desempenho de funções de mãe e dona de casa. Alegam também que muitas modificações seriam necessárias nos canteiros para receber as mulheres, ponto em que todos estão de acordo e até listaram uma longa série das alterações que julgam necessárias, visando principalmente à criação de espaços próprios para elas, denotando não apenas cuidado e atenção, mas também garantir a permanência de um espaço para o convívio masculino ao qual estão habituados. Em resposta livre, mencionam também uma extensa quantidade de mudanças comportamentais que precisariam operar em si mesmos para que a inserção feminina possa ter êxito, sendo as principais: mudanças no comportamento geral com mais respeito (30%); redução do machismo (19%); mudança de linguagem e do tipo de conversa (11%); mais educação, treinamento e qualificação (6%) e redução de preconceitos em geral (3%).
    O amplo painel de respostas denota expectativas de mudanças e níveis de cons-ciência diferenciados, mas evidencia que os trabalhadores têm noção dos tipos de problemas envolvidos com a entrada e permanência das mulheres nos cantei-ros de obras e que algumas dessas mudanças vão exigir uma reciprocidade das mulheres.

Em que pese a consciência de que muito vai precisar mudar no canteiro e em si mesmos, os trabalhadores parecem querer aceitar o desafio, pois, entre aqueles que declararam que elas podem entrar na construção civil, somente 7% disseram não querer trabalhar ao lado de uma mulher. Como mencionaram em diversos momentos da entrevista, 86% gostariam de participar de palestras sobre o assunto para se sentirem mais seguros para lidar com as trabalhadoras mulheres no canteiro de obras.

Concluindo, embora ainda possa ser vista como insipiente, uma mudança positiva está em curso na relação pessoal e profissional entre homens e mulheres, mesmo quando se tem como foco um setor do mercado de trabalho tradicionalmente masculino, cujas funções operacionais são exercidas predominantemente por homens com baixo nível educacional e pertencentes a setores sociais menos favorecidos social e economicamente. Como disse um entrevistado:

Fico feliz de ver uma mulher guerreira. O mercado está aberto pra elas e fico feliz e orgulhoso. Não só o homem pode crescer. Tem homem que limita a mulher e elas têm capacidade para ser uma pedreira... uma profissional. As mulheres estão muito presas dentro de casa.
Reação de um soldador, carioca, preto, evangélico, 33 anos, com primeiro grau incompleto, à foto das mulheres pedreiras.


1 Dados da RAIS/TEM, 2015 levantados utilizando o filtro da CNAE 2.0 [https://cnae.ibge.gov.br/] – construção de edifícios.

2 Oliveira, A. C. em projeto de pesquisa “Atitudes e comportamentos de adolescentes em relação ao uso e ao abuso de álcool: um estudo a partir de oficinas realizadas com estudantes de ensino médio de escolas da rede pública do município de Volta Redonda/RJ”, citando Rodrigues, A, Jablonski, B, & Assmar, B. (2011). Psicologia Social, Petrópolis, RJ: Vozes.

I Socióloga, tecnologista sênior em informação geográfica e estatística aposentada do IBGE, mestre em Filosofia da Educação, pesquisadora, consultora de metodologia de pesquisa, coordenadora de pesquisa do Instituto Noos. Diretora do Instituto Fatos de Consultoria e Pesquisa. E-mail: marinasidrimteixeira@gmail.com

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