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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.27 no.60 São Paulo Jan./Apr. 2018

 

ARTIGOS

 

O sexo dialógico: um conceito facilitador para conversações sobre práticas sexuais

 

The dialogical sex: a facilitator concept to conversations about sexual practices

 

 

 

Tema LenziIBruno LenziII

I Movimento - Clínica e Escola de Psicologia Sistêmica, Florianópolis/SC, Brasil.
II Movimento - Clínica e Escola de Psicologia Sistêmica, Florianópolis/SC, Brasil.

 


RESUMO

Frequentemente, em nossas práticas clínicas, nos deparamos com clientes que buscam a terapia com temas relacionados às práticas sexuais, à sexualidade e/ou ao gênero. Desenvolvemos com estes clientes um diálogo sobre os significados que acompanham estes dilemas, explorando e enriquecendo conhecimentos, favorecendo a transformação das formas como nos relacionamos com o fenômeno e a coerência da problematização. Neste artigo, gostaríamos de convidar ao diálogo algumas vozes que participam da significação do encontro sexual, desde tradições antigas e rígidas, a inteligibilidades liberais, de entendimentos culturais, a experiências situadas. Então, propomos uma nova forma de entendimento do encontro sexual, que nomeamos sexo dialógico por suas características intrinsecamente associadas ao diálogo e às transformações que ele gera.

Palavras-chave: prática sexual, sexualidade, construcionismo social, terapia de casal, terapia dialógica colaborativa.


ABSTRACT

Frequently in our private practices, we meet with clients who seek therapy with themes related to sexual practices, sexuality and genre. Weve developed with these clients dialogues about de meaning that accompany these issues, exploring and enriching knowledge, favoring transformation of ways of relating with the phenomenon and the coherence of problematics. In this article, we would like to invite to dialogue some voices that participate in the meaning making of sexual encounter, since ancient and rigid traditions, to liberal intelligibilities, and cultural understandings to situated experiences. Then we propose a new way of understanding to sexual encounter, which we named dialogical sex, for its intrinsically associated characteristics with dialogue and the transformations that it generates.

Key Words: sexual practice, sexuality, social constructionism, couple therapy, dialogical collaborative therapy.


 

Para entendermos a coerência dos significados experimentados no encontro sexual, precisamos conhecer os discursos produzidos e produtores deste contexto de entendimento, como ele influencia pessoas a viverem determinadas sexualidades legitimadas e como é sustentado pelas tradições delas. Faz-se necessário que invoquemos a participação de nossa cultura ocidental, com os valores e tradições que ela traz para o diálogo. Neste sentido construímos um diálogo entre as perspectivas de gênero e sexualidade construcionistas sociais, do pós estruturalismo, da teoria queer e da psicologia crítica, sem a intenção de reduzir toda a complexidade de cada um destes movimentos, teorias e epistemologias, mas como um destaque aos pontos de encontro para complexificar sexualidade e práticas sexuais, respondendo ao primeiro objetivo deste artigo: definir nosso entendimento de sexo dialógico. 

Em seguida refletimos recursos para a prática dialógica colaborativa com nossos clientes no contexto da clínica psicológica, para responder ao segundo objetivo: explorar as possibilidades de transformação de significados para práticas sexuais com pessoas que vivem algum desconforto ou sofrimento nesse contexto.

Três inteligibilidades presentes em nossas reflexões

Louro (2000), representando a teoria queer, participa desta busca criticando os discursos que carregam a força de tradições, que incitam uma legitimidade difícil de questionar, principalmente no contexto da ciência e saúde. Sendo seu principal argumento o da matriz biológica, supostamente imutável, operando sob ótica essencialista, relacionando sexualidade a uma busca inata pela reprodução. A partir do paradigma essencialista, identidade é entendida como atribuição cultural, definida pelo contexto e corpos têm seus significados inerentes à matriz biológica. Inteligibilidades específicas, como o Estado, igreja, ciência, determinam padrões de normalidade, pureza e sanidade.

Outro autor com quem dialogamos em nossas construções da sexualidade é Michel Foucault. Em sua análise histórica da sexualidade, Foucault nos lembra que a sexualidade nem sempre foi o que vivemos hoje, ou nas últimas décadas. Na antiguidade se falava e praticava uma sexualidade diferente, o que entendemos por transgressões eram vistas com frequência e naturalidade, como a iniciação sexual de jovens rapazes por homens mais velhos e experientes. Até o século XX, um homem ter relações sexuais ativas com outro não diminuía sua virilidade. No caso de mulheres a intimidade sexual entre elas não era estranhada até muito recentemente no século XX. Foi com o início da doutrinação da sexualidade que encerramos a sexualidade ao quarto dos pais, normatizado em práticas reprodutoras, com espaço para transgressão limitado aos prostíbulos e à clandestinagem (Foucault, 2007).

E, finalmente, temos com os autores do construcionismo social (Borges et al., 2013; Borges, 2014; Gergen, 1994; Gergen, Hoffman, & Anderson, 1996; Gergen & McNamee, 2010;  McNamee & Gergen, 1999; Nogueira, 2001; Rasera, Teixeira, & Rocha, 2014) os entendimentos para sexualidade como construção linguística não essencialista, em que, como profissionais, buscamos conhecer as formas singulares, histórica e socialmente situadas, para conceitos de sexualidade, às vezes até conceitos conflitantes em um mesmo self relacional enquanto mantemos uma posição cética quanto às generalizações, categorias, certos e errados, mesmo sabendo  que, ingenuamente, nossas performances de sexualidade servem a uma regulação e normatização social, ou seja, nossa expressão de sexualidade é política e serve a uma hierarquia.

Tradições de sexualidade

Precisamos deixar claro que, como Foucault (2007), percebemos a tradição cultural ocidental não como repressora da sexualidade, mas como doutrinadora, regulando e educando as práticas legitimadas do sexo, pessoas e populações. Tradições repressoras entendem a prática sexual como essencialmente indesejada, uma atividade marginal, digna de punição. O que vivemos é uma educação para os espaços de legitimidade da sexualidade, um direcionamento para sua prática encerrada ao casamento, monogâmica, heterossexual. Neste sentido somos doutrinados a pensar este significado para sexualidade e prática sexual como certo, desde que respeitando estas fronteiras.  Um convite possível para o trabalho de transformação da doutrinação é a ampliação das fronteiras de certo e errado no sexo a partir do diálogo com as pessoas que vivem estas práticas, uma subversão respeitosa de dentro do sistema que, a cada conversa, complexifica significados legítimos para entendimentos de identidades e práticas sexuais mais singulares e menos abstratas (Borges et al., 2013; Foucault, 2007).

Podemos datar o início da doutrinação da sexualidade ao século XVII, junto ao desenvolvimento do capitalismo e da classe burguesa. Isto em um momento em que se explorava ao máximo a força de trabalho, controlando e direcionando a força dissipada com prazeres a espaços cada vez menores, até alcançar o estado mínimo no qual o prazer era autorizado apenas quando acompanhado pela produtividade da reprodução humana (Foucault, 2001). Neste caso, é fácil entender a homossexualidade como ameaçadora para aqueles ligados ao status quo cultural (Louro, 2000; Rasera, Teixeira, & Rocha, 2014), quando a prática de um prazer não reprodutivo prejudicaria a esteira industrial.

Aquilo que consideramos como legitimamente permitido no privado está controlado por interações complexas sobre o tipo de sociedade a que queremos pertencer. Vivemos um período em que estão cada vez mais públicos os movimentos que atestam à mudança nos valores e tradições ligadas à sexualidade e ao prazer. Essa é a razão pela qual questões tais como a pornografia, que têm a ver com o impacto público do gosto e da fantasia privados, tornam-se tão controversas (Louro, 2000).

Este período de transformação dos significados para sexualidade tem acentuado a discussão sobre como regulá-la e controlá-la. Aquilo que acreditamos que o sexo é, ou o que ele deveria ser, estrutura nossa resposta a essa questão. É difícil separar os significados particulares que damos à sexualidade das formas de controle que defendemos. Se considerarmos o sexo como perigoso, perturbador e fundamentalmente antissocial, então estaremos mais dispostos a adotar posições morais que propõem um controle autoritário e rígido. A isso chamamos de abordagem absolutista. Se, por outro lado, acreditamos que o desejo sexual é fundamentalmente benigno, vitalizante e liberador, estaremos mais dispostos a adotar um conjunto de valores morais radicalmente flexíveis, a apoiar a posição libertária (Louro, 2000). Entre estas duas posições, construímos com cada um dos nossos parceiros conversacionais, em práticas dialógicas, uma posição liberalista, fluída e singular das formas mais qualitativas de expressão de seus desejos e prazeres na sexualidade.

Buscando nos afastar do paradigma essencialista, nos engajamos aos processos contextualizados de viver sexualidade, realidades locais influenciadas pela cultura. Este foi um movimento observado principalmente na antropologia, mesmo assim, era considerada apenas a influência cultural sobre a sexualidade, não a compreendendo como produto cultural. Destacamos a diferença entre influência e produto nestas perspectivas. Em diferentes sociedades, corpos ganham interpretações diferentes. Como o pós-modernismo convida, precisamos perturbar verdades absolutas através do nosso interesse na cultura e suas representações (Louro, 2000; Rasera, Teixeira, & Rocha, 2014).

Foucault (2001) propõe que o sexo foi colocado no discurso nos últimos três séculos, em oposição aos mecanismos de repressão sobre a sexualidade. Iniciou-se um processo de afastamento do saber do desejo, para uma aproximação ao saber do prazer e ao prazer de saber, na forma de descrições, explicações, regulações, indicações e normatizações quanto às possibilidades de experimentação sexual.

Hoje temos novos movimentos sociais conquistando espaço na construção de saberes sobre sexualidade, como feministas e minorias sexuais revitalizando o diálogo com novas concepções, discursos e ética (Louro, 2000). A teoria Queer, como uma voz participante deste movimento, pretende desarranjar e subverter noções e expectativas para o gênero e a sexualidade. Para isso encontra na teoria performática, desenvolvida por Judith Butler, o conceito de performatividade, proveniente da linguística, utilizado para identificar os modos como os corpos e os sujeitos são construídos no discurso. Não nos interessamos mais por diferenças sexuais orgânicas, nos engajamos no processo de como são nomeados estes corpos e sujeitos (Borges et al., 2013; Gergen, 1994; Louro, 2004). Em nossa prática profissional e vidas cotidianas estamos abertos à transformação e não mais restritos a rótulos permanentes de heterossexualidade ou homossexualidade, por exemplo. Significados não estão fechados, estamos sempre nos transformando e nossa identidade está aberta para o novo. Não precisamos nos adequar a identidades pré-concebidas, ignorando características singulares para pertencer a um grupo específico. A posição liberalista nos autoriza a reconhecer as singularidades das pessoas de forma a legitimar suas escolhas, seus desejos, seu desenvolvimento humano através de uma postura política e curiosa.

Com o construcionismo social continuamos nos distanciando do essencialismo e nos voltamos para a forma como a sexualidade é produto das trocas históricas e culturalmente situadas – ressaltando como práticas sexuais aparentemente semelhantes têm significados distintos em culturas diversas, coletiva ou subjetivamente. Concordamos com alguns autores do construcionismo ao pensar que não existe qualquer predisposição inata, seja biológica ou psicológica, na formulação de uma identidade sexual. O direcionamento é resultante de experiência com histórias pessoais e subjetivas e da interação com a inteligibilidade cultural. Mesmo o desejo sexual é socialmente construído, fruto de um processo histórico e cultural, negando a possibilidade de um desejo latente, a ser desperto. Lembramos os exemplos citados anteriormente de práticas sexuais na antiguidade e até o século XVII. Para entendermos a sexualidade, precisamos entender os discursos produzidos e produtores desta realidade (Anderson, 2009; Gergen, 1994; Gergen & McNamee, 2010; Lenzi, 2013; McNamee & Gergen, 1999; Rasera, Teixeira, & Rocha, 2014 ).

O sexo colocado no discurso visa complexificar o conceito de sexualidade. É reducionista pensar sexualidade como essencialmente biológica e é impossível negar o envolvimento do corpo, ela é exercida por ele. Mas mesmo o corpo não pode ser reduzido ao biológico, quando é a partir da cultura que buscamos seus moldes e identidade. Passamos a entender estes conceitos como construídos nas relações imbuídas de poder (Louro, 2000).


Sexo como significado singular

Com estes conhecimentos para o desenvolvimento do eu e da construção de significados de forma linguística, podemos entender identidade sexual e práticas sexuais como construções sócio-históricas, singulares a cada situação e a cada pessoa. Este saber fundamenta nosso entendimento de sexualidade como livre de categorias ou rótulos, nos desafiando a conhecer o único e o singular em cada história, cada jogo de sexualidade. Toda a categoria é hierarquizada. Para se fazer uma prática crítica precisamos reconhecer o único e a coerência de cada realidade, respeitando seu processo de desenvolvimento e atento à necessidade de atualização pelas respostas de quem a vive. Chamamos de prática dialógica colaborativa esta postura filosófica (Anderson 2009; Anderson & Gehart 2007) de acreditar no nosso cliente. Acompanhar seu processo confiante de que o seu saber e a exploração das possibilidades no diálogo conosco e com seus personagens internos (Lenzi, 2013) promoverá a sensação de autoria sobre sua vida e a criatividade para desenvolver novos recursos na superação dos desafios cotidianos. Isto entendendo nosso desenvolvimento como dependente das relações que construímos com nossos pares e atentos para as formas como podemos incentivar que estes relacionamentos invoquem novas formas de ser no mundo (Lenzi, 2017; McNamee & Gergen, 1999).

Como autor protagonista do movimento construcionista, Shotter (1993) propõe um questionamento do tipo de saber, de conhecimento que nos propomos a construir. Não é um saber teórico, ou "saber o que é", também não é um "saber como", relacionado a uma habilidade, porque é singular a cada situação.

Para entendermos o fenômeno da sexualidade, nos remetemos a Shotter e a um terceiro tipo de saber, um conhecimento que se tem quando se está dentro da situação, o que o autor chama de "saber desde" (1993, pp. 37-38). Este "saber desde" demanda uma investigação ativa, uma imersão no processo do outro para a participação nos seus processos de desenvolvimento de si e do mundo, sua história pessoal, a partir de uma relação dialógica, onde não há espaço para a neutralidade do observador, apenas para o conhecimento relacionalmente situado. Assim, construímos o conhecimento "desde" a experiência do outro, alternativo ao conhecimento externo, surdo e mudo à realidade local, "sobre" o fenômeno e descontextualizado. Nosso conhecimento só tem sentido naquele contexto, é situado.

Este conhecimento é construído na relação através da linguagem no diálogo. Logo, nos interessamos pelas palavras em seus enunciados, pelos fatores práticos de seu uso, como meios para a realização de processos comunicativos cotidianos, sua função modeladora e os processos em que acontecem. Desta forma, nestes processos construímos não somente um significado para nossa identidade, mas também para nossos mundos sociais (Lenzi et al., 2015).

Este saber local, o saber desde a experiência da pessoa, é o norte para um convite à reflexão e atualização dos entendimentos ocidentais para o saber do sexo. O paradigma empirista defendeu a ideia de que poderíamos alcançar um conhecimento objetivo para os fenômenos que observávamos, que poderíamos potencializar o prazer do sexo através do conhecimento do sexo. Neste movimento, entende-se por conhecimento o saber generalizado, quantificado, essencial a todos os seres humanos (Foucault, 2004).

Podemos identificar à nossa volta todas as fontes de pseudoconhecimento que oferecem técnicas para o aumento do prazer, para orgasmos múltiplos, posições estimulantes, ou seja, o conhecimento sobre um sexo genérico, uma fórmula que se aplica a quaisquer situações, um saber macro. A este entendimento Foucault (2004) nomeou scientia sexualis um fazer generalizado de saber do sexo para regulagem da intensificação do gozo.

Este saber do sexo não dá conta de toda a complexidade humana e marginaliza pessoas ao não se enquadrarem com a produção genérica. São pessoas estigmatizadas por não se adequarem, por não fazerem a sua parte na sustentação da norma. Neste processo, estas pessoas são diagnosticadas e patologizadas em suas formas singulares de experiência sexual. Nosso momento atual é de classificação a partir dos déficits e desatenção aos potenciais. São formas de dar identidade que alienam pessoas de seus saberes, de sua autonomia e as influenciam a buscar ajuda profissional para tratamento de determinado problema (Gergen, Hoffman, & Anderson, 1996; Gergen & McNamee, 2010).

É com esta maioria silenciada que começamos a desenvolver um entendimento alternativo à experiência sexual, uma prática interessada e legitimadora. Isto significa ingressar em uma inteligibilidade que desconfia da indústria da saúde, que não rotula pessoas, ou diagnostica condições e que, por este posicionamento, representa um importante movimento no desenvolvimento do nosso campo de atuação. A esta inteligibilidade chamamos ars erótica (Foucault, 2004), um retorno à forma de experiência sexual que se desenvolvia na antiga Grécia e o entendimento vigente por muitos mais séculos no Oriente.

A partir destas reflexões e estudos construímos o que entendemos como sexo dialógico, um conceito para reflexões quanto à prática sexual. Ele parte da compreensão de que o corpo se expressa através de uma linguagem complexa, que engloba sua integralidade. Portanto, compartilha dos valores para construção de diálogo, como simetria (não há diálogo onde há jogo de poder); interesse (para conhecer e explorar a linguagem corporificada); vulnerabilidade (para deixar-se conhecer e ser explorado em sua singularidade); e colaboração (para construção criativa de uma experiência generativa aos participantes, seja a pessoa consigo mesma, com o outro, ou com os outros). Sobretudo, o sexo dialógico é uma prática pacifista que demanda investimento e dedicação, enquanto recompensa os participantes com a experiência de uma relação construída sob medida aos desejos e prazeres e possibilidades de cada um.


Práticas dialógicas colaborativas e sexo dialógico

Com estes conhecimentos explorados, começamos a construção de uma prática de ressignificação das experiências de sofrimento com o sexo apresentadas por nossos clientes. A partir daqui começamos a exploração dos conceitos que nortearam nossa prática. 

Em consonância à comunidade dialógico colaborativa, nos ocupamos em engajar nossos clientes no processo das conversações terapêuticas, tornando-o significativo aos envolvidos. Investimos para que a relação terapêutica possa colaborar com os objetivos do cliente, que seja feita sob medida às suas necessidades e especificações, sem entrar em discursos culpabilizantes do cliente por falta de um sucesso que é relacionalmente dependente. 

Através de nossas perguntas curiosas incentivamos a reflexão e a possibilidade de experimentarem e conhecerem, em suas intimidades, o sexo através de sua própria prática cotidiana. E nesta disponibilidade de estar presente, na exploração do seu prazer no encontro com o outro e na própria experiência vai-se construindo o conhecimento local da sexualidade para cada envolvido, significando o sexo como diálogo corporificado. Para começar a nos desenvolver desde esta inteligibilidade, precisamos acessar o diálogo com quem nos busca como referência para a dissolução de sofrimentos nas questões deste tema. Temos, todos nós, conceitos diversos de sexualidade, às vezes antagônicos, às vezes paradoxais. O conhecimento de seus significados e contexto histórico de construção nos dá mais informações sobre as formas como podemos experimentar liberdade e prazer no sexo. Nossas conversas em clínica têm alertado para o silêncio manifesto na experimentação sexual. Por outro lado, o convite ao diálogo, a construção conjunta de entendimento e possibilidades localmente legítimas para praticar sexo e a curiosidade em conhecer direcionam para uma conversa respeitosa, promotora de singularidade.

Esta exploração respeitosa das singularidades no diálogo com o sexo propicia encontros sexuais dialógicos em que os envolvidos, sejam pessoas consigo mesmas, casais, grupos ou outras configurações, estejam engajadas em entender e conhecer umas as outras e a si mesmas nas possibilidades de desejo, prazer, respostas e performances. Isso é o que Lenise Borges (2014) poderia chamar de ética na prática sexual, uma experiência emancipadora e legitimadora das formas singulares de praticar sexo. 

Buscamos desmitificar a sexualidade como algo pertencente ao jovem, ao corpo esculpido,  às buscas de performances intensificadoras do prazer e de orgasmos múltiplos. Ele também não está restrito a uma forma para aliviar a ansiedade da vida rotineira ou a distrações de nossos próprios dilemas. Esta possibilidade de sexualidade serve ao sistema que restringe o prazer a atividades rápidas, objetivas, insatisfatórias, que mantém as pessoas numa busca incessante a um novo alívio orgástico, que direcionam apenas a energia necessária para o sexo, sem colocar em risco a energia de produção laboral. A partir do paradigma autoritário de entendimento do encontro sexual e do prazer, foram construídas estas formas de entendimento sobre o que é o sexo com as quais discordamos e convidamos à sua desconstrução e ampliação do seu significado.

Convidamos a uma percepção livre de julgamentos ou conceitos absolutos. Sendo assim, o certo e o errado não cabem no sexo dialógico, mas o que cada um escolhe, aceita, precisa e permite experimentar – acordados, conversados e entendidos na interação dos participantes, atentos às legitimações sociais que participam da validação de uma ou outra forma de encontro sexual e nossa posição consciente e elaborada para tais práticas legitimadas. Lembramos que verdades sobre a sexualidade são construções sociais que se transformam, e que a homossexualidade, no nosso contexto, já foi uma prática criminosa, punível pela lei, até ter seu significado transformado pela mobilização social. Ainda, em muitos contextos, a homossexualidade é demonificada e tratada com violência.

O conceito de sexo dialógico convida os participantes à reflexão de sua prática sexual em terapia, gerando novas formas de estar e responder aos encontros sexuais dos clientes, com interesse nos significados de sexualidade, desejo e prazer dos envolvidos. Quando significamos as práticas sexuais como um diálogo corporificado, nos engajamos em um processo interativo de busca pelo entendimento entre interlocutores. Através da exploração da responsividade dos corpos, construímos novos significados. Portanto, diálogo é um processo ativo de escuta, interpretação, exploração do interpretado e construção de novos entendimentos. O resultado é a mútua ampliação do conhecimento e enriquecimento dos significados vividos, que, por sua vez, promovem o autoagenciamento e bem-estar dos envolvidos (Anderson, 2009; Anderson & Gehart, 2007).  

Remetemos-nos à produção de Tom Andersen (2002) para o diálogo em terapia. Enquanto ouvimos nosso cliente, limpamos nossa mente de pensamentos, estamos presentes, com ele (Hoffmann, 2007), apenas observando e ouvindo o fluxo do relato. Não nos preocupamos em construir reflexões ou perguntas, mas nos comprometemos em escutar atentamente as mensagens enunciadas – pelo relato, pelo corpo, pelo que nos mobiliza, por nossas respostas corporais. Ao final do relato nos engajamos aos pensamentos que surgem da escuta numa conversa interna, privada e silenciosa. Sentimos e desenvolvemos aquele pensamento que nos toca mais intensamente, nos comprometendo com uma linha de curiosidade e uma pergunta. Então oferecemos esta pergunta, tornando público (Anderson, 2009) o processo pelo qual passamos privadamente para construção e oferta desta pergunta. Almejamos, com isso, que o cliente entenda como funcionam nossos pensamentos e processos privados e queremos participar com o nosso melhor do diálogo. Quando explicamos o processo de construção da nossa resposta e a oferecemos a ele estamos falando do processo e evidenciando a importância que aquilo tem para nós, a partir de nossa história pessoal e desenvolvimento singular, na esperança de causar certa tensão que seja suficiente para convidar à reflexão e ao novo, àquilo que é suficientemente diferente (Andersen, 2002). 

Precisamos nos posicionar com respeito, convidando nosso cliente a contar sua história sem pressa de entendermos, questionando nossa interpretação, confirmando pela resposta o conteúdo ouvido (Anderson, 2007). Precisamos acreditar no potencial do cliente e acalmar nossa ansiedade em resolver problemas. Queremos conhecer quem mais participa da sustentação da realidade em que ele vive, quem são as pessoas com quem se relaciona, quais suas posições, que papéis cumprem na manutenção da realidade (Gergen, 2009).

Convidamos à complexidade de todo conhecimento, queremos enriquecer os processos, aumentar as informações, estranhar o familiar e caracterizar os personagens internos no cliente em busca de vozes que possam trazer outro entendimento do mundo e entrar no diálogo da transformação humana. Então, com estes conceitos desenvolvidos, podemos acreditar que acessamos diálogo com nosso cliente. E nossos clientes desenvolvem espontaneamente o recurso do diálogo para se relacionar com a vida e com os outros. Sendo assim, os diálogos da prática terapêutica que significa o sexo como diálogo caracterizam-se pelo engajamento curioso dos participantes no processo de produção de conhecimento. Ele é aberto à diversidade e não convida movimentos de ataque ou defesa de ideias (Anderson, 2009; Anderson & Gehart, 2007; Gergen, 1994; McNamee & Gergen, 1999), da mesma forma que entendemos o encontro sexual. Para alcançar este estado, nossa primeira tarefa é criar um espaço de intimidade que invoque novas formas de pensar o sexo. Tudo pode ser conversado, não estamos defendendo teses, mas explorando possibilidades e conhecimentos no processo de construção de algo novo. Trazemos nossa estrutura, nosso conhecimento de forma a ampliar a significação da sexualidade, sem rejeitar outras possibilidades de entendimento. Queremos conhecer a história de nossos clientes e suas experiências neste campo. Cada experiência surge como possibilidade, contextualizada e coerente apenas em um contexto específico, que pode inspirar o novo e a criatividade aos participantes do diálogo, para posterior experimentação em suas práticas sexuais. 

Afastamo-nos do modelo de especialistas no sexo, ou na psique humana, do empírico e do positivismo. Como alternativa, legitimamos o saber local, a experiência singular de cada pessoa, como recurso para a potencialização e transformação da experiência na relação de troca dialógica entre pessoas. O respeito pelo jeito como o outro é, a aceitação de suas possibilidades e restrições se tornam presentes no processo e convidam nossos clientes a refletirem, se engajarem em momentos de intimidade dialógica e a construírem entendimento mútuo. Isso ocorre sutilmente em qualquer prática que não se caracteriza como violência. O que propomos são o destaque e o investimento relacional nestas práticas. Inspiramos-nos no conceito de amor de Maturana e Rezepka (2008), amar é aceitar o outro como legítimo outro.

Relato da prática

Um casal, ambos com 38 anos. Eles chegam a mim (Telma) com a história do sucesso profissional como prioridade em suas vidas. Optaram por não ter filhos e mantêm um casamento de 13 anos com bastante investimento na relação. Procuram terapia de casal com a narrativa de intenso fracasso em sua sexualidade, pela baixa satisfação e frequência sexual, relatando que acontece a cada 15 ou 30 dias.

Nas primeiras sessões conversamos sobre êxitos e fracassos. Objetivos de vida e do que me apresentam como alto nível de exigência de ambos. Reconheceram o quanto sentem orgulho pela relação construída de apoio mútuo e, no diálogo, foram percebendo que não há exatamente um fracasso, mas uma falta de compreensão de seus encontros sexuais.

Conversamos sobre o sentido da sexualidade para cada um, possibilidades, restrições e desenvolvemos o diálogo sobre as suas sexualidades e o conhecimento mútuo. Neste momento senti a aproximação do conceito de sexo dialógico. Estava curiosa para conhecer as histórias vividas para as formas como entendem sua sexualidade, desejo e prazer. 

No decorrer das sessões aparece o tema das diferenças e novos acordos de aceitação e respeito foram sendo estabelecidos. Ambos concordaram que o sexo para descarregar ansiedade e sobrecarga do dia a dia não trazia bem estar para ambos e os mantinham afastados com medo de que a aproximação pudesse desencadear uma nova relação sexual, que segundo eles gerava um “grande vazio após o ato” – palavras deles. Este foi um entendimento construído ao vivo, eu não sabia destas sensações com o que chamaram de sexo descarga e eles mesmos nunca haviam explorado este medo em suas conversas. A conversa com esta voz de medo do encontro sexual possibilitou a ampliação do diálogo com seus múltiplos entendimentos de relação sexual; a voz da cultura que regulava uma frequência semanal para o sexo em nome da saúde e a voz de sucesso na parceria do casal que passou a legitimar uma nova forma de intimidade, mais qualitativa, em seus entendimentos. Em uma sessão a esposa relata poucos momentos de pausa, descanso e intimidade a dois. A pausa para este casal era um momento de reencontro em sua conjugalidade, algo cada vez mais raro em seus cotidianos. 

Nas conversações terapêuticas apareceram outros arranjos para a rotina do casal, criando mais momentos de pausa, reivindicados por ela, de estarem juntos sem tarefas e isso foi aumentando o nível de intimidade.

Minha participação mais significativa foi buscar entender o significado de fracasso na sexualidade deste casal. Chamou minha atenção um tom ríspido contra eles mesmos, diferente da forma como apresentavam o sucesso em suas vidas. Então perguntei quem era a voz que criticava a vida sexual, me interessei em conhecer sua origem sócio-histórica e dos discursos internalizados que legitimavam a crítica causadora do mal-estar. Este trabalho se baseou no meu conceito de personagens internos, uma possibilidade para a prática desessencializadora da identidade das pessoas e promovedora de reflexividade e diálogo (Lenzi, 2013). A fala de um grande fracasso perdeu espaço para a aceitação dos tempos deles, de seus ritmos. A postura crítica a si mesmos se transformou em profunda valorização de encontros sexuais íntimos e qualitativos, ainda que com a mesma frequência relatada no início do processo comigo. 

Com o restabelecimento das pausas, da intimidade, o casal pôde colocar seus corpos em diálogo. Relatam que se tocavam mais, se olhavam mais, sem presa e sem obrigação de terem relações sexuais. Só o prazer do abraço, de retomarem adormecer abraçados, de conhecerem o corpo e as sensações corporais um do outro. Sem certos e errados, buscaram entender o caminho dos seus desejos. A terapia era o momento de conversa, de criação de intimidade deles. As sessões se tornaram um espaço de pausa, no significado deles, de diálogo, no nosso entendimento. 

No final de um ano de psicoterapia relatavam mais afetividade, afinidade, intimidade e satisfação em suas explorações das sensações corporais. Relatavam também que a frequência sexual não havia mudado, mas que havia mudado o significado da interação sexual.

O sexo dialógico e pensamentos finais

Esta não é uma proposta ideal, ela é uma proposta humana. Incentivamos o interesse entre as pessoas em se conhecerem e estarem umas com as outras, criando espaços de intimidade, respeito e curiosidade com suas próprias sensações corporais e colocarem essas sensações no diálogo. Quando estamos interessados, podemos entender quem é o nosso companheiro(a). Podemos nos engajar no diálogo,  aprender sobre ele, sua história e coerências,  enquanto nos abrimos para sermos entendidos e conhecidos.

 Nesta prática do sexo dialógico, de aceitação e conhecimento de si e do outro, enriquecemos nosso conhecimento e nos transformamos,  dissolvendo julgamentos e construindo entendimento. Quaisquer práticas que não incluam julgamento,  desrespeito e crítica se caracterizam como práticas colaborativas de paz.

O convite do sexo dialógico é por reflexões em terapia que inspirem uma prática sexual interessada em satisfazer os envolvidos. Um encontro íntimo, no sentido em que há interesse e atenção entre os participantes, cada qual com seu significado e expectativas para o sexo. Eles dialogam corporificadamente, se engrandecendo com o conhecimento mútuo,  se transformam na intimidade do sexo construído colaborativamente e se exploram no corpo e na palavra,  aprendendo um com o outro sobre a construção do prazer na relação e respondendo com o outro na linguagem em desenvolvimento para satisfação mútua. O resultado é a liberdade de conhecer seus significados de sexualidade e prática sexual, enquanto os experimenta e desenvolve com os participantes legítimos deste entendimento. O sexo dialógico dissolve as possibilidades de violência sexual e promove responsabilidade relacional na busca de prazer. 

Você aceita o convite para refletir as práticas sexuais como um diálogo?



Referências

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Recebido em: 09/05/2016
Aprovado em: 21/01/2018

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II E-mail: brunoplenzi@gmail.com

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