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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.27 no.61 São Paulo May/Aug. 2018

 

ESTANTE DE LIVROS

 

ANTONIO

 

 

Bracher, B. (2007). Antonio. São Paulo: Editora 34.

 

 

Maria Luiza Bambini VasconcellosI

Instituto PertenSer, São Paulo/SP, Brasil.

 

 

Apenas nós percebemos a nossa existência terrestre como uma trajetória dotada de sentido (significação e direção). Um arco. Uma curva que vai do nascimento à morte. Uma forma que se desdobra no tempo com um início, peripécias e um fim. Em outros termos: uma narrativa.(Huston, 2010, p. 8)

O poder dessas narrativas, que tanto nos constituem quanto nos diferenciam e qualificam diante das demais espécies, segundo a própria Huston, fica potencialmente qualificado e particularmente evidenciado nesse pequeno livro, com apenas 180 páginas, num formato pouca coisa maior do que um livro de bolso, gerando questões a respeito do poder da linguagem, tamanha a profundidade e amplitude que alcança nesse pouco espaço.

Pensando que cada indivíduo interpreta o mundo e constrói sua realidade a partir do lugar que ocupa no mesmo (Bateson, 1987), enquanto me via capturada pela trama literária, não pude evitar de constantemente pensar como terapeuta familiar diante de cada capítulo, dado que a autora evidencia, de modo muito peculiar, os relacionamentos estruturados por meio da linguagem e o contexto como produto da comunicação social, bases do novo paradigma da ciência (Vasconcellos, 2002).

O livro Antonio, portanto, embora classificado como romance, caberia perfeitamente para iluminar uma disciplina em formação de terapeutas de família e casais, uma vez que agrega lutos, perdas, pertencimentos, transgeracionalidade, ‘não-ditos’ e mal-ditos, segredos, transmissão de legados, enfim, um sem número de situações próprias à família em foco, que poderiam, no entanto, compor a história de muitas e muitas famílias, inclusive a dos leitores, com todos os percalços que marcam seus ciclos vitais, em seus sistemas ou subsistemas familiares (Minuchin, 1990).

Ressoavam também, ao longo da leitura, gostosas palavras de Harlene Anderson sobre a propriedade das conversações, já que todo o enredo se baseia nelas:

Uma das características mais importantes da vida é a conversa. Estamos continuamente em conversa com os outros e conosco. Com as conversas, formamos e reformamos nossos significados e nossas compreensões e construímos e reconstruímos nossas realidades e nosso self. (Anderson, 2009, p. 1)

É mesmo assim, com esse espírito acima assinalado, que a história vai se desenvolvendo, apoiada nos depoimentos de vários personagens que compõem ou gravitam um determinado núcleo familiar. Esses personagens, transformados em narradores pela autora, são procurados pelo protagonista principal, a fim de colher as diferentes vozes que possam lhe elucidar um segredo familiar recém-descoberto, na busca de se apropriar do enredo que constituiu e sustentou seu passado, até então desconhecido.

Dessa maneira ímpar, os relatos vão e vêm no tempo e se juntam em épocas determinadas, muito bem contextualizadas historicamente, para logo depois se distanciarem, tanto no tempo como no espaço, de modo que o narrador/personagem ora traz confusão, ora luzes de compreensão, num mosaico que vai se desvelando e se deixando evidenciar, na medida em que o tecido da narrativa se estrutura.

Essa maneira bastante singular de compor o texto – agregando, inclusive, falas de personagens ausentes que comparecem apenas pelos discursos de outros – remete o leitor às entranhas do enredo, de uma forma que, frequentemente, “a escuta de quem lê” parece ocupar o lugar daquele personagem que busca a própria história.

Emerge significativamente nesse texto o particular olhar de cada personagem sobre o mesmo fato, justificado, muitas vezes, pelo lugar que ocupa na família, assim como por suas características pessoais de idade, formação (ou ausência dela!), origem, profissão, local de residência, enfim, por todos os fatores que nos constituem como sujeitos, para além dos sujeitos únicos que já somos, em nossas individuais concepções de vida. Um autêntico testemunho de que a verdade, ou mesmo a realidade, é resultado do olhar do observador.

Texto para ser lido, relido, discutido e saboreado! Ah! Para completar a curiosa maneira de construção dessa narrativa, o personagem que dá nome ao livro, Antonio, é um dos personagens... ausentes!

Boa leitura!!

 

 

Referências

Anderson, H. (2009). Conversação, linguagem e possibilidades: um enfoque pós moderno da terapia, São Paulo: Rocca.         [ Links ]>

Bateson, G. (1987). Mente e natureza: a unidade necessária. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Bracher, B. (2007). Antonio. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Huston, N. (2010). A espécie fabuladora: um breve estudo sobre a humanidade. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Minuchin, S. (1990). Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Vasconcellos, M. J. E. (2002). Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, SP: Papirus.

 

 

* Beatriz Bacher, a autora, é formada em Letras, editora, roteirista e romancista; seu livro Antonio foi premiado com o Jabuti em 2008, somando-se ao Prêmio Portugal Telecom e ao Clarice Lispector por outros romances, além de melhor roteiro no Festival do Rio, em 2009, pelo longa metragem Os Inquilinos.

 

I Integrante fundadora do PertenSer (atendimento terapêutico de famílias em situação de adoção e/ou situações de rompimento de laços relacionais). Formadora/Consultora da equipe da Instituição de Acolhimento CAMID. E-mail: iza.vasconcellos@uol.com.br

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