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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.27 no.62 São Paulo set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.21452/2594-43632018v27n62a02 

ARTIGOS

 

 

A Constelação Familiar é sistêmica?

 

Is the Family Constellation systemic?

 

 

Sueli MarinoI, Rosa Maria S. MacedoII

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil

II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

A Constelação Familiar de Bert Hellinger é ensinada como uma prática sistêmica empregada em contextos terapêuticos e organizacionais e como uma especialidade do Direito Sistêmico no judiciário. O objetivo deste artigo é analisar e compreender os principais pressupostos teóricos da Constelação Familiar comparando-os com os do Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático, a fim de ratificar ou apontar as divergências entre eles. A análise efetuada nos levou a concluir que a Constelação Familiar não pode ser considerada uma prática sistêmica, mas sim uma técnica baseada nos princípios epistemológicos da ciência moderna.

Palavras-chave: Constelação Familiar; Terapia Familiar Sistêmica; Pensamento Sistêmico; Família.


ABSTRACT

Bert Hellinger’s Family Constellation is taught as a systemic practice, employed in therapeutic and organizational contexts, and as a specialty of Systemic Law in the judicial system. The objective of this article is to analyze and understand the main theoretical assumptions of the Family Constellation comparing them with those of the New Paradigmatic Systemic Thinking, in order to ratify or point out the differences between them. The analysis made us to conclude that the Family Constellation cannot be considered a systemic practice, but a technique based on the epistemological principles of modern science.

Key Words: Family Constellation; Systemic Family Therapy; Systemic Thinking; Family.


 

 

O que é Constelação Familiar?

É comum tomar a Constelação Familiar como uma prática sistêmica, no entanto, o embasamento teórico desta afirmação não é claro tanto entre os inúmeros cursos de formação nesta técnica, quanto entre conversas com os terapeutas que a praticam. O objetivo deste artigo foi compreender quais os principais pressupostos teóricos da Constelação Familiar e se esses podem ser considerados como sistêmicos.

Neste tópico discutimos sobre a Constelação Familiar; no próximo, sobre as aplicações recentes dessa prática e, em seguida, compreenderemos os principais fundamentos da Terapia Familiar Sistêmica e, por fim, refletiremos sobre o que define se uma prática pode ou não ser considerada como sistêmica.

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra “constelação” na língua portuguesa pode ter o significado de um grupo de estrelas próximas, de um grupo de pessoas brilhantes, ou, ainda, “um conjunto de elementos que formam um todo coerente, ligados por algo em comum” (Houaiss, 2009, p. 531). A primeira utilização registrada do termo na literatura científica em língua portuguesa é de Antonios I. Tekzis, no artigo “Constelação Familiar e Esquizofrenia”, de 1987. Trata-se de um estudo que estabelece relação entre as dinâmicas familiares e a esquizofrenia em pacientes internados em hospitais psiquiátricos. O artigo não oferece uma clara definição do que o autor compreende como “constelação familiar”, no entanto, utiliza o termo para fazer referência ao “grupo familiar” dos pacientes hospitalizados, nomeando a abordagem com famílias como “Psicologia do Grupo Familiar” (Tekzis, 1987, p. 276). Em ambos os casos, seja no vernáculo do dicionário ou na produção científica inicial, o termo constelação serviu exclusivamente para indicar ligações entre elementos e entre pessoas.

A apropriação do termo conforme utilizado contemporaneamente no Brasil deriva da produção de Bert Hellinger (1998). Em abril de 2001, este terapeuta alemão ministrou um workshop em São Paulo intitulado “O amor que cura e o amor que adoece”, no qual apresentou sua técnica “Constelação Familiar”. Este evento tinha o objetivo de divulgar o primeiro curso de formação em Constelações Familiares no Brasil promovido pelo IAG - Int. Arbeitsgemeinschaft für Systemische Lösungen nach Bert Hellinger e V. Munique, Alemanha.

O histórico de vida de Hellinger retrata as influências religiosas em seu trabalho. Quando criança recebeu de seus pais uma educação cristã que o tornou imune às ideias do nazismo. Essa educação primária reverberou anos depois com sua formação em Filosofia e Teologia. Foi por conta dela que exerceu o sacerdócio durante 20 anos, com destacada experiência como missionário entre os zulus. Posteriormente, abandonou o sacerdócio para se casar e iniciou sua carreira como terapeuta, incluindo em seus estudos outras influências, como a Psicanálise, a Gestalt, a Análise Transacional e a Terapia Familiar. Todas essas referências foram fundamentais para a elaboração de sua prática, mas a influência religiosa em seu trabalho talvez ainda seja a mais evidente, como é possível identificar nos trechos a seguir:

Graças à expressão sexual do amor, homens e mulheres deixam pais e mães para se tornar, como diz a Bíblia, “uma só carne.”. . . O papel crucial que a sexualidade desempenha na união dos casais evidencia o primado da carne sobre o espírito, bem como a sabedoria da carne.” (Hellinger, 1998 p. 48, grifo nosso)

Se lembramos nossas experiências como membros da família ampliada, poderemos nos ligar ao destino ou ao mistério além do mundo da mesma forma que nos ligamos aos membros de nossa família, como se fôssemos irmãos de sangue na companhia dos santos. (Hellinger, 1998 p. 189, grifo nosso)

Aqui, o nível da filosofia e da psicoterapia é substituído por um outro mais amplo. Nele nos experimentamos como entregues a um todo maior, que temos de reconhecer como último e abrangente. Esse nível poderia chamar-se religioso ou espiritual. Mesmo nele, contudo, mantenho a postura fenomenológica, livre de intenções, de medo e pressuposições, apenas presente ao que se manifesta. (Hellinger, 2010, p. 18, grifo nosso)

Com relação ao uso do termo Constelação Familiar, é importante frisar que a tradução em alemão familien stellen é “colocar a família”. Ela é ensinada como uma técnica sistêmica fenomenológica e tem como foco a solução de conflitos. Na formação de consteladores (terapeuta que trabalha com essa técnica) busca-se que estes estejam conectados com o se que denomina como “Movimento do Espírito”, um campo de sabedoria que nos orienta na vida. Nas palavras de Hellinger:

O movimento do espírito, tal como o vivenciamos em nossas viagens interiores, é um movimento que se dedica a todas as coisas, tais como são. Ele não seria imaginável de outro modo. Se tudo o que se move é movido por esse espírito, como pode existir algo fora desse movimento ou que não seja querido por ele? Portanto, quando esse movimento nos envolve, ele nos toma consigo nesse movimento de concordância com todas as coisas, tais como elas são, exatamente como são. Por conseguinte, quando excluímos algo em nós ou em outros ou quando nos excluímos ou excluímos outros do amor, perdemos a conexão com esse movimento de amor do espírito. (Hellinger, 2008, p. 40)

Segundo Hellinger (1998, 2008, 2010), existe uma alma familiar que une todas as pessoas da família, independente de estarem vivas ou mortas. Em seu livro Viagens Interiores esclarece que:

A alma também nos une a outras pessoas. Em primeiro lugar, ela nos une à nossa família: a nossos pais, irmãos e antepassados, ela nos une a eles como se tivéssemos uma alma comum, uma alma maior. Nossa alma pessoal atua em função dessa alma maior que, por sua vez, atua na alma que vivenciamos como pessoal. (Hellinger, 2008, p. 38)

Para a Constelação Familiar, todos da família são influenciados pelo que nomeia de “as ordens do amor”. As ordens do amor são o pertencimento, a ordem e o equilíbrio (Hellinger, 1998, 2010). O pressuposto da ordem indica que os primeiros a chegarem numa família têm preferência perante os outros: os mais velhos em relação aos mais jovens, a primeira esposa, os filhos do primeiro casamento e assim sucessivamente. O pressuposto do pertencimento compreende que todos têm o direito de pertencer à família, estejam vivos ou não. O equilíbrio é outro princípio importante e sugere que o sistema familiar impulsionará as pessoas a agirem de maneira tal para reequilibrar o sistema diante de qualquer ameaça ou problema.

Os problemas vividos por uma pessoa, segundo a Constelação Familiar, são denominados como “emaranhados” e indicam existir alguma interferência nas ordens do amor (pertencimento, ordem e equilíbrio). Esses emaranhados têm relação com algum tipo de exclusão, injustiça, luto, doença grave, rompimento de vínculos, adoção, suicídio e até brigas por herança. O papel do constelador será identificar o emaranhado e restabelecer no sistema familiar do constelante (pessoa que expõe seu problema no grupo de constelação) o fluir das ordens do amor. As pessoas do grupo que estão assistindo ao trabalho serão convidadas pelo próprio constelador ou pelo constelante para atuarem como representantes do sistema familiar e a dramatizarem situações onde foi percebido o problema. O constelador, então, com base nessa percepção relacionada com algum aspecto dos emaranhados, dirige a representação e direciona as falas dos atores com frases específicas predeterminadas como: “querida mamãe (ou papai), por favor, me olhe com carinho”, “eu te reconheço”, “você sempre terá um lugar no meu coração”, “eu te reverencio”; e faz intervenções a partir do que percebe desse campo de sabedoria ou movimento do espírito.

Na Constelação Familiar trabalha-se não só com a geração atual do constelante ou constelado (cliente), mas com várias gerações passadas, independente do conhecimento da história ou convivência com elas; as informações necessárias surgem durante o trabalho a partir da percepção do constelador conectado com o movimento do espírito e dos representantes que agem, sentem e pensam exclusivamente influenciados pela alma familiar da pessoa que será trabalhada.

Em relação aos papéis de gênero, a Constelação Familiar delimita o que é melhor para o sistema familiar, nas palavras de Hellinger:

O amor é, em geral, bem-servido quando a esposa segue o marido no seu linguajar, na sua família e cultura, e quando aceita que seus filhos o sigam também. Essa concessão torna-se natural e boa para as mulheres se seus maridos governam no interesse do bem-estar da família e compreendem a misteriosa lei sistêmica de que o masculino serve o feminino. . . . Além da hierarquia estabelecida pelo tempo e pela importância, a divisão de funções também desempenha um papel na escolha do parceiro que irá liderar. Embora isso em muitos países esteja mudando, as famílias com as quais trabalhamos em geral funcionam melhor quando a mulher assume a responsabilidade principal pelo bem-estar interno da família e o homem se encarrega de sua segurança no mundo exterior, sendo seguido aonde quer que vá. (Hellinger, 1998, p. 65, grifo nosso)

Por ser uma técnica cuja aplicação pode ser individual ou grupal, as especificações da prática variam. Nas sessões individuais o constelador trabalha com bonecos ou almofadas e esses objetos personificam movimentos e diálogos que reproduzem a dinâmica relacional da família. Todo esse processo é conduzido pelo constelador – que assume os diálogos de acordo com sua percepção sobre a história da família do constelante (constelado).

Na prática em grupo cada participante pode escolher se deseja ser o constelante ou apenas participante. Não se faz entrevista prévia e nem após o trabalho. Quem decide qual pessoa e qual relacionamento familiar será trabalhado é o constelador, que baseia sua decisão a partir da própria percepção sobre o que considera ter “mais força” como problema sistêmico.

O término do trabalho acontece quando se encontra a solução do problema do constelante e todos no sistema se sentem em seu lugar e em harmonia uns com os outros. Vale a pena esclarecer que, segundo essa técnica, é importante deixar que a alma familiar trabalhe o sistema familiar do constelado; isso justifica a regra de não se oferecer à pessoa trabalhada nenhum tipo de acompanhamento terapêutico. Logo depois de uma constelação é comum o constelador pedir que se evite comentar sobre o que aconteceu para que o efeito sistêmico se fortaleça.

A Constelação Familiar é considerada e ensinada como uma prática sistêmica, no entanto, fica a pergunta: o que se entende ao afirmar que ela é sistêmica? O autor não esclarece teoricamente o que chama de sistêmico, uma vez que sua técnica se dedica mais à prática do que à teoria. No entanto, refere-se à família como um sistema que integra os antepassados, seus descendentes e os que estarão por vir. Neste sentido, podemos compreender que “sistêmico” nesta técnica é o que se vincula a acontecimentos da história familiar desde os antepassados que reproduzem padrões de comportamento, exclusões e conflitos familiares vivenciados na problemática do cliente hoje (Marino, 2018).

Em virtude de sua ênfase nas práticas, a técnica tem se expandido e alcançado diferentes linhas de atuação. Na próxima seção discutiremos esses novos espaços com destaque ao SUS e ao setor jurídico.

 

APLICAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA CONSTELAÇÃO FAMILIAR

Atualmente no Brasil a Constelação Familiar tem grande repercussão em contextos terapêuticos privados, em instituições/organizações, e mais recentemente na saúde pública (SUS) e no sistema judiciário.

No SUS, por meio da Portaria nº 702 de 21 de março de 2018 do Ministério da Saúde na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares – PNPIC1, incluíram-se novas técnicas de atenção à saúde, entre elas a Constelação Familiar.

Como podemos observar na própria (Portaria, 702/2018):

Desenvolvida nos anos 80 pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, que defende a existência de um inconsciente familiar - além do inconsciente individual e do inconsciente coletivo - atuando em cada membro de uma família. Hellinger denomina "ordens do amor" as leis básicas do relacionamento humano - a do pertencimento ou vínculo, a da ordem de chegada ou hierarquia, e a do equilíbrio - que atuam ao mesmo tempo, onde houver pessoas convivendo. Segundo Hellinger, as ações realizadas em consonância com essas leis favorecem que a vida flua de modo equilibrado e harmônico; quando transgredidas, ocasionam perda da saúde, da vitalidade, da realização, dos bons relacionamentos, com decorrente fracasso nos objetivos de vida. A constelação familiar é uma abordagem capaz de mostrar com simplicidade, profundidade e praticidade onde está a raiz, a origem, de um distúrbio de relacionamento, psicológico, psiquiátrico, financeiro e físico, levando o indivíduo a um outro nível de consciência em relação ao problema e mostrando uma solução prática e amorosa de pertencimento, respeito e equilíbrio. A constelação familiar é indicada para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo ou abordagem religiosa, podendo ser indicada para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade, como por exemplo, bebês doentes são constelados através dos pais.(Portaria nº 702/2018, s/p., grifo nosso)

Esse documento apresenta um breve histórico sobre a Constelação Familiar e sua aplicação e afirma a inexistência “de qualquer vínculo ou abordagem religiosa” e faz uso da palavra “inconsciente” substituindo a palavra “alma”, o que nos faz questionar se essa substituição seria uma estratégia literária para tentar dissimular a influência da formação religiosa do próprio Bert Hellinger ou uma tentativa de passar maior veracidade à prática. Como vimos anteriormente, a Constelação Familiar não somente tem influência da formação religiosa do autor como reproduz em sua prática preceitos da religião cristã.

Na Portaria nº 702 promete-se identificar a raiz de qualquer problema emocional, físico, de distúrbio relacional, psiquiátrico, psicológico ou financeiro, o que poderia levar à negligência no atendimento da saúde do cidadão induzindo a interrupção de tratamento médico.

Diante do exposto surgem alguns questionamentos: Os profissionais que trabalham com a Constelação Familiar receberão supervisão e orientação teórica para lidarem com a realidade multiversa das pessoas atendidas pelo SUS? Como o Ministério da Saúde avalia que essa técnica garantirá a prevenção de doenças, se é a primeira vez que ela é aplicada neste contexto? Se técnicas previnem também podem provocar enfermidades dependendo do procedimento, de como se pratica e do caso.

Além do SUS, o Conselho Nacional de Justiça divulga em seu site vários fóruns no Brasil que utilizam a Constelação Familiar como técnica para promover acordos judiciais; o uso é justificado pela Resolução 125/2010 do CNJ, no entanto, até a presente data não encontramos nenhuma menção específica à Constelação Familiar, o que nos faz refletir sobre a possibilidade de que sua utilização ocorra pela analogia ao foco “solução de conflitos” como a prática é apresentada.

A Resolução 125/2010, Capítulo II no art. 6º2 declara sobre a atribuição do CNJ:

I - estabelecer diretrizes para implementação da política pública de tratamento adequado de conflitos a serem observadas pelos Tribunais;

II - desenvolver conteúdo programático mínimo e ações voltadas à capacitação em métodos consensuais de solução de conflitos, para servidores, mediadores, conciliadores e demais facilitadores da solução consensual de controvérsias; (grifo nosso) III - providenciar que as atividades relacionadas à conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos sejam consideradas nas promoções e remoções de magistrados pelo critério do merecimento; IV - regulamentar, em código de ética, a atuação dos conciliadores, mediadores e demais facilitadores da solução consensual de controvérsias. (Resolução nº 125/2010)

Se a Resolução 125/2010 “estimula práticas que proporcionam tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário"3, como o “Projeto Constelar para Conciliar”4 do TJDFT, também sugere a regulamentação de um código de ética para a atuação dos conciliadores, no entanto não deixa claro como o judiciário irá cuidar dessa questão junto aos juízes consteladores ou consteladores contratados; uma vez que os profissionais do judiciário não foram capacitados em sua formação profissional para lidarem com questões subjetivas, como darão suporte emocional aos cidadãos? Como se garante que as questões emocionais dos juízes não influenciarão suas condutas na própria constelação e no processo jurídico?

O sistema judiciário não estaria impondo uma técnica que tem influência religiosa cristã em detrimento das outras crenças religiosas? Sendo o Brasil um país laico, sua constituição garante essa liberdade de escolha?

O Estado, por meio do sistema judiciário, pode interferir na privacidade de seus cidadãos em prol da redução de processos jurídicos promovendo acordos influenciados pela posição de poder dos juízes que aplicam a técnica?

O sistema judiciário – quando incentiva juízes a atuarem no fórum como consteladores e representantes da lei – pode assegurar que os cidadãos terão livre arbítrio para decidirem se desejam ou não fazer acordo? E os cidadãos podem se assegurar que seus direitos foram preservados? Os fóruns do Brasil não estariam se transformando em espaços colonizadores de uma suposta religião correta?

Os fóruns de juízes consteladores não estariam se transformando em palcos de desigualdade de gênero entre homens e mulheres, na medida em que a técnica acredita que a mulher deve seguir os passos do homem e que possui um papel específico de “guardiã do bem-estar da família” enquanto que o homem deve se responsabilizar por sua segurança externa? As mulheres podem confiar na isenção dos juízes consteladores ao incentivar acordos? Como o Estado garantirá que os direitos das mulheres serão preservados?

Esses questionamentos nos levam à necessidade de esclarecer o conceito de sistêmica. No próximo tópico discutiremos os principais pressupostos epistemológicos da Terapia Familiar Sistêmica.

 

TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA

Segundo Grandesso (2009), as primeiras abordagens sistêmicas foram sustentadas pela Teoria Geral dos Sistemas (Bertalanffy) em 1975 e da Cibernética (Wiener) em 1961. Essas abordagens representaram uma mudança paradigmática na medida em que propunham que o processo psicoterapêutico se centrasse no aspecto relacional e contextual, uma vez que até então as terapias eram focadas exclusivamente no indivíduo e sua subjetividade.

Inúmeras abordagens surgiram e com o avanço das ciências a terapia familiar sistêmica passou por nova mudança: a do Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático.

Vasconcellos (2002) diferencia os pressupostos epistemológicos da ciência tradicional e os da ciência nova-paradigmática (pós-moderna) e considera o Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático como o novo paradigma da ciência.

A ciência tradicional baseia-se nos princípios da simplicidade, da estabilidade e da objetividade. O princípio da simplicidade compreende os fenômenos numa relação de causa e efeito; a estabilidade considera o mundo como algo estável e, como tal, assegura sua previsibilidade, reversão e controle, e o princípio da objetividade garante a neutralidade do observador diante dos fenômenos (Vasconcellos, 2002).

O Pensamento Sistêmico baseia-se no princípio da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade. O princípio da complexidade considera a existência de múltiplas variáveis e destaca a importância dos contextos ao estudarmos um acontecimento ou fenômeno; é impossível, portanto, afirmar determinada causa e consequente efeito. A instabilidade nos coloca diante da imprevisibilidade da vida, uma vez que está em constante transformação. A intersubjetividade admite que a realidade depende do observador e este é coconstrutor desta; dito de outra maneira, é impossível um conhecimento objetivo da vida (Vasconcellos, 2002).

Nas palavras de Macedo, Kublikowski, e Moré:

Ao entrar no campo da Clínica tanto para atender à demanda em contextos públicos ou privados, ou para pesquisar aspectos da vida da população com vistas à promoção de saúde e melhoria da qualidade de vida, o profissional clínico deve estar convencido que vai trabalhar: com a instabilidade, intersubjetividade e a imprevisibilidade das situações vividas como defende o paradigma científico da pós- modernidade. O ponto central do trabalho é a crença na mudança, com as incertezas de que mudanças surgirão a partir das inter-relações estabelecidas no encontro Clínico, muito embora não se possa prever que mudanças serão possíveis em função das experiências de vida do cliente. Desse ponto de vista é importante ressaltar a competência do profissional no respeito à diversidade, sua responsabilidade ética na construção conjunta da realidade. (Macedo et al. 2018, p. 21)

A família, segundo a Teoria Sistêmica, não é um sistema, mas como em todos os fenômenos pode ser entendida como um sistema pela possibilidade de aplicação de suas leis à sua estrutura e função. Assim, do ponto de vista sistêmico, a família é um todo organizado cujos membros estão em constante interação. Ao olhar para uma família do ponto de vista sistêmico, não são focados os indivíduos, seus membros, mas sim as relações entre eles. O terapeuta, por sua vez, faz parte do sistema terapêutico da família ou do casal, no entanto, não se coloca numa posição de expert sobre ela (Grandesso, 2000). Estar incluído no sistema significa não interferir de fora dele, mas agir como parte dele em função de sua subjetividade que dirige a visão que tem da família e justifica sua inclusão no sistema. Isto é, o terapeuta, observador, passa a fazer parte do observado, o que exige a reflexividade do observador sobre si mesmo na situação.

Os padrões de repetição manifestados entre as gerações se dão por transmissão intergeracional e referem-se às questões de lealdade familiar, relacionadas com crenças, valores e mitos passados que podem se repetir ou não de uma geração para outra (Cerveny, 2001).

Na abordagem sistêmica, as dinâmicas relacionais não podem ser consideradas em termos de polaridades opostas e fixas para homem e mulher, masculinidade e feminilidade que demarcam posições de superioridade ou inferioridade. Nas palavras de Macedo:

Considerando a influência do contexto em que raça, classe social, gênero, religião, cultura, fase de vida e idade são fatores intervenientes na construção do significado atribuído às ações de cada um, só se justifica uma postura profissional com flexibilidade para considerar cada situação, com a relatividade que lhe cabe. Assim, as relações entre os gêneros adquirem uma diversidade que não permite generalizações atreladas ao sexo como causa de determinados comportamentos. (Macedo, 2009, p. 67)

Como vimos ao longo do artigo, pensar na família como um sistema, refletir sobre os padrões repetitivos de interação, identificar um desvio no que são consideradas as ordens do amor, ou mesmo a causa de exclusão num sistema familiar, não são suficientes para designar uma técnica como sistêmica, justamente pela inexistência de um modelo universal de família.

Ao considerar a Constelação Familiar no Brasil como uma prática de solução de conflitos independentemente se aplicada na saúde, na organização ou judiciário, não se levou em conta as diferenças culturais e sociais entre uma realidade europeia e a nossa cultura brasileira, como a utilização de frases prontas para serem repetidas pelas pessoas trabalhadas como “eu te reverencio”, “eu te honro”, em que não se tem a preocupação de saber se fazem parte do repertório linguístico da pessoa ou da família em questão. Ao se instituir como uma técnica integrativa para prevenção de doenças, não se considerou a diversidade da realidade da população assistida pelo SUS; foram tomados como padrão de referência os emaranhados da Constelação Familiar e não as especificidades da diversidade cultural de nosso país; ignorou-se a influência religiosa do autor tanto no contexto jurídico quanto da saúde; estimulou-se a desigualdade de gênero, uma vez que, para essa técnica, o papel da mulher está fundamentado nas funções sociais que a restringem ao âmbito privado e como reprodutora e cuidadora da família e ao homem como protetor; negou-se a subjetividade do constelador e dos representantes, uma vez que tudo o que ocorre numa constelação é influenciado pela alma familiar do constelado e nada diz respeito às crenças pessoais e dificuldades emocionais do constelador nem do terapeuta.

Quando a Constelação Familiar identifica no presente uma problemática na vida de uma pessoa e a relaciona com um conflito vivenciado por alguém de gerações passadas está buscando a causa do problema, ou seja, o princípio norteador que rege essa intervenção fundamenta-se na simplicidade e na causalidade da ciência moderna. E quando o constelador faz uma interferência no sistema familiar do constelante com a intenção de reparar alguma perda, conflito ou exclusão na família age de acordo com o princípio da estabilidade – que o faz acreditar no controle e na reversão do sistema familiar eliminando o emaranhado.

O princípio da objetividade da ciência tradicional também se faz presente ao se acreditar que tudo o que acontece com a família do constelante faz parte integralmente da alma familiar daquela pessoa, ou seja, para a Constelação Familiar, não existe nenhuma influência do constelador e nem dos representantes no que acontece numa constelação; acredita-se na neutralidade dos representantes e do constelador que se coloca como um expert que conhece a verdade sobre aquela família e sabe o que é bom para ela no sentido de corrigi-la. Age, portanto, de acordo com um modelo preestabelecido de família ideal.

Na Constelação Familiar esses padrões de repetição são compreendidos como emaranhados que podem representar doenças ou problemas mal resolvidos entre as gerações, identificados quando não estão de acordo com as leis do amor de pertencimento, de ordem e de equilíbrio (Hellinger, 1998, 2008, 2010), ou seja, algo que aconteceu no passado determina o presente, explicando a causa e consequente efeito, princípio da simplicidade da ciência moderna. Na terapia familiar sistêmica os padrões de repetição estão relacionados com a lealdade ao sistema familiar e podem ou não se repetir.

A partir do exposto, não é possível considerar a Constelação Familiar como sistêmica, uma vez que em sua prática ou teoria os pressupostos do Pensamento Sistêmico não se fazem presentes; não basta o uso do termo “sistêmica”, requer uma postura terapêutica que acompanhe seus princípios. Podemos concluir que a Constelação Familiar é uma técnica fundamentada nos pressupostos da ciência moderna.

Todas as questões mencionadas nos colocam diante da nossa responsabilidade ao replicarmos técnicas tanto no que diz respeito ao estudo epistemológico da teoria, ao procedimento da prática e ao nosso posicionamento ético enquanto profissionais.

 

 

Referências

Cerveny, C. M. O. (2001). A Família como modelo: desconstruindo a patologia. Campinas, SP: Livro Pleno.

Grandesso, M. A. (2000). Sobre a reconstrução do significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Grandesso, M. A. (2009). Desenvolvimentos em Terapia Familiar: das teorias às práticas e das práticas às teorias. In L. C. Osório & M. E. P. Do Valle (Eds.), Manual de Terapia Familiar (pp. 104-118). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Hellinger, B. (1998). A Simetria Oculta do Amor. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Hellinger, B. (2008). Viagens Interiores. Patos de Minas, MG: Atman.

Hellinger, B. (2010). Ordens do amor: um guia para o trabalho com Constelações Familiares. São Paulo: Pensamento-Cultrix.         [ Links ]

Houaiss, A. (2009). Houaiss Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Macedo, R. M. S. (2009). Questões de gênero na terapia de família e de casal. In L. C Osório & M. E. P. Do Valle (Eds.), Manual de Terapia Familiar (pp. 58- 73). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Macedo, R. M. S., Kublikowski I., Moré, C. L. O. O. (Orgs.). (2018). Pesquisa Qualitativa no Contexto da Família e Comunidade: experiências, desafios e reflexões. Curitiba: CRV EDUC.         [ Links ]

Marino, S. (2018). Da Constelação Familiar aos Relacionamentos que Curam: um processo de construção teórica e prática. Curitiba: Appris.         [ Links ]

Portaria nº 702 de 21 de março de 2018. (2018). Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares-PNPIC. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html

Resolução nº 125, de 29 de Novembro de 2010. (2010). Dispõe sobre a Política Pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. Recuperado de http://www.crpsp.org.br/interjustica/pdfs/outros/Resolucao-CNJ-125_2010.pdf

Tekzis, A. I. (1987). Constelação familiar e esquizofrenia. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 45(3), 276-280. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X1987000300007        [ Links ]

Vasconcellos, M. J. E. (2002). Pensamento Sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, SP: Papirus.

 

 

Recebido em: 20/08/2018
Aprovado em: 30/09/2018

 

 

1 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html

2 http://www.crpsp.org.br/interjustica/pdfs/outros/Resolucao-CNJ-125_2010.pdf

3 http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/85256-constelacao-familiar-vara-no-df-alcanca-61-de-acordo-com-metodo

4 http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/82949-projeto-constelacao-familiar-resolve-conflitos-por-meio-de-conciliacao

 

 

I Sueli Marino é doutoranda em Psicologia Social (PUC-SP), mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP), especialista em Terapia Familiar e de Casal (PUC-SP). NUPRAD – PUC SP / NUFAC – PUC SP, SP. E-mail: sueli@suelimarino.com.br

II Rosa Maria S. Macedo é professora emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa: Família e Comunidade do PEPG em Psicologia Clínica (NUFAC), coordenadora dos Cursos de Especialização em Psicoterapia e Orientação Familiar e de Mediação: Resolução Pacífica de Conflitos. Líder do GT da ANPEPP: Família e Comunidade. Fundadora da ABRATEF. São Paulo, SP. E-mail: romacedo@pucsp.br

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