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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.28 no.63 São Paulo enero/abr. 2019

http://dx.doi.org/10.21452/2594-43632019v28n63a01 

ARTIGOS

 

Contribuições e implicações da perspectiva dialógica: o self do(a) terapeuta na terapia familiar/de casal

 

Contributions and implications of the dialogical perspective: the therapist’s self in the family/couple therapy

 

 

Daniel Welton Arruda CabralI, Camila Maria Del Carlos Pinheiro SalesII

I Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE, Brasil.

II Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza/CE, Brasil.

 

 


RESUMO

A perspectiva dialógica sobre a terapia familiar nos convida a ver outro ângulo que a prática terapêutica pode assumir, especialmente ao considerarmos a participação do terapeuta no processo de mudanças. Neste artigo, cujo método adotado foi a revisão bibliográfica narrativa de cunho exploratório e abordagem qualitativa, buscamos percorrer brevemente sobre a literatura científica de autores que discorreram sobre alguns dos principais conceitos que inspiram a abordagem dialógica, contribuindo para refletirmos mais diligentemente sobre as mudanças de posições que tomamos quando nos dirigimos à complexidade do encontro terapêutico com famílias/casais. Ainda existe muito a se investigar sobre conceitos dialógicos nesse contexto, e há terapeutas de família que têm se dedicado a analisar aspectos dialógicos na respectiva área de atuação, propondo o registro posterior da conversação interna do terapeuta para ampliar o entendimento da experiência terapêutica e fomentar a pesquisa em psicoterapia familiar em uma abordagem dialógica. Concluímos que essa perspectiva, influenciada pelo desconstrutivo pensamento pós-moderno, ajuda a ampliar alguns dos conceitos mais presentes na atual geração da terapia familiar, tornando-os menos idealizados na prática clínica e, portanto, mais úteis ao nosso entendimento sobre a complexidade do trabalho com famílias/casais.

Palavras-chave: Terapia familiar; Terapia de casal; Diálogo; Self; Não saber.


ABSTRACT

The dialogical perspective regarding family therapy invites us to see another angle that therapeutic practice may assume, especially when we consider the therapist’s participation in the process of change. In this article, in which the method adopted was a narrative bibliographic review, of exploratory nature and qualitative approach, we went briefly over the scientific literature of authors who have discussed some of the main concepts that inspire the dialogical approach, contributing to make us reflect more diligently about the changing positions we take when heading into the complexity of the therapeutic meeting with families/couples. There is much to investigate about the dialogical concepts in this context, and there are family therapists who have been analyzing dialogical aspects in their respective field of work, proposing the later recording of the therapist's inner conversation to foster the understanding of the therapeutic experience and to foment the research in family psychotherapy in a dialogical approach. We conclude that this perspective, influenced by the deconstructive postmodern thinking, helps amplifying some of the recurring concepts of the current generation of family therapy, making them less idealized in clinical practice and, therefore, more useful to our understanding about the complexity of working with families/couples.

Key Words: Family Therapy; Couple Therapy; Dialogue; Self; Not-Knowing.


 

 

INTRODUÇÃO

O interesse pela perspectiva dialógica foi propiciado pela trajetória dos autores na Formação em Terapia Familiar Sistêmica realizada entre 2015 e 2017, em Fortaleza (CE). A abrangência do curso, contemplando não apenas as correntes mais tradicionais da terapia familiar, também oportunizou espaço para os movimentos mais recentes que a área executa a partir da influência construcionista, narrativa e dialógica, fruto do pensamento pós-moderno. Em decorrência dessa influência, a base epistemológica de nossa prática terapêutica se amplia, passando a valorizar a inclusão da subjetividade do(a) terapeuta no encontro com os membros da família em um espaço gerador de significados e sentidos conjuntamente criados, onde as regras são mais invisíveis que visíveis. Pensar dialogicamente sobre esse encontro possibilita que olhemos mais atentamente as respostas que a família evoca no(a) terapeuta e vice-versa.

Quando se torna concebível colocar a objetividade e a neutralidade do(a) terapeuta entre parênteses, torna-se mais relevante o entendimento sobre como pode repercutir nossa autorreferência nos sistemas em que nos integramos. Nesse sentido, é importante destacar, ao longo da Formação, que os exercícios sobre a pessoa do(a) terapeuta – como nos percebemos, o que percebem de nós, o que nos fundamenta epistemologicamente, que facilidades ou dificuldades poderíamos vir a encontrar na clínica, além dos treinos de questionamento reflexivo, que propõem a exposição dos pensamentos internos, sem julgamentos, do(a) terapeuta aos clientes – contribuíram para os autores cativarem-se por uma linha de pesquisa que compreende o self do(a) terapeuta no contexto de atendimento com famílias/casais. O aporte teórico desse self se dá numa perspectiva dialógica e lança luz sobre o não saber do(a) terapeuta e sua conversação interna. Mas como se caracteriza o momento que enfatiza a perspectiva dialógica na terapia familiar?

A terapia familiar influenciada pela chamada Cibernética de Segunda Ordem tem como característica fundamental a referência ao posicionamento do(a) terapeuta em relação ao sistema familiar. Contemporaneamente, o(a) terapeuta de família passou a ser concebido como o(a) observador(a) que se integra ao sistema que observa. Posto isso, “o terapeuta deverá, ao mesmo tempo, ser parte do sistema e tomar distância para refletir. É importante sermos espontâneos como membros do sistema, mas é imprescindível também refletir sobre o que fazemos” (Vasconcellos, 1995, p. 127).

O pensamento pós-moderno propiciou à terapia familiar adquirir aspectos condizentes com essa Cibernética de Segunda Ordem, que enfatiza a construção de significados, os modelos dialógicos e as metáforas narrativas e hermenêuticas (Grandesso, 2001). Além disso, está na base dos discursos pós-modernos a desconstrução, que lança um olhar cético em relação às crenças que dizem respeito à verdade, ao conhecimento, ao poder, ao self e à linguagem, todas frequentemente tomadas como verdadeiras e que ajudam a legitimar a cultura ocidental contemporânea (Lax, 1998).

Com tal pensamento gerando modificações nos modelos praticados no contexto da terapia familiar/de casal, em que clientes e terapeutas passam a ter uma responsabilidade mais igualitária pelo processo terapêutico, exigindo-nos uma nova apreciação sobre a tradicional forma de pensar a terapia familiar, surge nosso interesse em explorar na literatura alguns dos conceitos ligados à abordagem dialógica que têm sido cada vez mais vinculados às chamadas terapias pós-modernas, tais como: o espaço dialógico, o não saber do(a) terapeuta e o uso do self. A abordagem dialógica se caracteriza pelo convite a olhar para o “entre” na relação terapêutica, contemplando o não saber em maior consonância com sentido de conhecimento compartilhado, onde se torna infrutífera a preocupação em localizar o saber em algum dos lados da relação. Esse viés também nos permite refletir como o uso do self do(a) terapeuta tende a ocorrer no atendimento com famílias/casais, uma vez que nos referimos a um tipo de encontro no qual ao menos três participantes se afetam simultaneamente, num ritmo e intensidade díspares distintas de uma terapia individual.

Enquanto profissionais que se preocupam com as repercussões de nossa inclusão no sistema com o qual trabalhamos, o objetivo desta pesquisa é conhecer, por meio das publicações voltadas ao tema proposto, como tais conceitos da perspectiva dialógica, analisados ao longo da discussão, estão implicados e podem trazer contribuições ao trabalho clínico do(a) terapeuta familiar/de casal, pois se considera nessa abordagem que sua participação específica na conversação terapêutica possui qualidades dialógicas relevantes para o processo de mudanças, bem como para o entendimento da experiência terapêutica.

Cremos, assim, que ao apresentarmos a análise de tal recorte conceitual a partir da perspectiva dialógica, poderemos gerar um movimento de reflexão e curiosidade em terapeutas familiares/de casal no que diz respeito a novas possibilidades terapêuticas produtoras de novos significados e modos de agir.

 

Método

A pesquisa apresentará uma revisão bibliográfica narrativa, com o intuito de elucidar o problema através da análise da literatura publicada até o momento em livros, artigos e revistas, tanto em meio impresso quanto eletrônico, que envolvam o tema em estudo. A revisão narrativa, de acordo com Rother (2007, p. 1), é apropriada para “descrever e discutir o desenvolvimento ou o ‘estado da arte’ de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual. … Constituem[-se], basicamente, de análise da literatura … na interpretação e análise crítica pessoal do autor”. Esta pesquisa constituir-se-á, portanto, num estudo de cunho exploratório, o qual visa à promoção de maiores conhecimentos sobre o tema, subsidiado por uma abordagem qualitativa.

Algumas das palavras para a busca de pesquisas online, realizada nas bases de dados do Portal de Periódicos Capes e Wiley Online Library, entre 2015 e 2017, combinadas com o termo “terapia familiar”, foram as seguintes: perspectiva dialógica, dialogismo e self dialógico. Também foram incluídos os mesmos termos em língua inglesa como alternativa de expandir os resultados da busca. Até o momento, não foram localizadas pesquisas nacionais que tenham utilizado o conceito do self dialógico especificamente na terapia familiar, todavia, julgamos válido aduzir algumas publicações nacionais, cujas análises corroboram o entendimento de self de forma relacional/dialógica. Na literatura científica estrangeira (em inglês), por sua vez, chamaram-nos a atenção os estudos desenvolvidos por Peter Rober, tanto como pesquisador principal como em coautoria com outros autores, como Jaakko Seikkula e Aarno Laitila, que tem se sobressaído na linha de pesquisa sobre desenvolvimento de métodos dialógicos na investigação de processos de mudança na terapia familiar. Desse modo, por serem as publicações estrangeiras nesta revisão as que mais aproximam o self dialógico do campo da terapia familiar/de casal, é que as abordaremos mais extensamente no decorrer deste trabalho.

Por meio da análise dos autores pesquisados, realizamos um recorte de conceitos ligados à abordagem dialógica, tendo em vista que foram as concepções mais salientadas por eles ao discorrerem sobre a perspectiva em questão. Posto isso, buscamos subdividir a discussão em cinco partes, conforme a cadência ensejada pela construção narrativa, partindo de caracterizações primárias nos três primeiros tópicos até atingir uma compreensão mais efetiva e ampliada em relação aos dois últimos itens. Assim, temos: Diálogo e o espaço dialógico – nesse primeiro tópico, são apresentados os referidos conceitos, cuja influência principal reside em Mikhail Bakhtin; na seção seguinte – O self dialógico –, a ênfase se dá na construção teórica de Hubert Hermans que, também inspirado por Bakhtin, liga-se aos demais conceitos abordados ao longo do trabalho; no terceiro tópico – Posicionamento e conversação interna do(a) terapeuta –, são referidas algumas peculiaridades que esses conceitos, partindo do caráter relacional do self dialógico, adquirem no contexto do atendimento com famílias e casais; Reflexões sobre o conceito de não saber ilustram o quarto tópico, onde se busca uma caracterização mais ampla, especialmente a partir do entendimento abordado sobre a conversação interna do(a) terapeuta que não considere apenas a expertise dos clientes e a inclusão da questão do poder na terapia dialógica; o último tópico, mas não menos importante, é Pesquisa como aliada da prática, espaço dedicado à exemplificação de um tipo de método que pretende lançar luz sobre o potencial recurso terapêutico que a conversação interna do(a) terapeuta pode ensejar.

 

Discussões: diálogo e o espaço dialógico

O conceito de diálogo no trabalho de Bakhtin, conforme Rober (2005a, 2015) explica, é complexo pela própria ambiguidade que o filósofo empreende acerca do conceito, usado para se referir tanto a uma qualidade definidora da linguagem em si quanto a instâncias particulares da linguagem. Logo, apoiando-se no primeiro sentido, mais amplo e característico de toda linguagem, ao invés de o diálogo ser descrito como uma simples oposição a monólogo, como é comumente proposto e idealizado na literatura sobre Terapia Conjugal e Familiar (TCF), podemos entender o monólogo como um complemento do dialogismo, havendo, assim, diálogos monológicos e diálogos dialógicos. De acordo com Seikkula, Laitila e Rober (2012):

Os diálogos monológicos se referem aos proferimentos que carregam os pensamentos e ideias próprios do locutor sem estarem adaptados aos interlocutores. … é um diálogo fechado. Um exemplo é quando o(a) terapeuta pergunta por informação sobre como o casal fez o contato e estes respondem com informação sobre as ações que os levaram a participar na sessão de terapia. (Seikkula et al., 2012, p. 676, tradução nossa)

Nos diálogos dialógicos, por sua vez, “proferimentos são construídos para responder a proferimentos prévios e também para aguardar por uma resposta dos proferimentos que se seguem. Um novo entendimento é construído entre os interlocutores” (Seikkula et al., 2012, p. 676, tradução nossa). Ou seja, no proferimento de um(a) locutor(a), “ele(a) inclui o que foi previamente dito e conclui de maneira aberta seu proferimento, tornando possível ao próximo locutor juntar-se ao que foi falado” (Seikkula et al., 2012, p. 676, tradução nossa, grifo do autor). O diálogo, no sentido bakhtiniano da palavra, é, portanto, uma dinâmica tensa entre dimensões monológicas e dialógicas existentes em uma conversação (Rober, 2005a). A própria vida é, para Bakhtin, como um diálogo infindável e incessante, e não um estado tranquilo de equilíbrio (Rober, 2015). Portanto, ao conceder um entendimento sobre diálogo de modo menos idílico e disposto a reconhecer a complexidade que o sustenta, o raciocínio bakhtiniano vai além de auxiliar no trabalho de distinguir as mudanças que ocorrem na conversação terapêutica com famílias/casais, associando-se ampla e fundamentalmente à concepção de vida.

Vida é por sua natureza mesma dialógica. Viver significa participar em diálogo: fazer perguntas, prestar atenção, responder, concordar, e assim por diante. Neste diálogo, a pessoa participa inteiramente durante toda sua vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com todo seu corpo e feitos. Ela investe todo seu self em discurso, e esse discurso entra na fábrica dialógica da vida humana, dentro do simpósio mundial. (Bakhtin, 1984, p. 293, como citado em Rober, 2005a, p. 480, tradução nossa)

Vista pela lente do dialogismo, a psicoterapia, conforme Seikkula et al. (2012), pode ser entendida como um processo que se dirige à busca de palavras ainda não oferecidas para as experiências pessoais. No contexto da terapia familiar, essa busca de palavras se dá a partir da inclusão de membros familiares como “pessoas vivas reais que estão presentes de fato na sessão” (Seikkula et al., 2012, p. 668, tradução nossa). Dialogicamente, esse entendimento é importante no sentido de que cada palavra utilizada pelos participantes no diálogo se integra à rede tensionada de palavras previamente ditas sobre um mesmo assunto (Seikkula et al., 2012). O interesse da abordagem dialógica vai além do que é falado e se dirige às possibilidades que podem surgir quando o foco recai sobre como as coisas são faladas e respondidas no espaço dialógico que se cria (Errington, 2015).

Em terapia familiar, novas palavras/nova linguagem desenvolvem-se especialmente nas respostas que os membros da família dão uns aos outros em resposta às questões, interesses e preocupações que são expressas na sessão. Além disso, terapeutas estão em específicas posições de resposta, em uma situação de responsabilidade responsiva. (Seikkula et al., 2012, p. 668, tradução nossa)

Neste processo, há tanto entre as famílias quanto os terapeutas convites sutis para que respondam, frequentemente por meio das palavras e ações que evocam entre si. Cria-se, assim, o chamado espaço dialógico, que se abre como resultado do processo contínuo de interações, o qual permite aos terapeutas e aos membros da família – todos na qualidade de colaboradores para a mudança positiva – integrarem-se ao projeto conjunto de incremento do entendimento dos assuntos relacionados às situações vividas ou imaginadas. Por conseguinte, nessa perspectiva, onde a mudança é uma consequência de um diálogo gerador e de uma relação colaborativa, novos temas, sentidos e entendimentos são conjuntamente produzidos, podendo deixar de ser definidos como problema à medida que uma conversação dialógica ocorre (Errington, 2015; Rasera & Japur, 2004; Seikkula et al., 2012). Shotter (1993, como citado em Rober, 2005a) associa a relação de reciprocidade entre terapeuta e membros da família à imagem de dançarinos que, juntos, executam movimentos coordenados:

Sem realmente saber (em um sentido representacional) o que vai acontecer, eles antecipam os movimentos uns dos outros e respondem uns aos outros com novos movimentos. … as ações do(a) terapeuta e dos membros da família são coordenadas numa dança colaborativa. … no ritmo da sua interação, os participantes da conversação convidam uns aos outros a interagir de algumas formas, e através de uma interação não verbalizada e implícita, as regras de conduta e as expectativas da conversação são criadas na prática. (Rober, 2005a, p. 389, tradução nossa)

Ainda conforme Rober (2005a), citando Gergen (1999) e Bakhtin (1981, 1986), essa ideia sobre como a conversação terapêutica ocorre está ligada à noção de que “as ações de uma pessoa são o suplemento das ações de outra, e elas criam significado juntas por meio dessa negociação não verbalizada” (p. 389, tradução nossa). Assim, não existe, no viés do dialogismo, controle absoluto sobre os significados das minhas palavras e ações, dado que essas são lapidadas pelas respostas do ouvinte.

Considerando-se o diálogo como a pedra angular na filosofia da linguagem de Bakhtin, Rober (2005b, p. 481-482, tradução nossa) faz uma breve introdução de três conceitos centrais do trabalho do filósofo, quais sejam: (a) Voz: pertence a um autor e faz parte de todo proferimento, o qual é sempre carregado por tom emocional-volitivo, que “avalia e expressa a posição do autor em relação ao mundo e em relação ao destinatário”; (b) A palavra como uma criação conjunta: compreende-se que nunca há uma voz sozinha nem o falante é detentor de suas palavras; no entendimento de que todo proferimento convida para uma resposta, e a esperada resposta do destinatário afeta os proferimentos do falante, a palavra é concebida como um produto do diálogo entre falante e ouvinte, e, assim, “palavras adquirem significado apenas na efetiva resposta do ouvinte”; (c) Entendimento dialógico: trata-se de um processo ativo e criativo de palavra e resposta, no qual os significados do(a) cliente fazem contato com os do(a) terapeuta, fazendo emergir novos significados, diferentes dos significados originais do(a) cliente; não se trata de uma mera duplicação de entendimento, portanto, o ouvinte (o[a] terapeuta, nesse caso) tem de colocar-se numa posição de diferença/curiosidade, se quer que seu entendimento seja mais do que uma replicação de significado. Trata-se, em vista disso, de outro modo de desenvolver a empatia, que não fica ligada apenas a uma posição de identificação com os clientes – refletindo de volta suas palavras –, mas também a uma posição de diferença que busca o entendimento da experiência do outro. O que se enfatiza, entretanto, é a flexibilidade necessária ao(à) terapeuta de família para mover-se entre a identificação e a diferença com os clientes, conforme a ocasião lhe solicitará.

Pensemos nisso: haveria modo de trazer algo de novo ao sistema terapêutico numa posição de identificação perante os clientes? Como pode ser depreendido através de Rober (2005a, 2005b), o manejo entre posturas de identificação e de diferença ajuda a alertar o(a) terapeuta de família que ele(a) pode estar inadvertidamente favorecendo a manutenção da situação problemática quando permanece sendo mero replicador de significado. A família muitas vezes necessita escutar do(a) terapeuta uma confirmação de que as dificuldades de determinado momento estão dentro de uma normalidade, mas para além de amparar o sofrimento vivido, o(a) terapeuta procura agregar sua subjetividade na conversação como meio de convocar outros sentidos que possam existir na família, possibilitando novos entendimentos, novas descrições, novas negociações que realcem os recursos próprios dos familiares e gerem mais autonomia em seu processo de crescimento.

Em meio a tantas requisições simultâneas, o(a) terapeuta de família está atuando com inúmeras variáveis no setting terapêutico que ressaltam que seu compromisso na clínica é amplo e complexo. Seja qual for o nosso interesse em um enfoque conceitual sobre como as famílias funcionam e se relacionam, uma proposta de entendimento dialógico vem ressaltar que nossa aproximação com a família, antes de qualquer empenho no sentido de fornecermos alguns ensinamentos conceituais sobre seus problemas, nasce por uma atitude de genuína curiosidade e abertura ao nosso aprendizado na interação momento a momento com os membros da família, sentindo como reagimos e confiando mais em nossa própria intuição para lhes responder. Entretanto, se a ideia é que nós, terapeutas, estejamos o mais à vontade possível para partilharmos espontaneamente nossa própria pessoa, pensamentos, sensações etc., certamente se torna fundamental que tenhamos trabalhado nossos conflitos, ou, ao menos, que saibamos identificá-los a fim de que reconheçamos nossos próprios limites diante dessa proposição.

 

O self dialógico

Hubert Hermans, psicólogo oriundo de Maastricht, Países Baixos, é um dos principais teóricos em psicologia narrativa e em psicoterapia narrativa. Hermans desenvolveu a teoria do self dialógico inspirado por William James e Bakhtin. Com uma ampla e expressiva lista de publicações acerca da referida teoria (https://huberthermans.com. Recuperado em 02, junho, 2017), é de especial conveniência que nós possamos aduzir um pouco do construto teórico de Hermans sobre o self, tendo em vista a ligação que há com os conceitos ora apresentados aqui.

No curso de desenvolvimento da teoria do self dialógico, enquanto, por um lado, Hermans (2001) obteve inspiração através da noção de multivocalidade de personagens na novela polifônica de Bakhtin, por outro, também se viu incutido pela psicologia do self de James – com a clássica distinção Eu (self como conhecedor, que interpreta e organiza a experiência de forma subjetiva) e Mim/Meu/Minha (self como conhecido, composto por tudo aquilo que uma pessoa sente como pertencente a ela) –; na proposta de James, então, o self é abrangido não apenas como unidade, mas também como multiplicidade, e estendido ao ambiente. Vale aqui abrir um breve parêntese para que possamos distinguir o domínio de pensamento que repercute no período em que Hermans (2001) desenvolve sua teoria. Como Rober (2005b) comenta, a influência da corrente narrativa na terapia familiar permitiu uma nova concepção de self nessa área. Theodore Sarbin, por exemplo, um dos autores que inspirou a visão narrativa e pós-moderna de self, propôs uma nova moldura à distinção Eu e Mim de William James, onde o Eu se torna o autor e o Mim, o ator, tornando assim o Eu o contador de história que constrói a narrativa sobre o Mim, o protagonista. Criou-se, assim, a metáfora do contador de história que se abre à ideia de uma audiência, haja vista que a história é contada a alguém. Isso se torna relevante na medida em que introduz uma visão mais dialógica de self. Então, considerando Hermans o principal agente de desenvolvimento de uma teoria do self pela lente dialógica, passemos a examiná-la em mais detalhes.

Em 1992, a partir das contribuições teóricas de James e Bakhtin, Hermans, com a colaboração de Harry Kempen e Rens van Loon, conceituou o self“em termos de uma multiplicidade de posições-Eu relativamente autônomas” (Hermans, 2001, p. 248, tradução nossa), onde o Eu tem a possibilidade de mudar de uma posição para outra num espaço imaginário – intimamente entrelaçado com o espaço físico – conforme as mudanças em uma situação e tempo específicos (Hermans, 2001).

Um aspecto particular do self dialógico é a combinação de continuidade e descontinuidade. Em linha com James, há uma continuidade entre minha experiência, por exemplo, com minha esposa, filhos, ancestrais e amigos porque, como pertencentes ao ‘Meu’, todos eles são extensões de um mesmo self. Em linha com Bakhtin, entretanto, há uma descontinuidade entre os mesmos personagens na medida em que representam vozes diferentes e talvez opostas no domínio espacial do self. Como minha esposa e meus filhos, eles são contínuos; como minha esposa e meus filhos, eles são descontínuos. Nesta concepção, a existência de unidade no self, como estreitamente relacionada à continuidade, não contradiz a existência de multiplicidade, como estreitamente relacionada à descontinuidade. (Hermans, 2001, p. 248, grifos do autor, tradução nossa)

Hermans (Dialogical Institute, 2010) explica que o self dialógico pode ser entendido por meio da percepção de que nós vivemos num espaço não apenas externo, mas interno. Em nosso espaço interno, podemos nos sentir para cima ou para baixo, assim como nos sentir perto ou distante de nós mesmos. Portanto, dentro de nós ocorrem movimentos verticais e horizontais. Todavia, como o espaço não se resume àquele que ocorre em nosso interior, Hermans pontua que habitamos também um espaço estendido. Esse entendimento significa dizer que nossas mentes são povoadas por muitas pessoas desempenhando papéis particulares. Se estamos, então, constantemente pensando e sentindo em relação a outras pessoas, nunca estamos sozinhos(as); vivemos, portanto, no que podemos chamar de uma sociedade de mentes onde o self é uma sociedade e, simultaneamente, faz parte de outra mais ampla.

Na sociedade de mentes, Hermans distingue dois tipos de posições-Eu, as internas e as externas. As posições-Eu internas são, por exemplo, eu como terapeuta, eu como estudante, eu como filha(o) dos meus pais, eu como mãe/pai, etc. As posições-Eu externas, por sua vez, referem-se ao mundo, ao espaço estendido. Podem ser: meu pai, minha mãe, meu(minha) professor(a), meu(minha) irmão(ã), meu(minha) adversário(a), meu(minha) cliente, e assim por diante. Todas essas pessoas estão, conforme Hermans, preenchidas de afeto em nossas mentes. Na distinção entre essas posições, torna-se então possível entender que o que acontece na sociedade entre as pessoas também pode acontecer dentro do self. Se as pessoas podem criticar umas às outras, eu posso criticar a mim mesmo(a); se as pessoas podem ter um conflito com outras pessoas, eu também posso ter um conflito interno; se as pessoas podem fazer um acordo com outras pessoas, eu posso fazer um acordo comigo mesmo(a); se as pessoas podem consultar umas às outras, eu posso consultar a mim mesmo(a). Na compreensão dialógica de que eu posso ouvir a mim mesmo(a), Hermans exemplifica que eu posso ter um self otimista em relação ao meu pai e um self pessimista em relação à minha mãe, onde tais posições diferentes reagem entre si. Como tenho um self otimista e um self pessimista, é possível que eles possam ouvir um ao outro. Ou seja, todos nós podemos responder a uma situação de uma forma emocional, mas também de uma forma racional. É no diálogo entre diferentes posições que uma decisão particular pode ser tomada (Dialogical Institute, 2010). Conforme essa noção dialógica do self, podemos ir além e ponderar, inclusive, sobre a possibilidade de um self otimista e pessimista em relação a uma mesma pessoa.

Por meio dessa descrição, Hermans (2001) critica a proposta de um self individualizado, racionalizado, detentor de um núcleo, de uma essência, baseado na noção dualista cartesiana que faz uma separação entre self e corpo, bem como entre self e o outro. Na concepção cartesiana, o self é tradicionalmente expresso como “Eu penso”, que propõe um Eu centralizado responsável por um processo mental fundamentalmente descorporificado. Em contraste a esse self cartesiano, o self dialógico, sempre relacionado a uma posição corporificada no espaço e tempo, baseia-se na premissa de que há muitas posições-Eu que podem ser ocupadas pela mesma pessoa. Nessa concepção, “o Eu em uma posição … pode concordar, discordar, entender, equivocar-se, opor-se, contradizer, questionar, desafiar e até ridicularizar o Eu em outra posição” (p. 249, tradução nossa).

O self dialógico também é entendido como social, mas não no sentido de um self individual, contido, que interage socialmente com outras pessoas de fora. É social no sentido de que pessoas ocupam posições em um self multivocal. Graças a essas posições internas e externas que o self constrói, nossos relacionamentos com os outros são sempre mediados pela criação interna que fazemos deles. Essa perspectiva construída pode ou não ser congruente com a perspectiva definida como a do outro de fato e, para verificar isso, uma possibilidade seria entrar em conversação com o outro (Hermans, 2001). Lenzi (2013), ao sustentar a mesma compreensão de self, avigora os nossos relacionamentos como o que fundamenta nossas narrativas de self, ou seja, essa interdependência com outras pessoas “resulta do fato de que uma identidade pode apenas ser mantida enquanto outros desempenharem papéis apoiadores na sua construção” (p. 88), corroborando a imprescindibilidade do intercâmbio social na constituição do self. Isso é particularmente importante, como diriam Whitaker e Bumberry (1990), quando ponderamos que “as famílias que nos veem podem estar determinadas a ver-nos como oniscientes” (p. 32), cabendo, como pontuam os autores, que nos responsabilizemos pelo esvaziamento de tal ilusão. Eis que o caminho para isso, conforme a perspectiva de self que estamos a analisar, seja o da conversação que leve em conta a dissolução dessa percepção equivocada.

A partir desse entendimento de self, podemos entender que as diferentes posições internas e externas que uma pessoa pode manifestar em dada situação e tempo não seriam de um domínio particular, mas sempre relacional – característica com a qual o psicólogo social americano Kenneth Gergen, principal expoente do discurso construcionista social, coaduna-se ao entender o self para além do circunscrito entendimento individual e essencialista, ponderando-o como uma construção recíproca que se dá dentro das relações, de maneira a ampliar suas possibilidades de expressão (Gergen, 2009, como citado em Pereira & Rasera, 2018). Ao conceber essa visão ampliada, “cada self que adquirimos dos demais pode contribuir ao diálogo interno, aos debates privados que mantemos com nós mesmos a respeito de toda classe de sujeitos, eventos e questões” (Gergen, 1991, p. 71, citado em Pereira & Rasera, 2018, p. 70). Isso permite retomar o sentido dialógico da terapia familiar como um encontro de “pessoas vivas reais que estão presentes de fato na sessão” (Seikkula et al., 2012, p. 668, tradução nossa), dado que a ênfase incide sobre o contexto relacional do processo terapêutico, naquilo que as pessoas constroem juntas nesse contexto específico, a partir do qual determinadas histórias são contadas, enquanto outras são deixadas de lado, tendo em vista que, como lembram Guanaes e Japur (2003) ao considerarem Gergen, também não estamos livres para construir qualquer história pessoal, dadas as convenções sociais atuantes tanto no sentido de estimularem e enaltecerem determinadas descrições de self quanto no sentido de desencorajarem outras. Ademais, quando passamos a considerar o(a) terapeuta como um self dialógico, isso permite colocar que suas vozes internas, que se remetem às diferentes posições que surgem na dinâmica complexa do atendimento com famílias/casais, podem constituir-se como recurso terapêutico no processo de criação conjunta de significados. E é particularmente nesse contexto que a concepção do self dialógico pode lançar luz sobre as possibilidades e implicações da conversação interna do(a) terapeuta de família.

 

Posicionamento e conversação interna do(a) terapeuta

Considerando o caráter relacional que pressupõe o dito self dialógico, intimamente relacionado a diferentes posições que uma mesma pessoa pode ocupar no espaço e tempo, partimos agora para um entendimento mais detalhado sobre posicionamento, no intuito de compreendê-lo como elemento fundamental na conversação interna do(a) terapeuta.

O posicionamento refere-se à posição de uma voz, que, como abordado no primeiro tópico, pertence a um autor e faz parte de todo proferimento. O posicionamento reflete, assim, a posição que uma voz (o autor de um proferimento) expressa em relação ao mundo/ao destinatário e pode ser concebido como uma metáfora espacial (Hermans, 2001; Seikkula et al., 2012) onde uma voz, com determinado ponto de vista, participa em um diálogo. Em cada ponto de vista tem-se uma perspectiva que permite a uma pessoa ver, ouvir, experimentar de uma forma específica e, ao mesmo tempo, limitada, visto que enquanto algumas coisas podem ser vistas num dado posicionamento/ponto de vista, outras coisas permanecem obscurecidas ou fora de vista. Portanto, pode-se perceber que diálogo – seja interior ou exterior – consiste numa reunião de diferentes pontos de vista, “nos quais cada voz expressa alguma coisa de sua perspectiva, ativando uma outra voz que fala de outro ponto de vista em um contínuo jogo de concordância/ discordância (conteúdo) ou identificação/ diferenciação (posição)” (Seikkula et al., 2012, p. 670, tradução nossa).

Percebendo que cada proferimento tem um autor e uma pessoa a quem o endereçamos, cada proferimento é uma resposta ao que foi previamente dito. No contexto de atendimento familiar, por exemplo, os proferimentos de cada membro da família, bem como os nossos como terapeutas, podem ser endereçados a alguém que esteja presente na sala, mas, ao mesmo tempo, estamos conscientes da presença de outras pessoas naquele momento, e nossas falas são, dessa forma, modificadas por elas, que, fazendo parte da audiência à qual nos endereçamos, tornam-se parte de nossos proferimentos. Contudo, considerando-se que apenas duas pessoas estejam falando entre si, uma terceira parte está sempre presente. Em outras palavras, há uma conversa que ocorre no presente, mas, simultaneamente, cada pessoa também está endereçando suas palavras àqueles que participaram da discussão sobre a questão no passado. Além disso, quando tais pessoas falam sobre questões emocionais, é possível que estejam endereçando suas palavras às pessoas que lhes são próximas – sua mãe, seu pai, uma pessoa que ama etc. (Seikkula et al., 2012). Isso nos permite esclarecer que não necessariamente, no momento de uma conversação entre duas pessoas, remetemo-nos apenas a pessoas que tenham feito parte da discussão sobre determinada questão no passado, mas a quaisquer outras que tenham influência sobre aquele assunto. Em terapia familiar, por exemplo, quando os pais, na presença dos filhos, contam sobre como se conheceram ao(à) terapeuta, eles também podem estar se endereçando aos próprios filhos, comunicando-lhes possivelmente algo de diferente do que os filhos possam ter ouvido até então. A audiência que se constitui para cada pessoa no momento particular da sessão é o que torna a conversação dialógica única e irrepetível, resgatando a compreensão de self relacional, que, em dependência de quem está presente, incidirá sobre a forma como nos apresentamos.

Rober (2005b, p. 483, tradução nossa) pontua que, no contexto de uma conversação terapêutica familiar, o posicionamento é particularmente complexo, visto que “a postura do(a) cliente em relação ao objeto de suas palavras é influenciada por suas próprias experiências com o objeto”, bem como “por diferentes ouvintes (membros da família e terapeuta) que são endereçados e pelas respostas aguardadas desses ouvintes”. Eis também que, ao entrar em conversação com diferentes subsistemas familiares, o(a) terapeuta pode acessar realidades diversas sobre uma mesma família, dando a esse contexto de intervenção seu tom peculiar, em que refletirmos sobre o posicionamento do(a) terapeuta adquire uma relevância ímpar para que venhamos a desenvolver entendimentos mais abrangentes sobre o atendimento com famílias/casais. Além disso, o(a) terapeuta, considera Rober (2005b), é um “ouvinte ativo, responsivo, continuamente aberto às vozes dos clientes enquanto move-se para trás e para frente entre posições de identificação e de distanciamento” (p. 484, tradução nossa).

Entendida como uma polifonia de vozes internas, a conversação interna do(a) terapeuta pode ser distinguida como um diálogo entre: (a) vozes que refletem o self experienciador (ou self, apenas) do(a) terapeuta, as quais dizem respeito às observações do(a) terapeuta, suas memórias, imagens e fantasias ativadas pelo que é observado; seriam o equivalente ao “eu-para-mim” de Bakhtin, ou seja, nessa posição o(a) terapeuta predominantemente se percebe como atuando em resposta ao contexto e aos convites dos clientes, onde, de certa forma, implica-se o aspecto da receptividade da posição de não saber em relação às histórias dos clientes e ao que elas evocam no(a) terapeuta; e (b) vozes que refletem seu self profissional (ou papel), que, por sua vez, referem-se às hipotetizações do(a) terapeuta e ao preparo de suas respostas; assim, a partir do que tem observado enquanto self experienciador, o(a) terapeuta procura dar sentido às suas experiências, estruturando suas observações e tentando entender o que ocorre na família e na conversação; essas vozes poderiam ser entendidas como o “eu-para-o-outro” bakhtiniano, pois seria como se o(a) terapeuta estivesse observando a si mesmo(a) do lado de fora (Rober, 2005b).

Na sessão com a família, algumas das múltiplas vozes internas do(a) terapeuta são evocadas e ativadas pelo que acontece. Algumas dessas vozes estão falando alto; outras expressam-se corporalmente ou mantêm-se em silêncio em segundo plano, dependendo do contexto dialógico. O(A) terapeuta pode ativamente usar suas vozes internas como um recurso na sessão terapêutica quando as vozes representando o papel do(a) terapeuta e aquelas representando seu self experienciador são postas em diálogo umas com as outras. Dessa forma, a conversação interna do(a) terapeuta é um espaço reflexivo que constrói uma ponte entre saber e não saber. (Rober, 2005b, p. 492, tradução nossa)

Como pontuam Seikkula et al. (2012), o desafio para o(a) terapeuta de família está em manter-se sensível aos convites da família para tomada de posições, bem como em preservar um espaço mental para refletir acerca desse posicionamento, podendo-lhe ser útil indagar-se: “estes convites abrem espaço para histórias não contadas? Eles acrescentam à segurança da sessão? Eles deixam espaço suficiente para outros membros da família moverem-se mais flexivelmente na performance familiar?” (p. 670, tradução nossa). Esse caminho da autoindagação pode nos chamar atenção para as nuances relacionais em nossa prática, ao mesmo tempo em que busca encorajar o(a) terapeuta a introduzir algumas de suas vozes internas na conversação externa com a família como modo de contribuir com novas perspectivas e histórias que podem estar sendo restringidas. Contudo, certamente é um caminho que requer um esforço com o qual talvez não estejamos nem um pouco acostumados, mas que se abre a um campo fértil de possibilidades terapêuticas geradoras de novos significados e modos de agir.

 

Reflexões sobre o conceito de não saber

Mmm Tendo sido primeiramente introduzido por Harlene Anderson e Harold Goolishian em seu artigo de 1992, The Client Is the Expert: A Not-Knowing Approach to Therapy, o conceito de não saber influenciou a reflexão sobre o self do(a) terapeuta (Rober, 2005b). Esse conceito pode ser assim descrito:

Uma atitude geral na qual as ações do(a) terapeuta comunicam uma curiosidade genuína. No intuito de realmente escutar a história do(a) cliente e realmente entender o que o(a) cliente quer dizer, o(a) terapeuta precisa ‘não saber’ no sentido de que ele ou ela tem que suspender suas próprias suposições e preconceitos e estar aberto(a) ao que o(a) cliente quer trazer. (Rober, 2005b, pp. 477-478, tradução nossa)

Quando não se limita por experiências anteriores, bem como por conhecimentos ou verdades teoricamente produzidas, o terapeuta numa posição de não saber, de acordo com Anderson e Goolishian (1998), encontrará estímulo no aprendizado sobre a singularidade da história de cada cliente, conferindo-lhe credibilidade, a fim de “manter sempre uma continuidade com a posição do cliente e atribuir uma importância primária à sua visão de mundo, seus sentidos e entendimentos” (pp. 39-40). Ainda consoante esses autores, desde tal postura, o(a) terapeuta fornece ao(s) cliente(s) o ponto de partida para a emergência de histórias ainda não contadas.

Rasera e Japur (2004) também examinam o conceito de não saber a partir das contribuições que Anderson e Goolishian, pautados pelo referencial construcionista, fazem acerca da prática psicoterapêutica. Por essa ótica, a intenção principal do(a) terapeuta seria promover uma oportunidade dialógica na relação terapêutica, sustentando uma investigação compartilhada por meio da adoção de uma postura de não saber, a qual representa um dos traços mais marcantes dessa abordagem psicoterápica – que define o sistema terapêutico como um sistema linguístico, ou seja, participam do sistema terapêutico aqueles que estão no contexto linguístico do problema, descrevendo-o, narrando-o, produzindo-o e conversando a seu respeito. Essa postura está relacionada à criação de um espaço dialógico na conversação terapêutica e implica ao(à) terapeuta uma disposição à dúvida e ao questionamento do que ele ou ela já sabe, afastando-o(a) de compreensões prematuras que tendem a ocorrer quando se quer entender algo muito rápido, ajudando assim a valorizar o conhecimento dos clientes, com o qual o(a) terapeuta poderá arriscar-se a ser aprendiz a cada novo encontro. 

Rober (2005a, 2015) coloca que o(a) terapeuta adota uma postura de não saber para evitar suas conversações internas monológicas – estas podem resultar no que Andersen (2002, p. 189) pontua como “falas monológicas, em que o especialista pergunta e a pessoa observada responde”, tornando a conversação externa uma composição de várias pequenas falas. Assumindo uma postura de não saber, portanto, o(a) terapeuta se mantém em contato com a complexidade, a incerteza e a natureza infindável que são resultado das múltiplas vozes que estão presentes em suas conversações internas.

Há, porém, uma questão importante sobre o que o conceito/postura de não saber pode sugerir se interpretado de forma muito literal. Como se encontra em Rober (2015), uma crítica a esse conceito é a de que ele “não captura a mutualidade e a atividade compartilhada da relação terapêutica, uma vez que a experiência vivida do(a) terapeuta no encontro com a família não é valorizada” (p. 107, tradução nossa), isto é, o conceito estaria apenas tomando a noção do(a) cliente como expert – não mais o(a) terapeuta –, o que contribuiria apenas para a manutenção de uma ideia de expertise individualizada.

Quando Anderson e Goolishian (1998) definem que não saber está relacionado à capacidade de aprendizado do(a) terapeuta acerca da verdade narrativa de cada cliente, eles categoricamente afirmam que “os terapeutas serão sempre prejudicados por sua experiência” (p. 40), a qual os impediria de enxergar a totalidade do sentido das descrições de suas vivências. Assim, desde que abordassem cada experiência clínica a partir de uma posição de não saber, estariam evitando “buscar regularidades e sentidos comuns, que podem validar a teoria do terapeuta, mas invalidam a singularidade das histórias dos clientes, e, logo, sua própria identidade” (p. 40). Diante de tal concepção de Anderson e Goolishian (1998), alinhamo-nos à crítica apresentada acima por Rober (2015), uma vez que compreendemos que a experiência do(a) terapeuta não diz respeito apenas ao conhecimento teórico, mas envolve a experiência vivida dele(a), cuja contribuição para a troca dialógica com cada cliente não deve ser negligenciada, visto que essa experiência, correspondente ao self experienciador, refere-se ao que é ativado pelas observações do(a) terapeuta no momento único e imediato do encontro e dialoga, na conversação interna do(a) terapeuta, com o self profissional, gerando modificações em seus modelos interpretativos. Em outras palavras, entendemos que a postura de não saber na concepção de Anderson e Goolishian (1998) – embora seja bastante eficiente em reconhecer a relevância do aspecto receptivo do(a) terapeuta junto aos clientes, acolhendo suas singularidades –, ao invés de criar uma ponte reflexiva com o saber do(a) terapeuta, limita-se a desprezá-lo.

Outra relevante objeção ao conceito, relacionada à anterior, é apresentada por Guilfoyle (2003) e diz respeito à negação das questões de poder nas relações. Examinando a relação entre diálogo e poder nas práticas terapêuticas que consideram a postura de não saber, Guilfoyle pontua a tendência dos terapeutas dialógicos a associar poder a processos de autoridade, dominação, controle e hierarquia, além de supor que a retirada do poder seria um imperativo ético nas terapias dialógicas e que tal remoção levaria à mudança terapêutica. Para argumentar contra a ideia de que o poder obstruiria o diálogo e restringiria a expressão do que ainda não foi dito pelo(a) cliente, o autor se utiliza da noção de poder de Foucault para defender que as relações de poder podem incitar o diálogo, sem comprometer o caráter dialógico da interação. Em outras palavras, poder e resistência (uma forma de contrapoder, que implícita ou explicitamente propõe maneiras alternativas de ser e relacionar) conjuntamente produzem o encontro dialógico. Guilfoyle, dessa forma, procura levar à compreensão de que o poder, não obstante a nossa intenção particular, já opera antes mesmo de o encontro terapêutico ser formado, porque nós, terapeutas, sendo ou não adeptos(as) de uma postura de não saber, provavelmente compartilhamos um mesmo status socioculturalmente construído, qual seja, o de experts, proveniente dos amplos processos discursivos e institucionais que servem de contexto para práticas e discursos terapêuticos locais. Estarmos inseridos na categoria de terapeutas, que se definiria no âmbito macro da sociedade e da cultura, já nos posicionaria numa categoria diferente das pessoas categorizadas como clientes. Considera-se, assim, que: “se intenções não esgotam as múltiplas formas em que o poder opera, então poder não é algo que o(a) terapeuta pode simplesmente escolher evitar”. (Guilfoyle, 2003, p. 336, tradução nossa).

Uma consequência da noção restrita sobre o conceito de não saber tem levado terapeutas a se aterem ao conceito como uma negação da presença de poder no encontro terapêutico. Entretanto, assumir uma posição ética virginal como se o diálogo se constituísse como uma estável relação de entendimento apenas favoreceria o não reconhecimento da possibilidade de resistência do(s) cliente(s). Apesar de hoje em dia dificilmente haver um(a) terapeuta de família que negue a importância de não saber na prática da TCF, ainda se faz necessário chamar atenção à necessidade de estruturar o conceito em uma perspectiva dialógica mais ampla (Rober, 2015). Nesse sentido, importa ao(à) terapeuta questionar-se sobre o que fazer com o poder socioculturalmente construído, reconhecendo seus efeitos na terapia e como fazê-lo operar a favor da criação de espaço dialógico com os membros da família.

Como Rober (2015, p. 114, tradução nossa) destaca: “no entendimento dialógico, é apenas por meio do reconhecimento da importância do poder e abertura de espaço para a resistência do(s) cliente(s) (para o ‘não’ do(s) cliente(s)) que um encontro dialógico pode ser obtido”. Para elucidar esse tipo de situação, ele cita o caso de um atendimento com um casal heterossexual, no qual um dos membros, o homem, está relutante em relação à terapia. Além de embasar cientificamente a resistência mais forte que se percebe no sexo masculino por questões culturais sobre o modo como o homem lida com dificuldades emocionais e por precisar se expor a um estranho (ainda frequentemente tendo uma mulher como terapeuta), o autor reforça o coro da recomendação que outros pesquisadores da área têm feito aos terapeutas de casal, qual seja, a de examinar como a decisão de vir à terapia foi feita antes de embarcar na descrição dos problemas do casal, tendo em vista que esse tipo de apreciação pode criar espaço para a história do homem, incluindo, por exemplo, a preocupação de que sua perspectiva não obterá uma escuta justa, seu sentimento de fracasso por terem que procurar por ajuda naquele momento e/ou suas experiências negativas ao falar sobre questões sensíveis no relacionamento. “Começar a terapia de tal maneira intensifica o compromisso dos homens nos primeiros estágios da terapia, desenvolve as alianças terapêuticas e reduz a probabilidade de que eles prematuramente encerrem a terapia” (Rober, 2015, p. 115, tradução nossa). De modo geral, portanto, o autor propõe que o(a) terapeuta procure não seguir a rota mais segura e confortável, na qual rapidamente faria aliança com o membro mais disposto por meio da escuta empática da história problemática e de uma posição de não saber meramente receptiva, mas busque, antes de tudo, criar espaço dialógico com a alteridade do membro mais relutante, evitando assim negligenciar a voz de tal membro.

Dessa maneira, ao compreender que a postura de não saber não se traduz por passividade, o(a) terapeuta não nega o antagonismo existente nos relacionamentos, mas isso lhe demanda o esforço para transformar o antagonismo em “agonismo”, no qual se aceitam a tensão e o conflito inerentes ao diálogo. Na perspectiva dialógica, não existe a ideia de um(a) terapeuta eticamente inocente, que ouve o desenrolar da história dos clientes, haja vista que o “ouvir” não é considerado um processo passivo, pelo contrário, sendo o ouvinte um participante ativo e responsivo na interação dialógica, ele(a) prepara-se para responder ao que foi ouvido, seja concordando, discordando – completamente ou parcialmente –, argumentando etc. Assim, não há um mero registro de palavras, uma vez que elas ecoam na conversação interna do(a) terapeuta, ativando várias de suas vozes internas, e no decorrer do processo de ouvir e responder é que emerge o significado das palavras (Rober, 2005a, 2015).

 

A pesquisa como aliada da prática

Em publicações como as de Rober (2005a, 2005b, 2015), Errington (2015) e Seikkula et al. (2012) têm se proposto a analisar os aspectos dialógicos em terapia de família/casal através da microanálise de alguns casos clínicos, permitindo ilustrar como os conceitos dialógicos podem ser ferramentas úteis para o enriquecimento do nosso entendimento sobre as complexidades subjacentes às relações terapêuticas com famílias/casais, particularmente no que tange às mudanças de posições dos participantes, incluindo o(a) terapeuta, no diálogo.  

A título de exemplo de como é possível construir uma microanálise de caso clínico e de como os conceitos vistos até aqui seriam conectados à prática, abordaremos a pesquisa de Rober (2005b), na qual ele propõe uma tentativa de reconstruir a conversação interna do(a) terapeuta através de um procedimento de recordação por vídeo-registro da sessão. Esse método, explica o autor, consiste em dois passos: primeiramente, a sessão com a família é gravada em videoteipe e, em segundo lugar, imediatamente após a sessão, o(a) terapeuta assiste ao vídeo, devendo pausá-lo sempre que ele ou ela puder recordar coisas que sentiu, pensou, experimentou em diferentes momentos da sessão, tomando notas dessas reflexões. As anotações do(a) terapeuta são, então, combinadas com a transcrição do registro para microanálises mais aprofundadas da sessão. O autor salienta, entretanto, que a “reconstrução da conversação interna é pouco mais que uma aproximação da real conversação interna do(a) terapeuta, que é muito caótica e complexa para ser capturada em palavras. … Todavia, … é possível gerar uma reconstrução limitada, mas útil” (p. 488, tradução nossa).

Cumpre destacar que, na microanálise empreendida por Rober (2005b), a perspectiva dos clientes não é contemplada porque o principal propósito do estudo reside nas possíveis contribuições do conceito de self dialógico para as reflexões do(a) terapeuta que se dirige à complexidade do encontro terapêutico. Vejamos, portanto, como Rober (2005b), considerando especificamente a conversação interna do(a) terapeuta, utiliza-se da microanálise de um caso de terapia de casal (Quadro 1) a partir do procedimento descrito acima. Consoante apresenta o autor, trata-se da primeira sessão de um casal, Mark e Esther. A esposa estava com depressão e eventuais pensamentos suicidas, sendo seu médico particular quem havia feito o encaminhamento à terapia. Quando o terapeuta do caso pediu que eles se apresentassem, não tardou para que os clientes trouxessem o tema emocionalmente carregado da morte do filho deles. O marido contou que eles haviam perdido seu único filho há um ano e meio.

 

Quadro 1: Transcrito da Vinheta e Conversação Interna do Terapeuta

Conversação Externa

Conversação Interna do Terapeuta

Mark: “Ele só tinha sete quando morreu de câncer.”

Por um momento, eu pensei sobre o meu próprio filho pequeno e eu senti um alívio por meu filho estar saudável. Ao mesmo tempo, uma tristeza tomou conta de mim.

Ambos Mark e Esther tinham lágrimas nos olhos. Eles ficam em silêncio por um momento.

Eu tentei me concentrar novamente na história de Mark e Esther, e eu percebi que Mark e Esther pareciam estar lutando contra suas lágrimas.

Esther: “Você sabe o que ele me disse alguns dias antes de morrer?”

Terapeuta: “Não.”

Esther: “Ele disse ‘Mamãe, não tenha medo. Eu não estarei sozinho no céu. Haverá um anjo que será legal comigo e que cuidará de mim até você chegar.’”

Eu imaginei o que ela iria falar, e eu senti como se algo dramático fosse acontecer.

Esther começa a chorar.

Mark move sua cadeira para mais perto dela e coloca seus braços ao seu redor.

Ele segura Esther perto e a conforta.

Eu me senti triste, e me senti inclinado a confortá-la. Mas então pensei que seria melhor esperar e ver o que Mark faria. Eu não gostaria de assumir o comando por ele se realmente não fosse necessário.

Mark: “Não chore, minha querida”.

Então ele olha para o terapeuta.

Mark: “É por isso que às vezes ela quer morrer. Ela quer se juntar ao nosso filho.”

Enquanto eu via Mark confortando Esther, me senti mais aliviado.

Eu fiquei muito tocado pelo que ele disse sobre sua esposa às vezes querer se matar. Para ela, suicídio seria um ato de amor para com seu filho.

Nota. Adaptado de “The therapist’s self in dialogical family therapy: some ideas about not-knowing and the therapist’s inner conversation”, de P. Rober, 2005b, Family Process, 44(4), p. 489.

 

Rober (2005b) se debruça sobre cada uma das diferentes vozes, destinatários e posicionamentos que distinguiu1 em cada um dos membros do casal e que convidam a diferentes respostas na conversação interna do terapeuta, como respostas referentes a “emoções (uma tristeza tomou conta de mim), memórias (pensei sobre o meu próprio filho), observações (eu percebi que Mark e Esther pareciam estar lutando contra suas lágrimas), intenções (então pensei que seria melhor esperar e ver o que Mark faria)” (pp. 489-490, grifos do autor, tradução nossa). Essas respostas também servem para exemplificar os já abordados self experienciador do terapeuta – ao mencionar o que sente e observa –, e self profissional/ papel – reflexões do terapeuta sobre seus sentimentos e considerações acerca de suas possíveis futuras ações, como em “pensei que seria melhor esperar” (p. 490, grifo do autor, tradução nossa), ou, ainda, quando o terapeuta reflete sobre seu posicionamento na sessão, como se pode notar em “tentei me concentrar novamente (p. 480, grifo do autor, tradução nossa). Assim, se se percebe a dinâmica existente entre o self experienciador e o self profissional na tomada de decisões do terapeuta, logo é possível considerar a relevância da conversação interna do terapeuta como uma ferramenta terapêutica (Rober, 2005b).

O método acima retratado cumpre o propósito de incrementar o projeto de pesquisa de Rober (2005b) em relação à abordagem dialógica na terapia familiar. Como explicitado pelo autor, tal ferramenta não é de imprescindível aplicação a todas as nossas sessões terapêuticas, mas serve – especialmente nas escolas de formação de terapeutas de família – como um método de supervisão, bem como amostra para o fomento de debates sobre os aspectos dialógicos na terapia familiar/de casal, além de acrescentar às perspectivas narrativa/colaborativa uma lente que aborde a mudança de posições dos participantes (também o(a) terapeuta) no diálogo. Rober chama atenção também para a cautela que o(a) terapeuta necessita levar em conta ao expor algumas de suas vozes internas aos clientes; não é qualquer atitude transparente do(a) terapeuta que contribuirá para o processo de mudança – as reflexões internas que o(a) terapeuta decide expor devem soar muito mais como uma tentativa de reflexão de uma pessoa cuidadosa que, com respeito, procura abrir novas perspectivas para a continuidade do diálogo do que como um julgamento de um(a) especialista. Nesse sentido, se pensarmos no caso apresentado, a questão que se abre ao leitor seria a de como é possível ao(à) terapeuta, construtivamente, trazer para a conversação externa algumas das reflexões internas que lhe surgiram na sessão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva dialógica que se desenvolve no campo da terapia familiar deixa apontados alguns aspectos fundamentais que constituem o atendimento com famílias/casais, especialmente quando põe em evidência a mutualidade entre clientes e terapeuta na relação terapêutica, embora não se propondo a desconsiderar a infinidade de aspectos sociais, culturais e materiais que integram a complexidade da terapia familiar. De fato, para que se atinja determinado foco, há de se partir de algum reducionismo, de algum ângulo sobre o que é investigado. E tendo sido nossa proposta examinar um desses “n” ângulos possíveis, vale refletirmos, por fim: o que a visão dialógica do self e da terapia familiar me permite distinguir de mim mesmo(a) e das famílias que atendo? Como a noção de múltiplas posições/vozes que supostamente constituem esse self me permite entender o que ocorre na interação terapêutica? Para refletir sobre tais indagações, espera-se que a síntese apresentada acompanhe o(a) leitor(a) numa visão desidealizadora de diálogo que o(a) leve a considerar a relevância, por meio do recorte conceitual promovido, acerca dos desafios e das potencialidades de sua implicação dentro da complexidade que envolve o trabalho com famílias e casais, dando ênfase à capacidade de refletir e agir através de sua autorreferência, abrangendo os aspectos que o(a) terapeuta consegue enxergar de si mesmo(a) na interação com seus clientes.

Diante do exposto que se abre aos leitores, vale também recordarmos, a partir da discussão levantada, que a influência bakhtiniana é marcante nas pesquisas que estudam a terapia familiar dialógica e é por ela que chegamos a uma concepção de diálogo como uma criação de algo novo e único, que não se repete. Nesse espaço de criação, não há controle do(a) terapeuta sobre qualquer significado; suas ações e uso de palavras são convites para os clientes e vice-versa. É na interação que ocorre a produção de sentido. Como numa dança, então, terapeuta e família juntam-se para compartilhar o que há de único em suas vidas. Tal descrição da terapia familiar, que se ressalta como um projeto conjuntamente criado, faz-nos questionar as preocupações que podem ocorrer aos terapeutas em termos de conhecimento e certezas, que podem comprometer a dinâmica dos diálogos internos e externos na terapia, reduzindo hipotetizações e o entendimento do seu papel na relação.

O saber do(a) terapeuta não se impõe nessa perspectiva, mas, ao ser contrabalanceado pelo não saber, ainda tende a ser distorcido, como se este último estivesse propondo uma valorização apenas do saber dos clientes. De acordo com o que foi discutido, até que ponto seria viável tal concepção restrita do não saber na prática? Eis, portanto, a necessidade de contemplar essa noção de forma ampla e dialógica, possibilitando a reflexão sobre a representação que eu faço (e que fazem de mim) de ser terapeuta, em termos de responsabilidade, poder, papel etc., e ensejando a circulação de saberes/poderes/vozes na sessão. Reside nesse exercício a capacidade de estarmos, efetivamente, observando o que estamos fazendo e, com maiores probabilidades, potencializando nossas contribuições junto às famílias e aos casais num processo de mudanças não apenas deles, mas também de nós mesmos.

 

 

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Recebido em: 06/09/2018
Aprovado em: 13/02/2019

 

 

1 É válido acessar a pesquisa do autor para uma leitura pormenorizada de sua microanálise. Embora deva ser logo pontuado que, ao distinguir as diferentes vozes, destinatários e posicionamento, a partir da sua perspectiva dialógica, Rober não propõe a seus leitores uma leitura única, mas os convida, principalmente terapeutas de família e pesquisadores, a analisarem o trecho do caso apresentado à sua maneira, distinguindo outras vozes e chegando a outras conclusões.

 

 

I Daniel Welton Arruda Cabral: Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: daniel_welton@hotmail.com

II Camila Maria Del Carlos Pinheiro Sales: Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Fortaleza/CE, Brasil. Formação em Terapia Familiar Sistêmica. E-mail: camiladelcarlos@hotmail.com

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