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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.28 no.63 São Paulo enero/abr. 2019

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

Ampliando nossas habilidades de atendimento à comunidade

 

 

Helena Maffei CruzI

I Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil.

 

 


 

 

Desde 2008 a revista Nova Perspectiva Sistêmica tem realizado o Construcionando, um evento bianual criado inicialmente pela equipe de professores do Instituto Noos, com sede no Rio de Janeiro, e por mim. Tinha por objetivo reunir psicólogos, educadores, psiquiatras, assistentes sociais ou outros profissionais das áreas de serviços humanos dirigidos a famílias, grupos e redes que compartilham de abordagens conhecidas como pós-modernas da psicologia, em especial o construcionismo social: - uma teoria crítica que implica a postura de considerar todas as teorias como discursos criados historicamente, em diferentes sociedades, não falsos ou verdadeiros e sim mais ou menos úteis para circunstâncias diversas.

Essa premissa gera a compreensão de que a maneira de cada um estar no mundo é construída em relacionamentos significativos de sua vida, começando, via de regra, pelo relacionamento na família de origem o que pode ser generalizado pela afirmação de que o significado é constituído nas relações, na linguagem, que não representa, mas cria a realidade.

A comissão organizadora convidou desde o início terapeutas familiares ligados a outras instituições para a montagem do Programa, como Carla Guanaes-Lorenzi da USP – Ribeirão Preto, Emerson Rasera Jr. – Universidade Federal de Uberlândia; Marilene Grandesso – coordenadora do Instituto Interfaci; e até 2016 Marisa Japur, aposentada da USP – Ribeirão Preto e sócia-fundadora do Instituto ConversAções, também em RP, infelizmente falecida em abril do ano passado, e eu, inicialmente como membro do Instituto Familiae de São Paulo. No entanto, a partir de 2015, passo a ser a diretora do Noos e coordenadora da filial São Paulo, e desde 2018 – com o encerramento das atividades do Noos no Rio de Janeiro, coordenadora do Conselho Gestor da sede, transferida para São Paulo.

Também passamos a incluir a partir do segundo Construcionando convidados internacionais, como Kenett Gergen, John Shotter, Jim Wilson, Marcelo Pakman, e Karl Tomm. Nesse histórico procuramos aprimorar formatos do evento e desenhar o Programa de forma interativa entre palestrante e participantes, acompanhando assim os pressupostos do Construcionismo Social.

A última edição desse evento foi realizada em outubro de 2018. O tema do Construcionando VI foi Práticas Dialógicas em Situações Desafiadoras, e nosso palestrante convidado, Ottar Ness, da Universidade de Trondheim, na Noruega. Esse convidado discorreu sobre a superação relacional na saúde mental e abuso de drogas, e as práticas de ajuda em situações que consideramos desafiadoras à nossa capacidade de diálogo, focou na importância terapêutica da postura respeitosa do profissional, e isto vai desde como o cliente é atendido ao entrar no local, como o trabalho é apresentado, como as condições são negociadas, apontando para microagressões muitas vezes imperceptíveis seja pelo uso de jargão profissional incompreensível, modos de falar de um lugar de autoridade, falta de atenção a questões que do ponto de vista do profissional são irrelevantes.

Buscando coerência entre a proposta teórica e o processo do encontro, após cada fala do convidado, 3 membros da comissão organizadora faziam comentários e perguntas sobre o que havia chamado mais sua atenção, sempre em uma fala situada, isto é, como tinha ouvido desde suas práticas. A palavra voltava ao palestrante que refletia a partir do que tinha ouvido.

Após intervalo, os participantes dividiram-se em 10 grupos – facilitados por alguém previamente designado através do expediente simples de colocar bolinhas de 10 cores nos seus crachás e de 10 facilitadores. Nesses grupos, perguntas, comentários, relatos de experiências foram trocados – por 45 minutos – e cada grupo decidia quem e o que iria compartilhar em seguida com todos os participantes. Assim foram as duas manhãs.

A tarde de sexta apresentou dois trabalhos com portadores de esquizofrenia, colaborativos, dialógicos, que não configuram mais uma das terapias, que embora importantes, acabam por ocupar todo tempo do usuário dos serviços psiquiátricos focado na doença.

O Grupo de Acolhimento coordenado por profissionais do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, realizado na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia – ABRE, foi a primeira apresentação seguida de comentários de 3 membros da comissão organizadora e perguntas dos participantes (Miranda, Pimentel, & Villares, 2014).

A segunda apresentação no mesmo formato foi de um grupo coordenado por 3 alunos do 5º ano de psicologia da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto, realizado em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS com usuários desse serviço com diagnóstico de esquizofrenia denominado Grupo de Ouvidores de Vozes – com pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, que, mesmo atendidos e medicados, não deixam de ouvir vozes, fenômeno muito perturbador, que a psiquiatria tradicional procura fazer desaparecer, mas não ouve o como, quando e que características tem, dados específicos de cada pessoa (Corradi-Webster, Leão, & Rufato, 2018).

Os dois grupos apresentaram abordagens alternativas, caracterizadas pela escuta respeitosa e interessada, decorrentes da postura de “não saber”, isto é, não ouvir o cliente desde um lugar de saber teórico geral, a priori, sobre o significado singular do fenômeno para cada pessoa.

No sábado à tarde mais um trabalho cuidadoso em situação extremamente delicada de mulheres grávidas a partir de um estupro, que optam por não abortar nem ter o bebê e entregá-lo para adoção, duas situações previstas por lei e acompanhadas por psicólogos, foi apresentado. Na opção de tornar-se mãe desse bebê, entende-se que a mulher deve passar ao pré-natal comum. As ambiguidades, medos e fantasias assustadoras que surgem não encontram espaço de acolhimento. O grupo de acolhimento foi coordenado por psicóloga do programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (Costa & Lordello, 2017). Como os anteriores, uma prática corajosa e delicada, consistente com os princípios do construcionismo social, enfatizando a importância da pesquisa-ação como modalidade de atividade acadêmica de relevância social.

Os aprendizados aconteceram pela participação integral de todos – cabeça e coração. A experiência de aprender com pessoas convidadas a partir de seus artigos publicados na revista Nova Perspectiva Sistêmica demonstrou a necessidade de os profissionais da prática escreverem suas experiências articulando-as com seu conhecimento teórico, para que estas não fiquem reduzidas ao pequeno grupo que delas participou.

Esse evento apresentou o Noos para cerca de 150 profissionais de áreas afins como uma instituição representada pela frase “Acolhimento e Desenvolvimento para Todos”.

Por uma feliz coincidência, o Construcionando VI realizou-se a uma semana de uma eleição que traz preocupações a nós que pretendemos praticar e difundir acolhimento e inclusão, acendeu uma luz de esperança e coragem: é possível trabalhar na brecha do academicismo exagerado, do serviço estereotipado, da desconfiança no experimental.

Como disse um dos apresentadores: “atendemos na Faixa de Gaza”. Vamos alargá-la?

 

 

Referências

Miranda, A. M. P., Pimentel, F. A., &Villares, C. C. (2014). “Anjos de uma asa só”: processos de superação na esquizofrenia em um grupo de ajuda mútua. Nova Perspectiva Sistêmica,23(48), 64-79.

Corradi-Webster, C. M., Leão, E. A., & Rufato, L. S. (2018). Colaborando na trajetória de superação em saúde mental: grupo de ouvidores de vozes. Nova Perspectiva Sistêmica,27(61), 22-34.         [ Links ]

Costa, L. F. &Lordello, S. R. M. (2017). Intervenção grupal com mulheres cuja gravidez decorreu de violência sexual: uma leitura construcionista social. ova Perspectiva Sistêmica, 59, 52-70.

 

 

I Helena Maffei Cruz: Diretora do Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil. E-mail: hmcruz@noos.org.br

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