SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número65Teoria do posicionamento e terapia familiar: criando novas posições discursivas na relação entre mãe e filho índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.28 no.65 São Paulo set./dez. 2019

 

FRONTEIRAS

 

Participação humana: “ser” humano é o primeiro passo para “tornar-se” humano

 

Human participating: human "being" is the step for human "becoming" in the next step

 

 

Tom AndersenI

I Universidade de Tromsø, Noruega.

 

 


RESUMO

Nas palavras de seu autor, Tom Andersen, “ver, escutar, cheirar, saborear, sentir o toque na pele ou o impacto no corpo – enfim, o que sentimos em nossos corpos” – é o embasamento deste texto, inicialmente publicado como capítulo do livro Collaborative Therapy: Relationships and Conversations that make a Difference. Essas expressões são parte de vínculos de que participamos desde o momento do nascimento; expressões são manifestadas, recebidas, e afetam o receptor que retribui este afeto – o círculo da vida. O texto amplia a compreensão de linguagem para outros tipos de expressão e analisa a conversação como uma troca de múltiplas expressões em que quando um fala, o ouvinte não apenas ouve cada palavra, mas também vê como o falante recebe suas próprias palavras e o surgimento de novos significados. Uma mudança ou expansão das expressões motoras pode trazer um novo entendimento de uma situação difícil, ou uma nova ideia de como dar o próximo passo desse momento difícil. O texto é um convite para que terapeutas foquem a parte visível da realidade (expressões), e ofereçam as hipóteses sobre os sentimentos (invisíveis e móveis) como metáforas.

Palavras-chave: Expressões; Vínculos; Conversação.


ABSTRACT

In the words of its author, Tom Andersen, “seeing, hearing, smelling, tasting, feeling the touch on the skin or the impact on the body – what we feel in our bodies – is the basis of this text”, initially published as a chapter of Collaborative Therapy: Relationships and Conversations that make a Difference. These expressions are part of bonds we participate from the moment of our birth; expressions are manifested, received, and affect the receiver who reciprocates this affect – the circle of life. The text expands understanding of language to other types of expression and analyzes conversation as an exchange of multiple expressions in which when one speaks, the listener not only hears each word, but also sees how the speaker receives his own words and the emergence of new meanings. A change or expansion of motor or corporal expressions can bring a new understanding of a difficult situation, or a new idea of how to take the next step in this difficult time. The text is an invitation for therapists to focus on the visible part of reality (expressions), and to offer hypotheses about feelings (invisible and mobile) as metaphors.

Key Words: Expressions; Bonds; Conversation.


 

 

Realidade Sensorial

Ver, escutar, cheirar, saborear, sentir o toque na pele ou o impacto no corpo – enfim, o que sentimos “em nossos corpos” é o embasamento deste texto; em outras palavras, podemos sentir em nossos órgãos sensoriais tudo aquilo que está na superfície do corpo. Podemos analisar e pensar: “Claro, posso ver isso”. Esse “ver” “em nossos corpos” tem sido entendido por alguns sob circunstâncias específicas, por exemplo, Lev Vygotsky em seu estudo de crianças, e por meus colegas fisioterapeutas da Noruega durante suas atividades profissionais.

Duas observações do Philososophical Investigations (1953), de Wittgenstein, podem servir como bons lembretes:

Consideremos por exemplo os procedimentos do que chamamos “jogo”. O que é comum a todos eles? Não diga: “deve haver algo em comum, pois do contrário não seriam chamados jogos”; mas olhe e veja se há ou não algo em comum a todos eles. Pois se os observar não verá algo que é comum a todos, apenas similaridades, relações e toda uma série delas nelas próprias. Repetindo: não pense, apenas olhe! (p. 66)

Os aspectos mais importantes das coisas estão escondidos de nós devido a sua simplicidade e familiaridade. (Alguém é incapaz de perceber algo, pois este algo sempre esteve diante de seus olhos) O verdadeiro fundamento de sua investigação absolutamente não lhe ocorre. A menos que aquele fato tenha ocorrido anteriormente. E isto significa que não nos impressionamos por aquilo que, uma vez entendido, é o mais surpreendente e o mais poderoso. (p.129)

 

Contexto para este texto

 

Uma ausência de teorias e métodos

Teorias e métodos não serão mencionados neste texto; tenho alguns comentários a respeito do porquê de não o fazer, o mais longo será sobre teorias. Teoria vem do verbo grego theoreïn que significa “olhar” e do substantivo theors que são “representantes enviados a países estrangeiros para relatarem o que viram”. Teoria está estreitamente ligada a “ver”, e ver é ver o visível. Duas das três partes da realidade são visíveis, uma é imóvel e a outra é móvel. Um exemplo da primeira é uma montanha; da segunda um homem andando na montanha. A terceira parte da realidade é invisível; a solidão do homem que anda na montanha, por exemplo. Não podemos ver sua solidão, mas podemos sentir em nossos corpos como sua aparência e movimentos solitários nos impactam. Podemos ter suposições do que é a solidão, não teorias. Nesse texto suposição tem uma abrangência maior que teoria; na verdade suposição inclui teoria como sua parte racional, somada aos sentimentos. Portanto, a palavra suposições será empregada ao invés de teorias.

Tampouco faremos menção a métodos. O problema com os métodos é que eles são planejados em outro contexto e em um tempo distinto do que acontecem as práticas.

 

Suposições quanto à realidade

A realidade compreende três partes: (a) o visível, mas imóvel, por exemplo, um osso na mão; (b) o visível e móvel, por exemplo, a mão que em certo momento se abre e deixa ir e, em outro, fecha-se e segura; (c) o invisível, mas móvel, por exemplo, o aperto de mão.

Podemos explicar o que “é” o osso, mas só podemos explicar o que a mão “pode ser”. Com respeito ao aperto de mão, não sabemos o que ele é, mas isso não é tão importante uma vez que saibamos nos relacionar com ele. Alguns dirão: “Sei o que é um aperto de mão! É um encontro entre duas mãos”. Mas onde esse encontro acontece? Na pele? Nos toques entre os ossos? No olhar que acompanha o aperto de mãos?

As duas primeiras experiências podem ser descritas de modo que o pensamento possa compreendê-las, enquanto que a terceira só pode ser experienciada pelo corpo. A parte visível e imóvel da realidade será melhor descrita com o uso de números e substantivos, enquanto que as descrições da parte móvel da realidade se beneficiarão do uso dos verbos. Em nossas tentativas de descrever a realidade invisível e móvel, nos será de grande valia o uso de metáforas, que nos ajudam a sentir aquilo com que entramos em contato.

 

Jéssica e seus pais

June Carlsson, jornalista sueco, dirigiu um filme focalizando quinze fases, do nascimento até à puberdade, nas vidas das crianças. Uma voz feminina narra e comenta à medida que o filme se desenrola. As primeiras imagens são da recém-nascida Jéssica sendo segurada pelas mãos de alguém. Assim que Jéssica grita, ela é colocada em água morna e a gritaria para. Ela se mexe com movimentos lentos dentro da água. Ao ser retirada da água e envolta em uma toalha, o fotógrafo dá um zoom na cena. Vemos sua face bem de perto e a narradora diz: “Quando Jéssica nos olha, o amor aflora”. Então ela é pega e posta no colo da mãe. Agora, vemos Jéssica, sua mãe e seu pai juntos. A mãe sorri para Jéssica enquanto segura a bebê pronta para ajudá-la, mas deixando-a mover-se livremente. O pai está logo atrás, ao lado da esposa, e, com uma das mãos no rosto, enquanto olha intensamente para a filha com os olhos arregalados. Ele não consegue tirar os olhos dela. Com pequenos e suaves movimentos toca gentilmente o ombro direito da esposa com a sua mão direita. O milagre tem início. Apenas alguns minutos após o nascimento, Jéssica começa a tatear o peito da mãe e, depois de um tempinho, encontra um dos seios, logo depois acha o mamilo e começa a mamar. Enquanto se esforça para achar o peito materno, escutamos a mãe com uma voz encorajante e sorrindo dizer: “Acho que você foi um pouquinho longe”. Mas a mãe deixa a bebê achar o caminho sem assistência, e ela acaba conseguindo.

A filosofia simplesmente coloca tudo diante de nós, sem explicar ou deduzir nada. Uma vez que tudo está à vista não existe nada a explicar. Pois o que está escondido não tem interesse para nós. (Wittgenstein,1953, p. 126)

O que é aquilo que vemos? Às vezes vemos o que estamos acostumados a ver, outras o que somos programados a ver, podemos ainda ver o que nos dizem para ver e assim por diante. Poderemos ver as diferentes partes do acontecimento acima de acordo com a nossa perspectiva particular. Alguns podem ser atraídos para o pai que está ao fundo. Seu olhar para sua filha é tão intenso e tem tanto carinho que poderíamos nos perguntar: “Se os olhos dele falassem, o que eles diriam?” Provavelmente diriam: “Jéssica, obrigado por ter vindo! Você me fez tão feliz! Você é um presentão para nós! Já imagino o que vamos fazer juntos!” E o que diria sua mão que toca o ombro direito da esposa? Talvez: “Minha querida esposa, eu sou tão grato a você! Você é a mulher mais fantástica do mundo! Pode ter certeza que eu vou proteger o relacionamento entre você e a Jéssica”.

 

Vínculos e trocas

Vejo que o olhar do pai é parte de um vínculo relacional com Jéssica, assim como a presença de Jéssica é parte deste mesmo vínculo. A mão que toca a esposa é parte de um vínculo com ela, e as palavras de encorajamento da mãe para a filha, que ele também ouve, são parte desse vínculo. As próprias palavras da mãe também são parte do vínculo dela com a Jéssica, assim como o corpo tateante da bebê sentido pelo corpo da mãe são ambos parte desse mesmo vínculo. O grito da Jéssica cria um vínculo que os demais respondem ao colocá-la em água morna a fim de confortá-la. Seu grito é a expressão do sentimento da “fria realidade” e os demais respondem mergulhando-a na água morna. Na verdade, a expressão de Jéssica é tanto uma resposta quanto uma expectativa a ser atendida. Este é o crucial círculo da vida sendo encenado bem diante de nós!

Podemos ver que tanto Jéssica quanto todos nós já nascemos com vínculos, e permaneceremos neles pelo resto de nossas vidas. Há vários tipos de vínculos na vida: apertos de mão, conversas, abraços, permanecer em silêncio ao lado de alguém, escrever cartas etc. Participamos de vínculos o tempo todo. Expressamo-nos através de vínculos com os outros à medida que eles recebem nossas expressões e são tocados e movidos por elas. Isto é o que acontece com as outras pessoas presentes na cena quando são tocadas e movidas pela experiência da Jéssica; elas respondem às expressões de Jéssica e dos demais. Essas expressões contribuem para conectar a todos. E eu acredito que esse círculo – em que expressões são manifestadas, recebidas, afetando o receptor que retribui este afeto – é o círculo básico da vida.

 

Respiração

Quando Jéssica grita, ela está expirando. Antes da primeira expiração, existiu uma inspiração. É o que fazemos primeiro na vida, nós inspiramos. Em norueguês, temos duas palavras para a respiração: o respirar “comum” (puste) e o mais “sagrado” (ǻnde), que em português significaria “inspirar ou receber o espírito”.

O primeiro ato que realizamos na vida é “inspirar”, ou deixar vir o espírito; nosso último ato é “expirar”, ou deixar ir o espírito. Aqueles movimentos no corpo que fazem parte da respiração são extensões dos movimentos que já foram feitos pelo bebê ainda no útero materno. Os movimentos respiratórios de uma pessoa seguem um padrão que é tão individual quanto as impressões digitais; esses movimentos podem ser projetados como uma curva, e a curva da respiração de uma pessoa é única, singular, diferente das curvas das outras pessoas. O olfato de Jéssica que a leva ao peito da mãe é acompanhado pela inspiração, o mesmo ocorrendo com o ato de sugar.

Mesmo a deglutição acompanha a respiração, e se pode engolir tanto na inspiração quanto na expiração. Mas muito mais coisas ocorrem no corpo se engolimos na expiração. Experimente! Inspire profundamente, comece a expirar, tome um gole de água e engula! Ao fazer isso, todo o ar em seu peito é esvaziado. Depois disso acontece uma grande inspiração seguida de um suspiro. Com este suspiro boa parte da tensão no corpo é aliviada, “tudo está à vista não existe nada a explicar”. Também podemos ver que, bem diante de nossos olhos, nossas emoções saem com a expiração. Choramos ao expirar, gritamos de raiva ao expirar, rimos de alegria ao expirar, sussurramos de medo ao expirar etc. Todas as vezes que expressamos emoções ao expirar, parte da tensão em nós desaparece. Soluçar é a melhor coisa; dar risada também é bom – para o corpo.

Este ciclo respiratório inspiração-expiração segue sem parar. Os fisioterapeutas são capazes de ver duas pausas: uma, mais curta, entre o final da inspiração e o começo da expiração; outra mais longa, depois da expiração e antes início da inspiração. De vez em quando, algumas pessoas ficam tão ansiosas para “se sentirem inspiradas”, desejando absorver impressões, que as pausam se chocam. Outras vezes, a ansiedade em absorver é tanta que não conseguem deixar sair o ar antes que mais ar seja inspirado. A pessoa se torna “super inspirada”.

 

Vozes sociais

Por volta da quarta semana de vida, os bebês fazem um som que os pais são capazes de receber e retornar. Este som é uma conexão forte pela voz, e esta voz é o começo da voz social da criança, ou melhor, das vozes sociais, pois temos muitas vozes sociais. Na semente de um ser humano existe uma atividade de imitação que se desenvolve muito precocemente. A criança brinca e imita os sons que são trocados com as outras pessoas e, através deste jogo, ela aumenta seu repertório de sons. Um dia aparece uma palavra e mais palavras logo virão. Vygotsky nos lembra que estas primeiras palavras são sons imitados; creio que pode ser difícil para o bebê distinguir entre o som (a palavra que este representa) e ele próprio.

 

Linguagem como um dom

Vygotsky – que dizia que as palavras eram dadas às crianças pelos pais ou por outras pessoas, que, por sua vez, as receberam de terceiros – via a linguagem como um dom da cultura ou da sociedade à criança. Para ele a linguagem vinha de fora, ideia oposta à de Jean Piaget, que acreditava que a linguagem crescia a partir de dentro, tal como uma semente se desenvolve em flor.

 

Fala egocêntrica e fala interna

No momento em que a criança já conhece muitas palavras e pode formar frases, Vygotsky chama nossa atenção para quando ela está sozinha, e começa a brincar e a falar consigo mesma.

Tanto Vygotsky quanto Piaget chamam esta conversa de fala egocêntrica. Para Vygotsky este é um jogo de necessidade, nem sempre de alegria. Através desse jogo, a criança implementa suas regras de vida. Um exemplo da minha cidade, Tromsø, pode ilustrar esse ponto. Uma jovem mãe foi a uma loja com sua filha de quatro anos de idade. O proprietário pôs uma pilha de chocolates ao lado do caixa, quando a menina os viu, disse: “Mãe, posso comer um chocolate?” A mãe respondeu: “Não, você não pode!” A criança replicou: “Mas mãe, eu quero um chocolate”. A mãe calma, mas firme disse: “Não pode!” A menina começou a chorar e toda a loja olhou para as duas. “Eu preciso de um chocolate!” A mãe falou: “Você tem que esperar até sábado. Daí, você poderá comer um chocolate enquanto assiste o programa infantil na TV!”. Saíram da loja com a criança ainda chorando. Quando chegaram em casa, a menina foi brincar com sua boneca. De repente, ela fez sua boneca dizer bem alto: “Mãe, posso comer um chocolate?” “Não”, respondeu a menina, “você não pode”. Ela fingiu que a boneca estava chorando e aumentou o volume: “Mas mãe, eu quero um chocolate”. A menininha respondeu com uma voz calma, mas firme: “Você tem que esperar até sábado. Daí, você poderá comer um chocolate enquanto assiste o programa infantil na TV!”

Aproximadamente quando a criança chega à idade escolar, o jogo da fala egocêntrica desaparece e Vygotsky diz que a criança desenvolveu um terceiro tipo de fala, a conversa interior. Nessa conversa interior existem muitas vozes internas, tanto que Vygotsky salienta: “Somos as vozes internas que nos povoam”. A vida interior de uma pessoa é, de acordo com as suposições de Vygotsky, composta de vozes interiores em movimento, em contraste com as suposições de Freud que considera a vida interior como composta por “coisas” mais estruturadas. Peggy Penn (1994, 2001) é uma terapeuta que tem prestado muita atenção às vozes internas. Ela observou que temos muitas delas e que elas podem se opor uma à outra enquanto falam. Dificuldades podem facilmente aparecer quando uma delas se torna dominante e marginaliza as demais.

 

Colaboração com os fisioterapeutas

A colaboração durante anos com fisioterapeutas, especialmente Aadel Bülow-Hansen e Gudrun Øvreberg, ambas terapeutas norueguesas, exerceu grande influência no desenvolvimento deste texto (Ianssen, 1997; Øvreberg, 1986;). O encontro com essas duas mulheres teve grande impacto em minha visão do corpo; primeiramente, os músculos tem duas funções, a saber, fazer e parar movimentos; em segundo lugar, todos os movimentos estão relacionados aos movimentos respiratórios, os quais são os mais importantes no corpo. Se tensionamos alguma parte no corpo – por exemplo, tensionar a língua contra os dentes da frente – notaremos que os movimentos respiratórios no abdômen param. Se paramos de pressionar a língua, a respiração abdominal imediatamente é liberada de novo.

Temos músculos cuja função é flexionar, por exemplo, aqueles da parte posterior dos joelhos e os da parte anterior do quadril; outros de alongar, como os da frente do joelho e os dos lados dos quadris. Quando todos esses músculos de funções opostas estão em atividade ao mesmo tempo, o corpo está em equilíbrio, ou seja, podemos nos levantar em equilíbrio. Em certas situações, como quando sentimos medo, tendemos a “nos controlar”, então os músculos de flexão dominam os de alongar e todo o corpo tensiona-se. Simultaneamente, a respiração é restringida.

Aadel Bülow-Hansen morreu em 2001, mas Gudrun Øvreberg está em plena atividade. Ao falar delas aqui, escolho usar o tempo presente por que, embora Bülow-Hansen tenha falecido, sinto como se ainda estivesse presente.

Músculos tensos se tornam duros e doloridos; Aadel e Gudrun massageiam e apertam o músculo... o que produz dor... influencia o alongamento... que estimula a inspiração... que estimula o alongamento... que estimula mais inspiração ... que estimula o alongamento... que estimula mais inspiração... etc., até que o peito esteja cheio de ar. Quando o ar é exalado, parte da tensão no corpo desaparece.

Assim, são os movimentos respiratórios que fazem colocar para fora a tensão muscular, não a massagem. Nesse momento, as duas fisioterapeutas encorajam a pessoa a “deixar o ar entrar”. É como se dissessem: “deixe a vida entrar”. Elas acompanham atentamente como os movimentos respiratórios respondem à massagem. Ficam satisfeitas ao perceber que o esforço respiratório aumenta e o ar é expirado. Se as mãos fizerem movimentos muito leves, não haverá nenhuma resposta. Por outro lado, se as mãos fizerem movimentos abruptos, muito fortes ou pressionarem por muito tempo, pode haver uma grande inspiração, mas esta não é seguida por qualquer expiração; a respiração para. Se isto acontecer, elas imediatamente afrouxam as mãos. Tais observações foram formuladas em princípios que transportei diretamente para meu modo de fazer psicoterapia. Se as nossas contribuições/intervenções estão muito próximas da maneira que nossos clientes falam, pouca coisa acontece. Quando nossas contribuições são “adequadamente” inusuais, a conversa ganha vida. Mas, se nossas contribuições forem inusuais demais – por exemplo, se assustam os clientes ou criam dor – o fluxo da conversa se interrompe. Devemos, portanto, observar cuidadosamente as maneiras de participar na conversa com nossos clientes para ver se o que dizemos está sendo útil ou não, ou seja, como eles respondem ao que dizemos.

Gundrun e eu escrevemos um livro sobre o trabalho de Aadel. Nós a filmamos em ação e depois transcrevemos tudo o que aconteceu durante os atendimentos a seus clientes (Øvreberg, 1986). Lhe enviamos o manuscrito e ela o leu com atenção, frequentemente expressando surpresa: “É muito interessante ler isso, porque não teria sido capaz de descrever o que venho fazendo”. Suas palavras nos lembraram as de Wittgenstein (1953): “Não pense, apenas olhe!” (p. 66).

Os olhos e as mãos de Aadel trabalhavam bem juntos e parecia que se saíam bem sem a ajuda dos seus pensamentos. Aadel tinha grande sensibilidade para estabelecer conexões, como o corpo da pessoa com quem estava trabalhando respondia às suas mãos. Outra citação de Wittgenstein (1953, p. 109) parece se encaixar bem com o trabalho que ela fazia: “Não devemos adiantar qualquer tipo de teoria. Não deve haver nada de hipotético em nossas considerações. Devemos eliminar toda explicação e apenas a descrição deve tomar o seu lugar”.

Aadel e o famoso psiquiatra norueguês Trygve Braatøy tiveram frutíferos anos de colaboração antes da morte dele, em 1953. Ambos se interessavam pelas funções da respiração e, às vezes, Trygve pedia a Aadel que pesquisasse alguma coisa em algum cliente e dizia: “Volte e me diga o que aconteceu”. Outras vezes dizia: “Vou me deitar e gostaria que fizesse isso ou aquilo em meu corpo, e vou te falar o que acontece”. Era um tipo de pesquisa fascinante e acredito que Wittgenstein (1953) a teria elogiado: “Alguém é incapaz de perceber algo, pois este algo sempre esteve diante de seus olhos” (p. 129).

 

Sobre a Linguagem

 

Dez suposições sobre linguagem e significado

O que escrevo aqui está muito condensado se comparado às fontes que enumero a seguir: Ludwig Wittgenstein (1953, 1980; Grayling, 1988; Gergen, 1994; Shotter, 1993, 1996; von Wright, 1990, 1994), Lev Vygotsky (Morson, 1986; Shotter, 1993, 1996 Vygotsky, 1998), Jacques Derrida (Sampson, 1989), Mikhail Bakhtin (Bakhtin, 1993; Morson 1986; Shotter, 1993, 1996, 2004, 2005) e Harold (Harry) Goolishian (Anderson, 1995). As fontes também incluem minhas experiências ao colocar essas suposições em prática. A participação em inúmeros processos reflexivos em diferentes circunstâncias tem sido significativa na formulação dessas ideias. Esses processos são conversas abertas nas quais perguntas e respostas emergem de todas as perspectivas que estão presentes (Andersen, 1995).

  1. Linguagem é aqui definida como todas as expressões que são de grande significância na perspectiva comunal acima mencionada. Há muitos tipos de expressões: falar, escrever, pintar, dançar, cantar, apontar, chorar, rir, gritar, bater... todas elas são atividades corporais. Quando estas expressões corporais ocorrem na presença de outras pessoas, a linguagem se torna uma atividade social. Nossas expressões são convites sociais para participar no vínculo com os outros.
  2. Criamos significado através das expressões. Se um tipo de expressão – falar, por exemplo – não está disponível, um outro tipo de expressão poderia criar o significado – pintar, por exemplo.
  3. A expressão vem primeiro e só depois o significado é criado. Harry Goolishian costumava dizer: “Não sabemos o que pensamos até depois de o termos falado”.
  4. O significado está na expressão, não sob ou por trás dela. Os significados nas expressões – palavras, por exemplo – são muito pessoais e algumas palavras tanto nos trarão de volta como nos ajudarão a experimentar novamente algo que já havíamos experimentado anteriormente.
  5. As expressões são informativas.Elas dizem algo sobre nós para os outros e para nós mesmos. Hoje, penso que uma pessoa que fala em voz alta fala antes de tudo a ela mesma. A pausa que segue uma fala – quando a pessoa pensa no que acabou de dizer a ela mesma – é uma pausa extremamente importante que não devemos perturbar. Como as palavras que eu expresso estão conectadas à minha compreensão, posso estar escutando atentamente as palavras que acabei de dizer para investigar minha própria compreensão. As expressões são também formativas; tornamo-nos quem somos quando podemos nos expressar enquanto o fazemos. Seria mais apropriado dizer: “O vovô sempre fazia tudo com gentileza, então ele se tornou uma pessoa gentil o tempo todo”, ao invés de dizer “Vovô era gentil” ou “Vovô tinha tanta gentileza!”. Ao usar o verbo “ser” ou “ter” sem incluir tempo e contexto podemos nos enganar com as nossas próprias palavras e sermos levados a acreditar que descrevemos algo estático: “O vovô ‘é’ gentil”, “Ele ‘tem’ aquele caráter”, “Vovô ‘tem’ tanta gentileza” ou “Ele ‘tem’ uma personalidade gentil”. Quando falamos desta maneira, podemos facilmente nos encher de ideias tais como a que um ser humano possa “ter” caráter e personalidade.
  6. As expressões, tanto nas conversas pessoais ou internas quanto nas conversações sociais ou externas, são acompanhadas de movimentos. Os movimentos que acompanham as conversas internas são pequenos e nuançados; os que acompanham as conversas externas são maiores, como o acenar com as mãos. Algumas vezes, terapeutas e pesquisadores se confundem ao dizer que o que foi dito “não bate com linguagem corporal”. Por exemplo, quando alguém com uma aparência triste diz “eu estou tão feliz”, vejo que as palavras “eu estou tão feliz” são um convite para a criação de um vínculo com o outro; a aparência triste pertence à conversa interna, supostamente triste, a qual a pessoa muito provavelmente não está  interessada em compartilhar. Assim, enquanto a pessoa não desejar falar a partir de sua conversa interna, eu educadamente “não vejo” como a conversa se expressa corporalmente. No mesmo sentido, deveria ser um desafio contínuo para os terapeutas e pesquisadores avaliarem quais expressões convidam à participação da pessoa no vínculo social e quais não. Laurence Singh, psicoterapeuta que participou de um workshop que dei em Johanesburgo, em março de 2001, me ofereceu a expressão “convite social” para descrever aquelas expressões que contribuem para o vínculo social, diferentemente daquelas que são pessoais e não são destinadas ao vínculo social.
  7. Os movimentos são pessoais. Os movimentos que acompanham as expressões são pessoais, incluindo os movimentos respiratórios que formam e trazem à luz as vozes internas e externas. A respiração é tão pessoal como as impressões digitais. Como diz Vygotsky: “Somos as vozes que nos habitam” (Morson, 1986, p. 8). Talvez possamos variar para “somos os movimentos que formam e trazem à luz as vozes que nos habitam”.
  8. Tudo está em mutação. Em sua época, Heráclito dizia: “Tudo está em mutação, mas a mutação ocorre de acordo com uma lei imutável (logos) que abarca uma cooperação entre os opostos, todavia tal cooperação entre forças distintas engendra um todo harmônico” (Skirkbekk, 1980, p. 29). Talvez se possa ousar fazer algumas alterações: “Uma pessoa está em movimento, mas o movimento acontece...”, ou mesmo “Uma pessoa é movimento, mas...”. Quando nos levantamos, levantamo-nos em equilíbrio; os músculos dos joelhos e quadris que flexionam estão ativos “ao mesmo tempo” que os músculos que alongam os joelhos e os quadris.
  9. Quando alguém fala, diz algo para o outro e para si. Hoje em dia, acredito que a pessoa mais importante com quem falo seja eu mesmo. Como mencionado acima, as expressões são formativas e formadoras de nosso entendimento. Wittgenstein e George Henrik von Wright escreveram que nossa fala engana nosso entendimento. Não somos capazes de “não” sermos enganados pela nossa fala. Quando pertencemos a uma comunidade qualquer – uma comunidade profissional, por exemplo – temos que falar a linguagem daquela comunidade. O indivíduo tem que estar disposto a ser ocupado por aquela linguagem se quiser continuar pertencendo à mesma. Se aquela linguagem usa os verbos “ser” e “ter” sem indicação de tempo e contexto, alguém pode facilmente entender que os seres humanos são estáticos, como dissemos anteriormente. Diferentes tipos de linguagem, como a linguagem competitiva, de gerenciamento estratégico, patológica, etc., todas têm consequências, tanto para os que são descritos quanto para os que descrevem.
  10. Os significados são criados por problemas. Em 1985, Harry Goolishian lançou o conceito de “sistema criado pelo problema”, dizendo que uma situação problemática chama rapidamente a atenção de muitas pessoas. Essas pessoas geralmente tentam dar um sentido à situação através de perguntas como: “Como posso entender isso?” ou “O que devo fazer?”. Se duas ou mais pessoas dão o mesmo sentido a uma questão, então a conversa entre elas facilmente as fará repetir e confirmar esse significado, pouca novidade é trazida à tona. Mas, se tiverem significados mais ou menos diferentes e forem capazes de ouvir umas às outras, então uma conversa entre elas facilmente criará significados novos e úteis. Se duas ou mais pessoas tiverem significados bem diferentes umas das outras, então poderão ter dificuldade de se ouvirem, inclusive poderão interromper e corrigir umas às outras. Quando isso acontece, geralmente a conversa se desagrega; se isso acontecer, um grande problema é criado.

 

Figura 1. Duas pessoas conversando

 

Esboço de uma conversa

Na figura 1 a pessoa à esquerda está falando e a pessoa à direita está ouvindo. O ouvinte não apenas ouve cada palavra, mas também vê como o falante recebe suas próprias palavras. O ouvinte notará que algumas das palavras ditas pelo falante não são apenas recebidas e ouvidas, mas elas também movem o falante. (Isso é ilustrado na figura pela linha que sai do ouvido do falante e segue para o seu coração). Esses movimentos do falante podem ser vistos ou ouvidos. Às vezes uma sombra cruza seu rosto, as mãos se fecham ou se abrem, tosse, uma lágrima aparece ou a pessoa faz uma pausa. O ouvinte entende que as palavras ditas carregam um significado que faz com que o falante experimente novamente algo que já havia experimentado anteriormente, sem entender o que é. Geralmente, o ouvinte se deixa levar e fica tocado ao notar que o falante também está comovido. (Isso é percebido pela linha que segue em direção ao coração). Esses momentos em que ambos são movidos, são bons momentos para se fazer uma pergunta ou comentário, os quais manterão o movimento do falante e o movimento comum entre ambos fluindo. Uma mudança ou expansão das expressões motoras pode trazer um novo entendimento de uma situação difícil, ou uma nova ideia de como dar o próximo passo desse momento difícil para o próximo, esperamos menos difícil. (Vide figura1)

 

Três tipos de pausa

Temos que prestar atenção a três tipos de pausas: (a) aquela que segue uma expiração e vem antes do início da próxima inspiração (se nós, como terapeutas, vamos devagar e não apressamos o cliente para encontrar respostas, podemos contribuir para que a próxima inspiração ocorra espontaneamente, não pela vontade ou força); (b) a que vem após a pessoa ter falado, quando ela pensa no que acabou de dizer; e (c) a pausa que surge quando ocorre uma conversa reflexiva, quando o que foi dito torna a ser dito uma vez mais e, portanto, pensado uma vez mais, talvez mesmo de uma nova forma.

Com a ajuda dessas palavras, fazemos uma pausa neste artigo.

 

 

Referências

Andersen, T. (1995). Acts of forming and informing. In S. Friedman (Ed.), The reflecting team in action (pp. 11-37). New York: Guildford Press.         [ Links ]

Anderson, H. (1995). Fran paverkant till medverkan. Stockolm: Mareld forlag.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1993). Towards a philosophy of the act (translation and notes by V. Lianpov & M. Holquist, Ed.). Austin, TX: University of Texas Press.

Gergen, K. J. (1994). Toward transformation in social knowledge (2nd ed.). London: Sage.         [ Links ]

Grayling, A.C. (1988). Wittgenstein. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Ianssen, B. (1997). Bevegelse, liv og forandring. Oslo: Cappelen Akademiske forlag.         [ Links ]

Kolstad, A. (1995). I sporet av det uendelige. Em debattbok om Emmanuel Levinas. Oslo: H. Aschehougs forlag.         [ Links ]

Morson, A. C. (1986). Bakhtin: Essay and dialogues on his work. Chicago, IL: The University of Chicago Press.

Øvreberg, G. (1986). Aadel Bülow-Hansen’s fysioterapi. Oslo: I kommisjon med Norli forlag.

Penn, P. (1994). Creating a participant text: Writing, multiple voices, narrative multiplicity. Family Process, 33(3), 217-232.         [ Links ]

Penn, P. (2001). Chronic illness: Trauma, language and writing: Breaking the silence. FamilyProcess, 40(1), 33-52.         [ Links ]

Sampson, E. E. (1989). The deconstruction of the self. In J. Shotter (Ed.), Texts of identity (pp. 11-19). London: Sage.         [ Links ]

Seikkula, J. (1995). Treating psychosis by means of open dialogue. In S. Friedman (Ed.), The reflecting team in action (pp. 62-80). New York: Guildford Press.         [ Links ]

Seikkula, J., Alakare, B., & Asltonen, J. (2001a). Open dialogue in psychosis I: An introduction and case illustration. Journal of Constructivist Psychology, 14(4), 247-266.         [ Links ]

Seikkula, J., Alakare, B., & Asltonen, J. (2001b). Open dialogue in psychosis II: A comparison of good and poor outcome. Journal of Constructivist Psychology, 14(4), 267-284.         [ Links ]

Seikkula, J., Alakare, B., & Asltonen, J. (2001c). El enfoque del dialogo abierto. Princípios y resultados de investigacion sobre um primer episodio psicótico. Sistemas Familiares, 17, 75-87.         [ Links ]

Seikkula, J., Alakare, B., & Haarakangas, K. (2001). When clients are diagnosed “Schizophrenic”. In B. Duncan & J. Sparks (Eds.), Heroic clients, heroic agencies: Partnership for change (pp. 62-80). Ft. Lauderdale, FL: Nova Shouthern University Press.

Shotter, J. (1993). Conversational realities. New York: Sage.         [ Links ]

Shotter, J. (1996, June). Some useful quotations from Wittgenstein, Vygotsky, Bakhtin and Volosinov. In Paper presented at the Sulitjelma Conference in North Norway,         [ Links ] Tromsø.

Shotter, J. (2004). On the edge of social constructionism: “Withness” thinking versus “aboutness” thinking. London: KCC Foundation.

Shotter, J. (2005). Wittgenstein in practice: His philosophy of beginnings, and beginnings, and beginnings. London: KCC Foundation.         [ Links ]

Skirbekk, G. (1980). Filosofihistorie I. Oslo: Universitetsforlaget.         [ Links ]

Von Wright, G. H. (1990). Wittgenstein and the twentieth century. In L. Haaparanta et al. (Eds.), Language, knowledge and intentionality (pp. 83-102). Helsingfors: Acta Philosophica Fennica.         [ Links ]

Vygotsky, L. (1988) Thought and language. Cambridge, MA: MIT Press.

Wittgenstein, L. (1953). Philosophical investigations. Oxford: Blackwell.         [ Links ]

Wittgenstein, L. (1980). Culture and value. Oxford: Blackwell.         [ Links ]

 

 

* Tradução: Carlos Henrique Lucci; Revisão: Leonora Corsini

 

 

I Tom Andersen foi professor de psiquiatria social no Instituto de Medicina Comunitária da Universidade de Tromsø, na Noruega, e iniciou os processos reflexivos nas práticas terapêuticas. Ele é o autor de Processos reflexivos, 2002, editado pelo Instituto Noos. Tom morreu na primavera de 2007.

Creative Commons License