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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v29i66.516 

ARTIGOS

 

Repensando práticas: delegacias da mulher enquanto espaço dialógico de prevenção à violência conjugal

 

Repensar las prácticas: las comisarías de mujeres como espacio dialógico para la prevención de la violencia conjugal

 

Rethinking practices: women's police station as a dialogic space for preventing conjugal violence

 

 

Camila Maffioleti CavalerI, Samira Mafioletti MacariniII

I Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil.

II Academia de Polícia Civil de Santa Catarina - ACADEPOL, Florianópolis/SC, Brasil.

 

 


RESUMO

Neste estudo, trata-se de um ensaio teórico cujo objetivo é discutir o papel das delegacias especializadas de atendimento à mulher (DMs), a partir do olhar da Psicologia com enfoque de gênero, reflexivo e sistêmico. As DMs desenvolvem procedimentos relativos à apuração de infrações cometidas mediante violência doméstica ou familiar, nos termos da Lei 11.340/2006. No entanto, neste artigo busca-se enfatizar as DMs também como um espaço de fortalecimento das medidas integradas de prevenção a esse tipo de violência, trazendo foco para o eixo preventivo instituído pela referida lei. Para tanto, foi discutida a complexidade do fenômeno da violência conjugal, bem como apresentadas algumas possibilidades de atuação policial, baseadas na segurança cidadã, que promovam discussões sobre a complexidade da violência conjugal e os processos culturais que a naturalizam. Entende-se, ainda, que estes serviços só podem ser oferecidos a partir da capacitação continuada dos/as policiais que atuam nas DMs.

Palavras-chave: Delegacias da Mulher; Violência conjugal; Prevenção da violência.


RESUMEN

Este estudio es un ensayo teórico que tuvo como objetivo discutir el papel de las estaciones de policía especializadas para el cuidado de las mujeres (DM), desde la perspectiva de la psicología con un enfoque de género, reflexivo y sistémico. Las DM desarrollam los procedimientos legales relacionados con la investigación de infracciones cometidas a través de la violencia doméstica o familiar, bajo los términos de la Ley 11.340/2006. Sin embargo, este artículo busca enfatizar las DMs también como un espacio para fortalecer las medidas integradas para prevenir este tipo de violencia, enfocándose en el eje preventivo establecido por esa ley. Por lo tanto, se discutió la complejidad del fenómeno de la violencia conyugal, así como algunas posibilidades de acción policial, basadas en la seguridad ciudadana, que promueven discusiones sobre la complejidad de la violencia conyugal y los procesos culturales que la naturalizan. También se entiende que estos servicios solo se pueden ofrecer en base a la capacitación continua de los oficiales de policía que trabajan en las DMs.

Palabras clave: Policía de mujeres; Violencia conyugal; Prevención de la violencia.


ABSTRACT

This study, a theoretical essay, aimed to discuss the role of women police stations (DMs), from the perspective of psychology with a gender, reflective and systemic approach. The DMs develop legal procedures for investigating violations committed through domestic or family violence, under the terms of the 11.340/2006 Law. However, this article also emphasizes the DMs as a space for strengthening integrated preventing actions of this type of violence, focusing on the preventive axis established by the law. Therefore, the complexity of the phenomenon of conjugal violence was discussed, and some possibilities for police action were presented, based on citizen security, that promote discussions about the complexity of conjugal violence and the cultural processes that naturalize it. It is also understood that these services can only be offered based on the continuous training of police officers working in the DMs.

Key Words: Women's Police Station; Marital violence; Prevention of violence.


 

 

Introdução

Para pensar o início das políticas de segurança e proteção à mulher no Brasil, é preciso, primariamente, uma contextualização do cenário político que se delineava no país. Depois de longos vinte anos de ditadura militar, em que o norte das políticas de segurança era a defesa da soberania nacional, na década 1980, o Brasil passou por um período de redemocratização e lutas políticas. É também um momento de intensa luta dos movimentos feministas em prol do enfrentamento da violência contra a mulher e da impunidade dos assassinatos conjugais. A atenção jurídica passa, então, a se voltar para o desejo de um Estado democrático que garanta o direito e a cidadania de toda a população. É nesse delineamento político que nasce a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) no Brasil, criada em agosto de 1985 no estado de São Paulo (Pasinato & Santos, 2008).

Desde então (Pasinato & Santos, 2008), essas Delegacias tornaram-se o principal serviço destinado à apuração de infrações cometidas mediante violência doméstica ou familiar contra a mulher (Campos, 2015). No Estado de Santa Catarina, onde o presente estudo foi desenvolvido, a primeira delegacia de atendimento à mulher foi criada já no ano de 1985. Apesar de este artigo não se tratar de um relato de experiência, traremos como exemplo o trabalho desenvolvido em SC por considerar o pioneirismo da Polícia Civil catarinense ao adotar o cargo de psicólogo policial civil em seu quadro de colaboradores efetivos (Nobrega, Siqueira, Turra, Beiras, & Gomes, 2018).

Ao adentrar este campo, a psicologia traz à instituição da Polícia Civil um novo olhar que busca a complexificação das relações violentas, em uma tentativa de abandonar resoluções simplistas para conflitos substanciais. Adotando perspectivas de trabalho prático, pautadas em epistemologias pós-modernas, os profissionais que atuam em delegacias passam a problematizar estereótipos de gêneros e a abandonar posturas colonizatórias (Lugones, 2014) que ditam verdades sobre modos de se relacionar. Nesse aspecto, há a adoção, por parte dos profissionais, de uma perspectiva construcionista, que reconhece a identidade como fragmentada e plural, entendendo que as relações estabelecidas em determinado contexto histórico estão atreladas às possibilidades discursivas dos sujeitos (Nogueira, 2001a).

No que se refere à violência contra a mulher, desde 2006, com a promulgação da Lei Maria da Penha, tem-se promovido novos sentidos em torno dessa problemática. Nesse cenário, a violência doméstica e familiar contra a mulher ganha maior atenção jurídica –saindo do domínio privado para adentrar o domínio público. Por exemplo, a aplicação da Lei possibilita que o autor da violência possa ser encarcerado por esse ato, bem como que a mulher solicite medidas protetivas de urgência. Compete às DMs a instauração dos inquéritos policiais para comprovar – ou não – a materialidade e autoria do crime, servindo como um instrumento para sustentação da queixa e aplicação da Lei (Norma Técnica, 2010).

Considera-se violência doméstica e familiar contra a mulher, a partir da referida Lei, qualquer ação ou omissão baseada no gênero e praticada no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto; que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Nesta, a violência é dividida em cinco categorias: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (Lei n. 11.340, 2006).

Por entender que a violência conjugal possui particularidades em relação às demais violências domésticas e familiares, como a violência dos pais/mães para com os filhos, dos filhos/as com as mães ou, ainda, a violência praticada contra idosos/as; este estudo abordará o trabalho desenvolvido nas DMs com base no enfoque na violência conjugal. Conforme Batista, Medeiros e Macarini (2017), define-se como violência conjugal o fenômeno que engloba agressões que ocorrem no contexto das relações afetivas.

Há uma evidente relevância em tratar a violência contra a mulher pela ótica do casal. Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), 88,8% dos feminicídios têm como autor o companheiro ou ex-companheiro da vítima. Além disso, a cada dois minutos há um registro de violência doméstica, o que chega a somar mais de 260 mil casos de lesão corporal em um ano. Ainda, segundo o “Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, os crimes caracterizados como feminicídio no ano de 2013 corresponderam a 50,3% de todos os homicídios femininos do país (Waiselfisz, 2015).

Esses alarmantes dados deixam implícito que essas mulheres podem estar nos consultórios psicoterapêuticos, nas empresas, nos serviços de saúde e assistência, antes de chegarem ao setor de segurança pública. Logo, é preciso que os profissionais que atuam nestes espaços conheçam essa realidade para que possam, junto de sua clientela, coconstruir alternativas para o enfrentamento da violência conjugal. Afinal, muitos relacionamentos violentos são permeados por dependência emocional, privação financeira, cuidados dos filhos, entre outros fatores que possam estar levando a mulher a permanecer na situação de violência.

Segato (2003) aponta que, apesar de conhecermos essas estatísticas, quando o cenário é o ambiente doméstico, poucos resultados têm sido efetivamente alcançados para a diminuição da violência conjugal. Um estudo realizado pelo IPEA no ano de 2013, por exemplo, constatou que houve pouco ou nenhum impacto da Lei Maria da Penha na redução do número de feminicídios. Comparando os períodos anteriores e posteriores à vigência da Lei, observou-se um sutil decréscimo no ano de 2007, ano imediatamente posterior à sua promulgação, e logo depois o retorno aos patamares registrados antes deste período (Garcia, Freitas, Silva, & Hofelmann, 2013). Belloque (2015) aponta a não efetividade da Lei para a redução dos feminicídios como resultado da falha do Estado em fortalecer a rede de proteção à mulher, formalmente garantida na Lei Maria da Penha.

O apontamento de Belloque (2015) faz referência às diretrizes da Lei Maria da Penha que priorizam o enfrentamento da violência doméstica e familiar a partir de três eixos: a prevenção para que a violência não ocorra, a punição ao autor quando essa venha a ocorrer e, por fim, a assistência a mulher que sofreu violência. Apesar de a Lei dar ênfase a esses três eixos, o relatório final da CPMI da violência contra a mulher, do ano de 2012, ao apresentar a rede de proteção à mulher, evidenciou o fato de que o Estado se organiza de forma fragmentada, priorizando a punição ao agressor. Ao fazer isso, desconsidera-se que, em muitos casos, o desejo da mulher não é a prisão do homem autor de violência, mas sim o cessamento das agressões (Rifiotis, 2015).

Com base nessas considerações, objetivamos discutir neste ensaio teórico o papel das delegacias especializadas de atendimento à mulher (DMs), fundamentado em epistemologias psicológicas com enfoque de gênero, reflexivo e sistêmico. Entre as atribuições das DMs, está o desenvolvimento de procedimentos legais referentes à apuração de infrações cometidas mediante violência doméstica ou familiar, a partir dos indicativos da Lei Maria da Penha. Contudo, este artigo propõe pensar as DMs também como um espaço de consolidação das ações de prevenção a esse tipo de violência, dando ênfase, assim, para o eixo preventivo instituído pela referida lei.

Dessa forma, busca-se apresentar uma nova maneira de pensar as DMs, produzindo novos sentidos e significados para esse espaço, entendendo-o como possibilidade de ação e prevenção da violência contra a mulher. Logo, buscamos construir um novo olhar sobre esse serviço, olhar este que esteja integrado aos demais setores da rede de atendimento e proteção à mulher e que esteja atento à complexidade das manifestações violentas. Salientamos, ainda, o reconhecimento de que o enfrentamento da violência conjugal no âmbito policial só terá resultados efetivos quando abordado em rede e pautado na segurança cidadã (Freire, 2009).

 

A compreensão da violência conjugal como uma violência de gênero

Para iniciar esta seção, é preciso situar nosso ponto de partida epistemológico para pensar o termo gênero, sendo aqui entendido a partir dos estudos de Butler (2015), que afirma que este é a estilização repetida dos corpos, uma performance social continuamente repetida, pautada nas normas sociais que, por meio dos discursos, definem de forma binária a constituição das identidades. O gênero é, portanto, uma construção social, ou seja, um sistema social que organiza interações, atribui sentidos e governa o acesso ao poder e aos recursos. Logo, não é um atributo individual, pois não existe nas pessoas, mas sim na relação social (Nogueira, 2001b). As performances de gênero são reguladas de maneira local, regional e global e, portanto, não são fixas ou universais, mas dependem da cultura em que o sujeito está inserido.

Donna Haraway (1995), filósofa estadunidense, aponta que as formas como compreendemos o mundo são contingentes e profundamente dependentes da nossa localização geográfica neste mundo e dos nós interseccionais que produzem nossos corpos. Logo, o conhecimento, os valores e as verdades dependem do tempo e da cultura, e não há óticas e verdades mais certeiras do que outras; trata-se de perspectivas e, como tal, de políticas de posicionamento (Haraway, 1995; Nogueira, 2001b). Gergen (1992) questiona a supervalorização de características generificadas como masculinas ou femininas, pois embora existam diferenças palpáveis nos órgãos reprodutores das espécies, não há uma explicação material para o fato de essas diferenças terem sido sempre tão importantes e para derivarem delas um conjunto de características de personalidade.

No caso das violências conjugais, o que observamos é um sistema histórico que deu aos homens poderes sobre as mulheres e fez da agressão um importante eixo para a manutenção dessas relações (Connell & Messerschmidt, 2013). Os discursos que ditaram verdades sobre o “ser mulher” foram construídos em diferentes contextos (Nogueira, 2001b), como as leis, as instituições religiosas, familiares e educacionais, além das mídias e demais espaços de circulação que instituíram como legítima a dominação dos homens sobre as mulheres (Connell & Messerschmidt, 2013). Segato (2003) aponta que a dificuldade de erradicar a violência da vida das mulheres se dá, em grande parte, pela assimilação desse fenômeno como parte da normalidade, um fenômeno normativo.

Portanto, a promulgação de uma Lei em defesa das mulheres não é o suficiente para estabelecer garantias para o fim da violência conjugal. Apesar de a legislação suscitar reflexões sobre atos que até então eram considerados parte normativa das relações sociais, para que possamos verdadeiramente falar em direitos estabelecidos, precisamos de uma estrutura política, social e cultural que os mantenha (Lodetti, Monte, Lago, &Toneli, 2018). Estamos aqui falando da iminente necessidade de ressignificar o que conhecemos como “normal” nas relações de gênero, produzindo novos sentidos e significados e reescrevendo discursos de maneira inclusiva e não hierárquica. E como aponta Segato (2003 p. 133), “infelizmente, isso não pode ser modificado por decreto, com um golpe de tinta, assinando o contrato legal” (tradução nossa)1.

Ainda que a dominação dos homens sobre as mulheres seja efeito de um sistema histórico, ela não é autorreprodutora e depende de certo nível de consenso e coparticipação dos demais grupos. Para sustentar tal dominação, é preciso o policiamento de todos os homens, bem como a exclusão das mulheres, pois o gênero é performatizado de forma relacional, onde os padrões de masculinidade idealizados são definidos em oposição às feminilidades (Connell & Messerchimidt, 2013). Ressaltamos, portanto, que a violência conjugal é um produto do funcionamento social que organiza as relações a partir de hierarquias de gênero; logo, a mudança nos padrões violentos não pode ser pensada na esfera individual, mas focar sua atenção na estrutura de poder que a mantém (Nogueira, 2001a).

 

A compreensão sistêmica da violência conjugal como cíclica e interacional

Além do enfoque de gênero, exposto na seção anterior, o presente estudo compreende a violência conjugal a partir dos pressupostos da teoria sistêmica, sendo entendida como um fenômeno complexo, interacional, multifacetado e cíclico, vivenciado pelo casal em suas interações, cuja dinâmica é desenvolvida por meio da relação que estabelece no contexto no qual está inserido (Batista et al. 2017; Falcke, Oliveira, Rosa,& Bentancur, 2009; Macarini & Miranda, 2018; Rocha, Galeli, &Antoni, 2019).

De acordo com a perspectiva sistêmica, o relacionamento perpassa dois indivíduos, sendo considerado que existem diferentes aspectos que influenciam na manifestação da violência, incluindo características individuais, contextuais, processuais e temporais. Para buscar uma compreensão do fenômeno da violência conjugal, alguns autores da abordagem sistêmica (Carvalho-Barreto, Bucher-Maluschke, Almeida,& De Souza, 2009; Rocha et al. 2019) utilizam-se da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), desenvolvida por Urie Bronfenbrenner (1996, 2011), a qual contribui para uma compreensão complexa e dinâmica de desenvolvimento humano, levando em consideração quatro núcleos inter-relacionados: a pessoa, o processo, o contexto e o tempo (PPCT).

No que diz respeito ao núcleo pessoa, a TBDH considera que essa dimensão se refere às características biopsicológicas do sujeito e aquelas construídas na sua interação com o ambiente. A partir dessa dimensão de análise, poderíamos investigar o que se configura como fator de risco e/ou proteção para a ocorrência do fenômeno da violência no relacionamento conjugal.

Com relação às mulheres em situação de violência conjugal, é importante apontar que existem inúmeros fatores que fazem com que permaneçam em um relacionamento violento. Dentre eles, destacam-se a presença de sentimentos ambivalentes em relação ao cônjuge, como lealdade, amor, apego e união, mas também raiva, humilhação, medo e submissão (Diniz, 2017; Jong, Sadala, & Tanaka, 2008). Além disso, a mulher vive uma dinâmica que coaduna o medo das ameaças sofridas pelo parceiro com a vergonha por se manter nessa relação, o que interfere no acionamento de uma rede de apoio, já que ela deixa de procurar as pessoas mais próximas de seu convívio e a rede de proteção formal (Galeli &Antoni, 2018).

O segundo núcleo da TBDH refere-se ao processo, o qual engloba as interações recíprocas e ativas entre o sujeito e o meio ambiente, que se tornam progressivamente mais complexas. Nesta teoria, a díade constitui a unidade mínima de interação interpessoal, ressaltando algumas propriedades da mesma: (a) as influências mútuas entre os envolvidos; (b) equilíbrio de poder, considerando-se a possibilidade de um dos participantes ter mais influência sobre o outro em determinado momento; e (c) a existência de uma relação afetiva entre os participantes, podendo ser esse afeto positivo, negativo, mútuo, simétrico ou complementar. A compreensão de tais propriedades traz o entendimento de que as relações interpessoais não são unilaterais (Bronfenbrenner, 1996; Polonia, Dessen,& Silva, 2005).

Com base nesses conceitos, pode-se considerar a violência conjugal como um fenômeno que ocorre em uma relação proximal, cuja interação é bidirecional, ou seja, construída dentro de uma determinada díade; e que sofre interferências das influências existentes entre os envolvidos, do desequilíbrio de poder entre os cônjuges e da existência de diferentes tipos de afeto entre eles. Segundo Carvalho-Barreto et al. (2009), se não forem trabalhados pelos parceiros, conflitos causados por uma série de fatores internos e/ou externos ao casal podem fomentar um relacionamento com discussões que, por sua vez, podem resultar na utilização de violência conjugal como forma de resolução de tais situações conflituosas.

O terceiro núcleo da TBDH diz respeito ao contexto, o qual é analisado segundo quatro níveis ambientais: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema, constituindo o meio ambiente ecológico (Dessen & Braz, 2005; Polonia et al., 2005). O primeiro deles refere-se ao espaço em que as atividades e relações interpessoais são experienciadas face a face, entre a pessoa e o meio imediato, como a família, que é considerada um dos primeiros contextos de socialização do indivíduo, com papel fundamental para o desenvolvimento humano (Dessen & Braz, 2005).

Um aspecto importante relacionado à família de origem refere-se à educação promovida em relação à violência de gênero, por meio de modelos de masculinidades e feminilidades equânimes, o que poderia possibilitar comportamentos interpessoais não violentos na vida adulta. Connell e Messerschimidt (2013), ao definir o que chamam de geografia das masculinidades, afirmam que a construção social de modelos de conduta se dá em grande parte a nível local, por intermédio da família, dos grupos próximos e das organizações sociais imediatas.

Além da família, um outro aspecto relacionado ao contexto e que tem importância na compreensão do fenômeno da violência conjugal se refere às redes de apoio social e afetivo, compreendidas como aquelas pessoas que o sujeito percebe como significativas. De acordo com Rocha et al. (2019), essa rede pode se caracterizar como um fator de proteção e saúde diante de situações de risco, tendo funções como companhia social, apoio emocional, guia cognitivo, regulação social e acesso a novos vínculos e contatos. Ainda no que se refere ao contexto, um fator que tem grande importância na prevenção e assistência ao fenômeno da violência conjugal se refere à rede de atendimento formal, a qual deve funcionar de maneira integrada e protetiva. Considera-se que a qualidade dos serviços de saúde, assistência social, educação, de segurança e direitos se constituem como fatores fundamentais no acolhimento e orientação às mulheres em situação de violência, o que poderia se caracterizar como um fator de proteção para que estas busquem auxílio, denunciem a agressão e rompam com o ciclo de violência.

Com relação à rede de atendimento, em muitos casos, os serviços de psicoterapia podem ser o primeiro contexto a conhecer a dinâmica violenta que permeia a relação do casal. Muitas mulheres, ao buscar um atendimento psicológico, trazem queixas de transtornos depressivos, quando na verdade este se estabelece enquanto sintoma de uma situação de violência conjugal. Logo, cabe aos/às psicoterapeutas provocar em suas clientes a desnaturalização de sentidos e significados que tornam a violência um componente naturalizado da relação afetiva. Ademais, é dever da/o profissional estar atenta/o aos possíveis riscos à vida que pode se apresentar em algumas relações abusivas, indicando à sua cliente os serviços de proteção à mulher que compõem a segurança pública.

Ainda dentro do núcleo contextual, a TBDH considera que alguns elementos mais distantes do indivíduo, ou seja, de seu macrossistema, também exercem influência sobre o mesmo. No âmbito das violências conjugais, destacam-se, aqui, as macroinstituições governamentais, como as legislações e políticas públicas relacionadas à assistência de pessoas em situação de violência e ao enfrentamento da violência contra a mulher. No Brasil, verifica-se, cada vez mais, uma preocupação com o fenômeno da violência contra a mulher no que diz respeito às legislações relacionadas ao tema, o que pode ser verificado com a promulgação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e com a Lei 13.104/2015 (Lei do Feminicídio). No entanto, como já mencionado, a existência e aplicação de leis não tem sido suficiente para a prevenção e combate desse tipo de violência.

Por fim, o último núcleo da TBDH refere-se ao tempo, o qual engloba as mudanças e continuidades, tanto no que tange ao ciclo de vida de uma da pessoa, mas também à passagem de tempo no ambiente e na sociedade em geral (Polonia et al., 2005). Nessa perspectiva, destaca-se, aqui, a influência de aspectos históricos na ocorrência da violência conjugal. Ravazzola (2007) aponta o autoritarismo como parte do circuito de violência. Utilizando-se de conceitos da Antropologia, a autora ressalta a hipótese de que a violência é gerada em contextos relacionados com as diferenças de hierarquias e de poder: “alguém visto como inferior não é respeitado como um outro – ser humano – e pode ser considerado, ao contrário, como um objeto a serviço das necessidades do sujeito que se considera protagonista” (Ravazzola, 2007, p. 20). Ainda, segundo a autora, determinados contextos podem favorecer a naturalização da violência, uma vez que geram diferentes formas de anestesiar o mal-estar que os indivíduos deveriam experimentar para impedir que a violência se perpetue, como, por exemplo, aqueles que promovem a impunidade, de corrupções, de discriminações e que favorecem a legalização e a legitimação da violência.

Diante do exposto, salientamos a necessidade de abordar o fenômeno da violência em acordo com toda a complexidade que o envolve. Problematizar a violência conjugal perpassa por despir-se de verdades e pré-conceitos, entendendo-a como interacional, coconstruída e cíclica. Logo, seu enfrentamento transcende a lógica dicotômica de vítima e agressor que desconsidera a heterogeneidade das manifestações violentas e subjetividades dos sujeitos nela envolvidos.

 

Atuação do psicólogo policial com foco na prevenção da violência contra a mulher

Quando entendemos a violência conjugal como multidimensional, conforme discutido acima, nos damos conta de que alternativas simplistas de resolução de conflitos, como a denúncia e punição do autor de violência, tendem a não resolver a situação. É preciso, portanto, pensar simbolicamente os sentidos empregados na efetivação da denúncia. O que a mulher que sofreu violência espera como resultado do registro do boletim de ocorrência (BO)? Ela quer que o inquérito policial (IP) seja instaurado? Sua autonomia está sendo respeitada e priorizada? Ou a busca pela judicialização tem sido mais um fator de violência contra a mulher ao silenciar seus desejos em detrimento da vontade do Estado? Para responder a estas perguntas, entendemos que há necessidade de um olhar também multidimensional, que considere os múltiplos fatores envolvidos no fenômeno da violência conjugal.

Para isso, abordamos o enfrentamento da violência a partir de perspectivas reflexivas de trabalho, que tendem a contribuir com a ressignificação dos espaços e serviços prestados pelas DMs, pois são pautadas no compromisso social e crítico do próprio profissional de psicologia que atende à demanda (Nogueira, 2001b). Logo, cabe estabelecer com o sujeito que procura a delegacia uma proposta de coconstrução dialógica para a resolução da violência, respeitando as individualidades, crenças, afetos e dicotomias que se estabelecem na conjugalidade. Trata-se de um fazer da psicologia atrelado à segurança cidadã (Freire, 2009), que busca a ressignificação da própria instituição policial ao abandonar seu suposto saber para considerar a dialogicidade com o outro.

Considerando a denúncia da violência conjugal através do registro do BO, a partir de uma ótica crítica, Rifiotis (2008) desenvolveu uma pesquisa que apontou que, ao realizar a queixa, muitas mulheres em situação de violência não entendem como positiva a instauração de um IP, visto que, em muitos casos, elas abandonam o processo ou, quando possível, retiram a queixa. O autor observou que as DMs têm servido como espaço de resolução judicial para conflitos conjugais, identificando que o registro do BO tem, em diversos casos, a função simbólica de “dar um susto”, mas que a sujeita da denúncia não quer que a ação penal seja consumada. Agrava-se a isso o fato de que a demanda da investigação exige despachos burocráticos que lentificam os serviços judiciários, fazendo com que os casos onde a mulher realmente deseja dar andamento ao processo, ou onde até mesmo corre risco de morte, demorem para chegar ao setor jurídico (Campos, 2015).

Batista et al. (2017) apontam que, na busca para resolver os conflitos conjugais, as mulheres reconhecem no BO um instrumento que dá conta de alterar a conduta do companheiro, fazendo com que os episódios de violência cessem. Assim, o papel da polícia de investigação e produção de provas torna-se secundário nesses casos, na medida em que as DMs se caracterizam como um espaço de busca por orientação sobre direitos, assistência social e acolhimento psicológico (Rifiotis, 2008). Essas estratégias não anulam a possibilidade e a necessidade de que a polícia opere a partir da repressão do crime, mas forçam o setor policial a repensar a criminalização como alternativa exclusiva para a resolução dos conflitos conjugais, excluindo os casos que envolvam violência física e sexual, já que independem da manifestação da mulher para que sejam judicializados.

Problematizar as demandas das mulheres que procuram as DMs a partir de estratégias de resolução que transcendem a punição faz com que sintamos a necessidade de ressignificar o próprio papel das Delegacias nos casos de enfrentamento da violência conjugal quando há a denúncia ao órgão de segurança pública. O resultado final da CPMI da Violência Doméstica instaurada em 2012 mostrou que as DMs constituem no Brasil o principal serviço oferecido para resolução das violências contra as mulheres, sendo o primeiro a ser instaurado e o único que funcionou desde sua criação, em 1985, sem interrupção (Campos, 2015; Pasinato & Santos, 2008). Logo, parece prudente aproveitar esse espaço para fortalecer mecanismos de prevenção e assistência e, quando necessário, da efetiva instauração de inquéritos.

Rafiotis (2008) aponta a necessidade de que as DMs tenham a função de quebrar com a dicotomia agressor x vítima, ressignificando a condição de passividade historicamente atribuída à ‘vítima’ de violência. Tomando o discurso como prática social (Genger, 1992), busca-se – com o abandono de tal dicotomia – uma nova produção de sentidos e significados em torno da violência conjugal que entende o casal como coparticipante do processo violento (Falcke et al. 2009), bem como agente de transformação da dinâmica abusiva. Sendo assim, passa a ser função das DMs facilitar o acesso a recursos que coloquem os sujeitos em relação de pró-atividade com seus conflitos conjugais, seja através do conhecimento da legislação ou através de novas produções de sentido em torno do ato violento que permeia a relação destes.

Mas, como fazer de uma instituição tradicionalmente atrelada à investigação e à repressão um espaço de ressignificação das relações de gênero? Considera-se que a Polícia Civil de Santa Catarina, por contar com o quadro de Psicólogo Policial em seu quadro efetivo de colaboradores, possui uma condição peculiar, já que as DMs contam com um Setor de Psicologia que pode trazer à tona essas problematizações levantadas no presente artigo. A partir deste setor, estratégias de prevenção à violência, redução de danos e práticas que evitem a reincidência fariam parte das atividades cotidianas dos/as psicólogos/as policiais.

Pensando a delegacia a partir da segurança cidadã, apresentamos como proposta no campo da prevenção da violência conjugal palestras e campanhas educativas que informem sobre os serviços oferecidos nas DMs, sobre a rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica e sobre a própria Lei Maria da Penha. Acreditamos que, para a efetividade dessas ações, a segurança pública e a rede de proteção à mulher devem ir até os sujeitos ao invés de esperar que estes venham a encontros nas delegacias, portanto, apresentamos como sugestão de espaços os CRAS e CREAS, as Unidades de Saúde, Clube de mães, empresas, universidades, escolas e demais locais que possam possibilitar essas discussões.

Por meio desses encontros, possibilita-se de forma reflexiva a desnaturalização de violências por vezes arraigadas culturalmente nas vivências de cada sujeito. Dessa forma, poderemos construir estratégias de intervenção junto às mulheres e homens antes mesmo que a violência ocorra. Além disso, entendemos que, desse modo, a mulher e a população em geral teriam mais conhecimento sobre a legislação vigente, a rede formal de proteção, bem como a complexidade da violência conjugal. Com isso, busca-se fortalecer a autonomia dessas mulheres diante de situações violentas por elas naturalizadas, bem como ampará-las juridicamente caso seja esta a sua decisão.

Como mencionado nas discussões de gênero, os espaços próximos dos sujeitos moldam modelos de masculinidades e feminilidades que podem, ou não, ter relação com a violência. Por isso, esses locais também devem operar como lócus de prevenção. Logo, o ambiente escolar apresenta-se como exímio espaço de escuta e trocas sobre as vivências dos/as jovens. Conforme Gessner, Fonseca e Oliveira (2014), a naturalização da violência produzida na família nuclear pode fazer com que o sujeito em situação de violência não a reconheça como tal, ou, mesmo, que a reproduza sem questionamentos. Portanto, faz-se necessário confrontar os/as jovens sobre padrões violentos naturalizados em nossa cultura, problematizando a própria produção das masculinidades e feminilidades e a forma como se organizam socialmente como instrumentos de violência. A complexidade dessas problematizações faz com que a intervenção com esse grupo vá além de palestras e campanhas, organizando-se a partir dos grupos reflexivos de gênero.

A sugestão de grupos reflexivos tem como base o estudo desenvolvido por Beiras e Bronz (2016), que resultou na cartilha “Metodologia de Grupos Reflexivos de Gênero”, publicada pelo instituto NOOS. Os autores trazem uma perspectiva teórica e postura de trabalho baseada no construcionismo social e nos estudos de gênero pós-estruturalistas. Os grupos reflexivos subvertem o viés explicativo do fenômeno da violência ao adotar debates reflexivos que promovem novos sentidos para as situações de violência conjugal.

Por acreditar na construção coletiva das discussões, entendemos que a aplicabilidade desse modelo de grupo também se estende a grupos de adolescentes, bem como a todos os demais grupos que desejam trabalhar a partir de métodos reflexivos para novas produções de sentidos. Adotando o método apresentado pelos autores, salientamos que esses grupos podem ser realizados de maneira preventiva nas escolas, mas também após o ato consumado com mulheres e homens em situação de violência conjugal. Como mencionado, em muitos casos, as mulheres que buscam as DMs não querem a penalização criminal do companheiro, mas sim que cesse o comportamento agressivo. Mas, por entendermos a violência conjugal como relacional, não basta que o homem esteja participando ativamente do grupo reflexivo; é preciso que a mulher também esteja engajada nesse processo de mudança, e que ambos ressignifiquem os padrões de violência conjugal.

Contar com profissionais de segurança pública capacitados para a realização desses grupos reflexivos é dar um novo sentido à instituição policial, onde – mais do que a apuração dos crimes –, teria como compromisso ético a prevenção das diversas violências e o trabalho direcionado para a ressignificação dos relacionamentos violentos. Desvincular essa instituição do caráter repressivo tradicionalmente atribuído a ela é premissa inerente à segurança cidadã (Freire, 2009).

Uma outra estratégia que tem se mostrado eficiente, na medida em que pode reduzir a reincidência da violência conjugal, refere-se às formas de solução pacífica de conflitos. Dentre as formas alternativas de resolução pacífica de conflitos, destaca-se aqui a mediação. Batista et al. (2017) apontam que a psicologia possui recursos teóricos e técnicos para se posicionar enquanto facilitadora para que as pessoas envolvidas no conflito elaborem suas próprias soluções em conformidade com seus interesses. A mediação de conflitos possui como aspecto central a comunicação, possibilitando o exercício do protagonismo e a reorganização da vida cotidiana aos envolvidos (Nobre & Barreira, 2008). Com base nisso, as DMs podem se constituir como um espaço intermediador das demandas entre os envolvidos na situação de violência conjugal, deixando em segundo plano seu caráter intrínseco de punição. Na mediação, caso os envolvidos aceitem participar, o objetivo é que cheguem, por si sós, por intermédio da participação de um terceiro imparcial e independente, à elaboração de uma solução para o conflito, de forma autônoma, buscando a pacificação das relações familiares (Possamai, 2018).

É válido ressaltar que a mediação não deve/pode ser aplicada em todas as situações que chegam à delegacia. Conforme já mencionado, casos de violência doméstica com lesão corporal ou abuso sexual são incondicionados, ou seja, não dependem do desejo da mulher que sofreu violência para efetivação do Boletim de Ocorrência. Ademais, é preciso considerar que, mesmo nos casos em que a denúncia é condicionada ao desejo da mulher, as partes do conflito não estão em posição de igualdade de poder dentro da relação e histórias mais coerentes, ou melhor, ensaiadas sobre o conflito podem ter vantagens na mediação (Winslade & Monk, 2016). Soma-se a isso o fato de que discursos/verdades hegemônicas por vezes amparados na legislação podem não trazer uma solução viável para a mediação. Portanto, é preciso cautela quando se trata de mediação conjugal em casos de violência doméstica.

Para que essas alternativas de não judicialização das queixas de violência conjugal nas DMs sejam bem-sucedidas, é preciso que, para além da equipe de psicólogas/os, as/os demais policiais também estejam capacitadas/os para atender a essas demandas. Como mencionado ao longo do artigo, as violências de gênero são por vezes naturalizadas por uma norma social que confere às mulheres posições hierárquicas inferiores aos homens. De alguma forma, todos nós participamos da efetivação dessa norma, portanto, é urgente que se faça a capacitação dos/as policiais envolvidos no atendimento às situações de violência para que estes não corroborem tal naturalização e acabem contribuindo para um processo de (re)vitimização da mulher em situação de violência.

Sugerimos então o incentivo, por parte da gestão aos profissionais atuantes na instituição policial (agentes, escrivães e delegados de polícia), para que estes sejam continuamente capacitados para o atendimento dos sujeitos que chegam às DMs para o registro do Boletim de Ocorrência e procedimentos decorrentes desse registro. Por entender que a demanda das delegacias não permite que os/as colaboradores/as se ausentem por longos períodos de tempo, entendemos que o formato de grupos reflexivos possa ser de difícil aplicação neste contexto. No entanto, sugerimos que as capacitações também adotem as diretrizes reflexivas, porém em um formato condensado, com cursos ministrados por profissionais que tenham conhecimento sobre metodologia reflexiva e que entendam o fenômeno da violência como multidimensional. É somente por meio da compreensão da violência contra a mulher em sua forma heterogênea que alcançaremos medidas efetivas de prevenção. Essas capacitações poderiam ser realizadas tanto pelos psicólogos que compõem a instituição, quanto por profissionais externos.

 

Considerações finais

Apesar da ineficiência da ótica criminalizante na redução da violência conjugal, esta ainda é a visão predominante em diversos estudos. Buscamos, então, neste artigo, mostrar a possibilidade de uma atuação para além da lógica punitivista, entendendo a violência conjugal como multicausal e com manifestações heterogêneas que precisam ser pensadas a partir da complexidade que lhe é devida. Diante disso, é preciso pensar em estratégias de atuação que escapem da aplicação fragmentada da lei e que considerem as demandas dos sujeitos envolvidos no processo. Afinal, como exemplificado, muitas mulheres não buscam nas DMs o encarceramento do companheiro, mas sim a resolução da situação de violência a que estão submetidas.

No cenário de conflito conjugal, mesmo em situações de violência, os vínculos familiares e afetivos podem continuar mantidos, o que faz com que sejamos forçados a pensar em novas formas de atuação que transcendam a lógica criminalizante tradicionalmente operada pelos setores da polícia. Cabe então aos profissionais dessa instituição abandonar certezas e verdades previamente constituídas e baseadas em suas próprias experiências, adotando uma postura reflexiva e dialógica, onde os sujeitos envolvidos são autores de suas próprias vivências. Assim, mais do que trazer respostas prontas, espera-se que a atuação profissional neste espaço se empenhe em ressignificar violências naturalizadas, produzindo novos sentidos e significados para a resolução do conflito.

Deixamos o convite não só aos profissionais das DMs, mas a todos os profissionais que compõem a rede de atendimento – como psicoterapeutas, psicólogas/os da área da saúde, assistência social, educadores organizacionais que, quando se deparem com situações de violência conjugal, adotem uma postura dialógica e não criminalizante, para que assim os próprios sujeitos possam atribuir sentido aos atos praticados naquela relação. Verdades nada mais são do que fundamentos contingentes baseados em formulações discursivas oriundas de nossa própria teia relacional. Sendo assim, não cabe a nós profissionais da psicologia atribuir sentido a uma experiência que não nos compete.

Ressaltamos, no entanto, a importância de pensar em ações de prevenção e desnaturalização de padrões violentos, ressignificando discursos estereotipados sobre gênero e equalizando relações de poder. Por estarmos inseridos no âmbito policial, entendemos que as próprias delegacias podem ter seus espaços transformados e ressignificados, abrindo possibilidades de prevenção a partir da instituição. Como mencionado, as DMs podem corroborar ações preventivas, principalmente através das atividades desenvolvidas pelo setor de Psicologia, com palestras, grupos reflexivos, mediação conjugal e capacitação de policiais. Dessa forma, subverte-se o discurso punitivo que a circunda, transformando sua representação para seus próprios usuários.

Nesse sentido, salientamos a importância de um olhar sistêmico perante o fenômeno da violência nas delegacias como uma ferramenta útil para pensar estratégias de coconstrução com as denunciantes de alternativas que respeitem os sentidos e significados dados por estas para a relação violenta. As teorias sistêmicas, construcionistas e reflexivas auxiliam os profissionais a pautarem sua atuação no desejo dos próprios sujeitos e a manterem-se críticos perante a legitimação de práticas estatais que desconsideram o contexto social em que o sujeito está inserido. Salientamos ainda a necessidade de ampliação de estudos empíricos e relatos de experiência que considerem a atuação com sujeitos em situação de violência a partir da ótica dialógica, transcendendo o modelo punitivista, para que assim possamos pensar em novos modos de atuação que sejam mais efetivos para o enfrentamento à violência.

 

 

Referências

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Recebido em: 26/11/2019
Aprovado em: 20/03/2020

 

 

1 “Esto, desgraciadamente, no puede modificarse por decreto, con un golpe de tinta, suscribiendo el contrato de la ley.”

 

I Camila Maffioleti Cavaler: Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, bacharela em Psicologia pela Universidade do Extremo Sul Catarinense, membro no Núcleo de Pesquisa Margens: Modos de vida, família e relações de gênero (UFSC) e do Núcleo de Pesquisa em Psicologia Jurídica (UFMG). https://orcid.org/0000-0003-2417-8017. E-mail: camilamaffioleticavaler@gmail.com

II Samira Mafioletti Macarini: Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Pós-Graduada em Terapia Relacional Sistêmica pelo Instituto Familiare. Docente na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina – ACADEPOL e na Escola Superior de Criciúma – Faculdades ESUCRI. Psicóloga da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina – Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso de Criciúma, SC. https://orcid.org/0000-0003-0245-2759. E-mail: samiramacarini@gmail.com

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