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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v29i66.519 

ARTIGOS

 

A construção da parentalidade após a dissolução conjugal e as oficinas de parentalidade

 

La construcción de la crianza después de la disolución matrimonial y los talleres de parentalidad

 

The construction of parenting after marital dissolution and parenting workshops

 

 

Liniker Douglas Lopes da SilvaI, Cibele Alves ChapadeiroII, Luciana Maria da SilvaIII

Universidade Federal do Triângulo Mineiro (PPGP/UFTM), Uberaba/MG, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente estudo é uma pesquisa qualitativa em que o objetivo é descrever as percepções de pais e filhos que participaram das Oficinas de Parentalidade acerca da construção do exercício da parentalidade após a dissolução conjugal e as reverberações da participação nas oficinas em suas relações. O método utilizado foi o de estudo de casos múltiplos. Integraram este estudo três famílias compostas por pais, mães e filhos biológicos que participaram da Oficina de Parentalidade em uma cidade do interior de Minas Gerais. Como instrumento de coleta de dados, utilizou-se entrevistas semiestruturadas para pais e filhos. Os dados foram analisados segundo a técnica de análise de conteúdo. Pôde-se perceber o caráter emaranhado das relações conjugais e parentais e, também, a forma como a naturalização de papéis maternos e paternos repercute na construção da parentalidade, favorecendo conflitos de lealdade principalmente nas famílias que vivenciam processos litigiosos. Há um grande esforço tanto de pais quanto de filhos para se adaptarem às mudanças advindas da separação, sendo a Oficina de Parentalidade um importante instrumento de suporte às famílias.

Palavras-chave: Divórcio; Parentalidade; Relações familiares; Família.


RESUMEN

Este estudio es una investigación cualitativa cuyo objetivo es describir las percepciones de los padres y los niños que participaron en los Talleres para padres sobre la construcción del ejercicio de crianza después de la disolución matrimonial y la reverberación de la participación en talleres en sus relaciones. El método utilizado fue de múltiples estudios de caso. Este estudio incluyó a tres familias compuestas por padres, madres y niños biológicos que participaron en el "Taller de Crianza" en una ciudad del interior de Minas Gerais. Como instrumento de recolección de datos, se utilizaron entrevistas semiestructuradas para padres e hijos. Los datos se analizaron de acuerdo con la técnica de análisis de contenido. Fue posible percibir el carácter enredado de las relaciones matrimoniales y parentales y, también, la forma en que la naturalización de los roles maternos y paternos afecta la construcción de la crianza de los hijos, favoreciendo conflictos de lealtad, especialmente en las familias que experimentan litigios. Tanto los padres como los niños hacen un gran esfuerzo para adaptarse a los cambios que vienen con la separación, y el Taller de Padres es una herramienta de apoyo importante para las familias.

Palabras clave: Divorcio; Responsabilidad parental; Relaciones familiares; Familia.


ABSTRACT

This study is a qualitative research whose objective is to describe the perceptions of parents and children who participated in Parenting Workshops about the construction of parenting exercise after marital dissolution and the reverberation of participation in workshops in their relationships. The method used was of multiple case studies. This study included three families composed of fathers, mothers and biological children who participated in the “Parenting Workshop” in a city in the interior of Minas Gerais. As a data collection instrument, semi-structured interviews were used for parents and children. Data were analyzed according to the content analysis technique. It was possible to perceive the tangled character of marital and parental relations and also, the way in which the naturalization of maternal and paternal roles impacts on the construction of parenting, favoring conflicts of loyalty, especially in families that experience litigation. There is a great effort from both parents and children to adapt to the changes that come with separation, and the Parenting Workshop is an important support tool for families.

Key Words: Divorce; Parenting; Family relations; Parent-child relations.


 

 

Introdução

Ao longo do processo evolutivo das sociedades contemporâneas, a família sofreu transformações tanto em termos estruturais, quanto nas funções desempenhadas por seus membros. As mudanças nas relações entre homens e mulheres acarretaram novos arranjos familiares, em que a tradicional estrutura da família ou as funções parentais já não são unívocas (Chapadeiro, Serralha, & Hueb, 2017).

Minuchin, Colapinto e Minuchin (1999) entendem família como um sistema aberto, no qual seus membros se inter-relacionam e, por meio dessa dinâmica relacional, assumem determinados papéis. Entretanto, a família vivencia as contradições de seus comportamentos, afetos, tensões e os conflitos presentes no ambiente que, simultaneamente, contribuem para que esse sistema se mantenha dinâmico e em constante transformação.

Assim, o divórcio, um evento que ocorre nas famílias e que tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas, exige reorganizações estruturais, socioemocionais e processuais em todos os membros do sistema familiar (Lamela & Figueiredo, 2016). No processo do divórcio, observa-se a dificuldade dos genitores em lidar com a modificação da estrutura familiar, e em dissociar os conflitos da conjugalidade que já não existe mais, do exercício parental (Silva, Chapadeiro, & Assumpção, 2019).

A conjugalidade se refere à união de dois indivíduos que formam um casal e que negociam inúmeras questões acerca das vivências que terão e que irão definir os contornos do relacionamento, formando, assim, o subsistema conjugal (Rossato & Ferreira, 2017). Por sua vez, a parentalidade diz respeito ao exercício dos cuidados parentais e, também, ao modo como genitores e filhos constroem suas relações (Silva, Chapadeiro, & Assumpção, 2019). Entretanto, em meio ao divórcio ou dissolução conjugal, não raramente os genitores apresentam dificuldades em dissociar conjugalidade de parentalidade e podem manter conflitos anteriores de quando ainda eram um casal e/ou podem também ocasionar novos conflitos, como os de lealdade e alienação parental (Catenace & Scapin, 2018).

Em uma situação de desenvolvimento dentro do esperado no ciclo de vida, os filhos são leais aos pais, isto é, eles confiam e são fiéis aos acordos de relacionamento, sem ter que escolher entre uma das figuras parentais. O conflito de lealdade se instala quando um filho se alia a um genitor e imagina que irá traí-lo ou prejudicá-lo caso se aproxime do outro. A lealdade se relaciona com as triangulações presentes no sistema. Quanto maior a rigidez com que a lealdade se impõe ao indivíduo, mais desequilibrado o triângulo pai-mãe-filho (Nüske & Grigorieff, 2015). Acerca das triangulações, Bowen (1979) afirma que o triângulo se encontra na base de qualquer sistema emocional na família. No momento em que a tensão entre dois membros, geralmente os pais, atinge um nível de ansiedade intolerável, uma terceira pessoa, frequentemente um filho, é triangulada para reduzir a tensão instaurada no sistema.

Um dos maiores preditores dos conflitos de lealdade e particularmente de triangulação constitui a qualidade da relação de coparentalidade (Siegel, 2010). Coparentalidade é a articulação entre os papéis parentais relativos ao cuidado, formação e proteção dos filhos, incluindo valores, ideais e expectativas, em uma responsabilidade coordenada e conjunta entre os genitores (Böing & Crepaldi, 2016). Estudos que trazem à baila a questão das lealdades podem auxiliar no conhecimento da influência familiar no comportamento dos filhos em seu cotidiano e quais as consequências psicológicas desta influência (Cenci, Teixeira, & Oliveira, 2014).

Por sua vez, alienação parental é a situação em que um dos progenitores, por meio de estratégias e manobras manipuladoras, denigre a imagem do outro, ensejando excluí-lo da vida do filho, o que pode vir a destruir o vínculo emocional existente entre o filho e o outro genitor (Catenace & Scapin, 2018). Negrão e Giacomozzi (2015) salientam que se deve ter uma visão crítica acerca do fenômeno da alienação parental, reconhecendo que os padrões conflituosos resultam de complexas relações interpessoais entre os familiares envolvidos em um divórcio litigioso. Essa perspectiva indica a importância de se compreender os seres humanos e as relações familiares pós-divórcio de maneira não individualizante, visando a não rotular os membros da família em termos de vítimas e culpados, mas sim se aprofundar na interação existente no sistema familiar e somente enquadrar a família em diagnósticos.

Entende-se que a ruptura de laços familiares oriunda de processos de divórcio e a dificuldade dos pais em lidar com o término da conjugalidade e com as novas configurações familiares podem ocasionar problemas aos filhos mais jovens, desestruturando-os psicologicamente, mas também a todos os envolvidos (Silva et al., 2015). Percebe-se, então, a necessidade de auxiliar as famílias em processo de reconfiguração a superarem seus conflitos.

Para tanto, medidas que auxiliem os pais a protegerem seus filhos dos efeitos danosos de uma abordagem destrutiva do processo de separação devem ser estimuladas (Silva, Oliveira, Soares, & Rapizo, 2018). Nesse sentido, em 09 de maio de 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Recomendação 050/14, orientou os tribunais do país a adotarem as Oficinas de Parentalidade como política pública de resolução e prevenção de conflitos familiares (Ministério da Justiça, 2015).

A literatura aponta que estudos que se debruçam sobre os efeitos da dissolução conjugal na construção da parentalidade se mostram relevantes e atuais, ressaltando a importância de trabalhos que contemplem programas de intervenção com pais e/ou mães separados, como também pesquisas que englobem diferentes membros da família como pais, mães e filhos envolvidos nos processos de divórcio e/ou dissolução conjugal (Oliveira & Crepaldi, 2018; Silva, Chapadeiro, & Assumpção, 2019).

Diante do exposto, este estudo objetivou descrever as percepções de pais e filhos que participaram das Oficinas de Parentalidade acerca da construção do exercício da parentalidade após a dissolução conjugal e as reverberações da participação nas oficinas em suas relações.

 

Método

Tipo de estudo:Trata-se de um estudo de casos múltiplos, com caráter descritivo, na abordagem qualitativa de pesquisa e de corte transversal. De acordo com Turato (2011), a pesquisa qualitativa detém interesse em compreender os sentidos e significados de fenômenos, manifestações, ocorrências, fatos, ideias e assuntos que representam e fornecem molde à vida das pessoas. Para Yin (2015), o estudo de casos múltiplos busca investigar fenômenos em seu contexto real, por meio da estratégia de síntese de casos cruzados. Assim, o estudo de cada caso em particular é analisado e discutido com os demais, permitindo a construção de um caso completo, o que favorece uma compreensão aprofundada.

Participantes: Integraram o estudo três famílias totalizando 10 participantes, sendo 3 pais, 3 mães e 4 filhos envolvidos em processos de divórcio/dissolução conjugal, mas anteriormente coabitantes. Os filhos eram biológicos, dos dois ex-cônjuges, com idade entre 7 e 17 anos.,Nenhum membro apresentou déficits que impediam a participação na pesquisa. Todos participaram uma vez da Oficina de Parentalidade, realizada em uma cidade de Minas Gerais.

Nas Oficinas de Parentalidade, a intervenção se inicia com o acolhimento das famílias e de seus membros, que são divididos em grupos e encaminhados para salas pertinentes a cada faixa etária (pais, crianças, adolescentes), sendo os ex-casais alocados em salas separadas. O material didático utilizado nas oficinas foi desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e é composto por cartilhas, vídeos e depoimentos gravados que abarcam temas como: divórcio, novas configurações familiares, tipos de guarda, comunicação não violenta, prevenção à alienação parental, diferenciação entre conjugalidade e parentalidade e a importância da manutenção dos vínculos afetivos entre genitores e seus filhos após a dissolução conjugal. As oficinas são ministradas voluntariamente por equipes multiprofissionais compostas por Advogados, Psicólogos, Pedagogos, Assistentes Sociais, dentre outros profissionais previamente capacitados e familiarizados com a estrutura e o conteúdo, conforme descrito em Silva et al. (2015).

Instrumentos: Com o intuito de atender aos objetivos da pesquisa, foram elaborados dois roteiros de entrevistas semiestruturados, um para os genitores e outro para os filhos. De acordo com Tavares (2010), a entrevista semiestruturada é um procedimento que garante a obtenção da informação necessária de forma padronizada.

Foram colhidos os seguintes dados demográficos dos genitores: idade, escolaridade, número de filhos, emprego/ocupação, tempo de união, tipo de união, tempo de separação e renda. Foram levantadas as seguintes informações dos filhos: idade, escolaridade e número de irmãos. A entrevista com os pais abarcou temas como: a história da união estável/casamento e da dissolução da união estável/divórcio, relacionamento com o ex-cônjuge, exercício da parentalidade, mudanças devido à oficina de parentalidade e dados relacionais de seus pais. A entrevista com os filhos discorreu sobre a percepção: do relacionamento com os pais e das mudanças após a dissolução conjugal, do divórcio/dissolução conjugal dos pais, da parentalidade e relacionamento dos pais, e da aprendizagem na oficina de parentalidade.

Procedimento de coleta de dados: Os dados passaram a ser coletados após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Os genitores foram abordados ao término das Oficinas de Parentalidade e indagados, individualmente, sobre o interesse em participar do estudo, assim como o de seu filho, após explicação sobre a pesquisa. Foram convidados somente os ex-casais em que o pai, a mãe e pelo menos um filho tivesse participado da referida oficina. Os genitores e filhos que aceitaram participar da pesquisa responderam individualmente ao instrumento do estudo, em horários escolhidos por eles, em suas residências. No dia da entrevista foram lidos e assinados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido pelos genitores referente à sua entrevista e a dos seus filhos. Os genitores e filhos tiveram suas entrevistas audiogravadas, após consentimento, para posterior análise.

Procedimento de análise de dados: A partir da transcrição literal e integral das falas dos participantes, a análise dos dados foi dividida em duas etapas. Na primeira etapa foi realizada uma análise de cada caso, buscando conhecer como genitores e filhos constroem a parentalidade após a dissolução conjugal e as reverberações das Oficinas de Parentalidade em suas relações. Posteriormente, foi feita a análise cruzada dos dados visando à localização de semelhanças e particularidades entre os casos (Yin, 2015). Estes dados foram agrupados e categorizados segundo a Técnica de Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2011).

De acordo com Bardin (2011), a Análise de Conteúdo Temática é caracterizada como um conjunto de técnicas que possibilita a análise das comunicações. Assim sendo, utiliza procedimentos objetivos e sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, que permitam a inferência de conhecimentos relativos à produção/recepção das mensagens.

Considerações éticas: Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (número do parecer: 3.049.561), de acordo com a resolução nº 466, de 12/12/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

 

Resultados e discussão

 

Análise das famílias

As famílias participantes possuíam de um a três filhos. A idade das mães variou de 40 a 45 anos e, dos pais, de 32 a 46. A idade dos filhos variou de 10 a 16 anos. Dois ex-casais tinham casamentos oficiais que duraram entre 13 e 19 anos e vivenciavam processos de separação litigiosos. Um ex-casal viveu uma união estável que durou 12 anos e o processo de separação foi consensual. Os ex-cônjuges estavam separados entre três e quatro anos. A escolaridade de duas mães era superior completo e uma tinha o ensino médio completo; da mesma forma, os pais. Todos os genitores trabalhavam em empregos formais e intelectuais. Os filhos estavam todos estudando. Duas famílias tinham filhos no ensino fundamental e uma no ensino médio. Dois dos pais já se encontravam em uma nova união e um possuía um filho com a nova parceira. Nenhuma das mães se encontrava em uma nova união. A renda dos pais variou de 6 a 15 salários mínimos e a das mães de 2,5 a 5 salários mínimos.

Inicialmente, serão descritas e analisadas as dinâmicas de cada família, isto é, o estudo de cada caso.

Família 1: M1 e P1 se conheceram ainda na adolescência, namoraram durante 8 anos e então se casaram. A relação conjugal se manteve por 13 anos e juntos tiveram dois filhos, F1a, de 13 anos, e F1b, de 10 anos. M1 decidiu se separar de P1 após tomar conhecimento, por meio do filho mais velho, que P1 estava vivenciado uma relação extraconjugal.

Inicialmente, o processo de separação se daria de forma consensual, porém o desacordo do casal em relação à visita dos filhos, pensão e divisão dos bens, juntamente com mágoas e ressentimentos da união que chegou ao fim, levou ao processo litigioso. No que tange à relação com os filhos, P1 diz que a ex-companheira dificulta o acesso a eles, não facilitando sua participação no dia a dia da prole, e nas visitas, que são semanais, nem sempre consegue ver os dois filhos, destacando maior dificuldade de relacionamento com o filho mais velho. Em contrapartida, M1 diz que não tem auxílio do ex-marido nas atividades parentais e que ele busca fazer um papel de “pai bonzinho” para as crianças.

F1a relata que, durante o casamento dos genitores, não gostava da forma como o pai tratava a mãe e, como foi ele quem descobriu a relação extraconjugal do pai, sentiu-se culpado pela dissolução conjugal, mesmo afirmando que já esperava que um dia os pais fossem se separar. F1a destaca, também, que já deixou de fazer passeios com o pai para não magoar a mãe e que não gosta de muitas atitudes do pai, mesmo algumas que ocorriam antes da separação.

Nesse sentido, F1a parece estar preso em um conflito de lealdade entre seu pai e mãe, uma vez que sente que contribuiu para desencadear o processo de divórcio e que pode estar traindo a mãe se se sentir bem com o pai, ao mesmo tempo em que desaprova algumas atitudes do genitor. Nagy e Spark (1983) destacam que a lealdade é base para a formação de mitos e segredos,acarretando obrigações que, se não cumpridas, podem levar a sentimentos de culpa.

F1b, por sua vez, mostra-se menos envolvido nos conflitos conjugais dos genitores, sem conflitos de lealdade, relatando estar adaptado à convivência com ambos após a dissolução conjugal, inclusive dizendo gostar de ir à casa do pai.

Família 2: M2 e P2 viveram em união estável durante 12 anos e juntos possuem uma filha, F2, de 12 anos. Então, M2 decidiu separar-se de P2 após o envolvimento dele em um caso extraconjugal. Ambos decidiram não se separar judicialmente, entretanto, P2 casou-se novamente e foi necessário que oficializassem o fim da união. Nesse momento, a família foi encaminhada para as Oficinas de Parentalidade. M2 relata que, em sua infância, não teve muito contato com seus genitores; seus pais se separaram quando ela completou 2 anos. A mãe passou a viajar a trabalho para sustentar a família e o pai não buscava manter contato com os filhos, sendo que a maior parte dos cuidados dispensados a ela e aos seus irmãos era realizada pela avó materna. Para M2, a dissolução conjugal, mesmo sendo dolorosa, não foi motivo para provocar afastamento da filha do contato paterno ou utilizá-la como meio de agredir o ex-cônjuge. Segundo a participante, ao fazer mal ao ex-parceiro, estaria prejudicando a si mesma.

Por sua vez, P2 também conviveu com a separação dos genitores, refletindo que, quando adolescente, viveu um período muito traumático no qual se viu envolvido em inúmeros embates de seus pais, que mantinham uma relação agressiva e conturbada. Dessa forma, P2 busca conviver de maneira harmoniosa com a ex-esposa e manter o vínculo afetivo com a filha, tentando não a envolver em conflitos, pois não deseja que ela se depare com as mesmas situações que experienciou. A vivência na geração anterior repercute transgeracionalmente. O genitor não almeja que a sua separação conjugal leve aos filhos as mesmas dificuldades que ele vivenciou na família de origem.

Para F2, o divórcio dos pais não acarretou grandes transformações em sua rotina, uma vez que o vínculo afetivo foi mantido por ambos. Segundo F2, não há dificuldades para encontrar-se com o pai, inclusive a mãe a estimula a ir visitá-lo. Assim, os encontros com o pai ocorrem de forma livre, várias vezes durante a semana. A adolescente conta que a dissolução conjugal foi inicialmente difícil, porém já não estava satisfeita com a forma como os genitores se tratavam enquanto estavam casados e esperava que a separação pudesse ocorrer.

Mesmo mantendo uma relação aberta e amigável com a ex-esposa, o genitor salienta que gostaria de se envolver mais na vida e nas atividades da filha. Em contrapartida, a mãe observa que, após a separação conjugal, suas responsabilidades para com a filha aumentaram.  Apesar do desejo do pai de exercer mais efetivamente a parentalidade, o fato de não morar com o filho pode ser um fator que dificulta a divisão de tarefas e também o exercício parental (Ferreira, Montanher, Mariano, Duarte, & Felipe, 2018).

Família 3: M3 e P3 foram casados por 19 anos. Após brigas e reconciliações, M2 decidiu se separar e, desde então, o ex-casal vivencia um processo de divórcio litigioso. Eles têm três filhos, dois maiores de 18 anos, que não participaram deste estudo, e F3, de 16 anos.

Segundo M3, após a separação, os filhos ficaram bem mais próximos dela e suas responsabilidades aumentaram. Por sua vez, P3 destaca dificuldades em conviver com os filhos após a dissolução conjugal. De acordo com sua visão, a ex-companheira impõe restrições em seu relacionamento com os filhos. Assim, considera que o afastamento dos filhos pode ser fruto dos comportamentos da ex-parceira.

F3 relata ter tido dificuldade para lidar com os embates dos genitores e, por diversas vezes, se viu em situações que teria que tomar partido de um ou de outro. Sobre as visitas, ela conta que a mãe não impõe entraves ao relacionamento com o pai. Porém, salienta que, durante o casamento dos genitores, o pai não era muito próximo dos filhos e que quando ocorreu a separação a mãe ficou muito abalada e precisava mais de seu auxílio. Essa situação indica que F3 também teve problemas de lealdade e o genitor que parecia mais fraco e necessitou de mais ajuda foi preferido em relação ao outro. F3 diz que, no início da dissolução conjugal, o pai não praticava as funções parentais com assiduidade, vivendo em festas e deixando a desejar como pai e ex-marido, não auxiliando a mãe na criação dos filhos.

Outra dificuldade que a adolescente salienta é o fato de não gostar de ir à casa do pai por não manter um bom relacionamento com a namorada dele. F3 diz que gostaria que os genitores tivessem uma relação harmoniosa e que os conflitos pudessem ser minimizados.  Também destaca se sentir satisfeita com a relação de proximidade que mantém com os dois genitores atualmente, diferentemente dos irmãos, que ainda estão mais afastados do pai, ponderando que o divórcio não deve ser encarado somente como algo ruim, visto que hoje é mais próxima do pai do que durante o casamento.

 

Análise de conteúdo das falas agrupadas dos participantes

Os relatos obtidos nas entrevistas, analisados segundo a técnica de Análise de Conteúdo Temática de Bardin (2011), resultaram na identificação de duas categorias. Os dados foram discutidos segundo os pressupostos da Teoria Familiar Sistêmica e da literatura existente sobre dissolução conjugal e parentalidade.

 

Categoria 1 – A construção da parentalidade após a dissolução conjugal: um desafio para a família em reconfiguração

Esta categoria traz discussões acerca dos desafios enfrentados por genitores e filhos na construção da parentalidade após a dissolução conjugal, destacando os desafios enfrentados pela família em processo de reconfiguração.

Nos casos que compõem este estudo, percebe-se uma nítida diferença na ideia do que é ser pai e mãe para os genitores. Enquanto os homens relacionam a paternidade ao provimento da família, crescimento profissional e intelectual para os filhos, as mulheres associam a maternidade a afetividade e dedicação integral à prole, em detrimento de suas próprias ambições. Como dizem: “ser pai é não deixar faltar nada pros filhos” (P1); “Eu hoje penso que sou um exemplo pra ela, estudo muito, quero que ela faça igual a mim que formei em uma faculdade, formei em outra e vou me formar em outra” (P2); Olha, acho [que] depois que você é mãe, você tem outras prioridades de vida, você não vive mais, hoje eu não vivo, não faço planos de vida pra mim (...) então ser mãe é abrir mão de você por eles” (M3).

Evidencia-se, também, que após a dissolução conjugal a dicotomia existente entre o que se espera de um pai e de uma mãe se acentua, dificultando a divisão igualitária das tarefas para com os filhos, o que nos casos em que o divórcio ocorreu de forma litigiosa se mostra como mais um fator de disputa entre ex-cônjuges. Enquanto as mulheres declaram se sentirem sozinhas e sobrecarregadas, os homens destacam a falta de espaço para cumprir suas funções parentais. Nos casos em que a separação ocorre de maneira litigiosa, percebe-se que os homens buscam compensar o sentimento de ausência com a premissa de que contribuem financeiramente com o desenvolvimento dos filhos: “O amor não mudou, mas hoje, às vezes, me sinto sozinha e sobrecarregada, mas não adianta falar com meu ex, porque pra ele ser pai é ser bonzinho, pagar pensão e levar as crianças para passear” (M1).

Pago tudo, não deixo faltar nada, assim eu nuca deixei faltar nada, escola, brinquedo, viagem, roupa, ela me pinta de traidor e incapaz de cuidar das crianças, eu sei que errei, mas meus filhos são meus filhos e eu não quero que no futuro eles me vejam como pai ausente, então quando eles estão comigo faço de tudo pra eles se divertirem. (P1)

Mesmo no caso em que o divórcio ocorreu de forma consensual, nota-se pouca flexibilidade nos papéis parentais esperados para homens e mulheres, contudo, os genitores demonstram reconhecer as funções que cada um exerce e buscam não se atacar, indicando maiores condições para o diálogo e para possíveis modificações no sistema: “A maior parte fica em cima da mãe, fica em cima da mãe, a criança mora com ela, então assim, principalmente questões de levar na escola, buscar, almoço, roupa, é tudo da mãe, mas gostaria de participar mais” (P2).

A naturalização de papéis que determinam funções maternas e paternas dificulta que homens e mulheres se conscientizem da importância do envolvimento de ambos na educação e cuidado para com os filhos, dificultando o exercício da parentalidade, o que tende a contribuir para a sobrecarga materna e para a o afastamento paterno, favorecendo a noção de “mãe cuidadora” e “pai de final de semana” (Ponciano & Féres-Carneiro, 2017). Tais características podem ser observadas no relato de um filho: “Ele só fala que paga as contas. Já até falei pra ele que amor não é só pagar as contas, me dá raiva quando ele fala que não deixa faltar nada, parece que quer me comprar, sabe? (F1a).

Nesse sentido, destaca-se importância da efetivação da coparentalidade Segundo a teoria familiar sistêmica, a relação coparental é compreendida como um subsistema autônomo, no mínimo, triádico (dois adultos cuidadores e uma criança e/ou adolescente), que influencia no desenvolvimento dos filhos e no sistema familiar como um todo e requer um envolvimento compartilhado e recíproco dos genitores nos cuidados com os filhos independentemente de seus laços relacionais (Böing & Crepaldi, 2016).

Torna-se importante, também, que as mães abram espaço para que os pais possam participar de maneira ativa do cotidiano dos filhos, o que a literatura tem denominado como maternal gatekeeping, pois geralmente a guarda dos filhos é da genitora, mas a interação pai-filhos está associada a resultados positivos no desenvolvimento da prole. A naturalização de estereótipos, crenças e funções dadas como maternas e paternas pode desencorajar o envolvimento paterno na criação dos filhos, dificultando a coparentalidade (Altenburger, Schoppe-Sullivan & Dush, 2018).

No que tange ao relacionamento entre genitores e filhos, as mães relatam uma maior aproximação após a dissolução conjugal; já os pais destacam o distanciamento decorrente do fato de não residirem com os filhos: “hoje eles são mais apegados comigo e cobram mais minha presença” (M3).

Ah, é diferente, ficou porque, na verdade, querendo ou não a gente distancia, uma coisa é você estar todo dia junto, igual eu te falei, a gente brincava muito todo dia de videogame, computador, saía e tal. Agora é quando ela quer, acaba que dá uma distanciada. (P2)

Os filhos descrevem o relacionamento com os progenitores como uma extensão do que já se vivenciava durante o casamento, aspectos como afastamento e proximidade se tornaram mais intensos no desenrolar da dissolução conjugal, principalmente nos casos que envolvem processos litigiosos. Nessas situações, a forma como cada filho compreende e é exposto aos conflitos conjugais dos pais também se mostra como um fator relevante para a construção da parentalidade e manutenção dos vínculos afetivos, havendo tanto aproximações quanto distanciamentos – a depender da forma como o sistema familiar se organiza. O pensamento de Ponciano e Féres-Carneiro (2017) segue nesse mesmo sentido: a maneira como pais e filhos estabelecem suas relações diferencia-se conforme a história da união e/ou separação dos pais, desenvolvendo-se diferentes trajetórias de envolvimento após a dissolução conjugal.

No caso em que o divórcio ocorreu de forma consensual (Família 2), a filha relatou não sentir nenhum tipo de mudança no relacionamento para com os pais e destaca que a relação dos genitores favorece a proximidade com ambos, o que difere das outras famílias.  Na Família 1 os filhos relataram uma maior aproximação com a mãe e opiniões diferentes acerca do relacionamento para com o pai: “pra mim ficou melhor, agora não tem mais briga” (F1b).

Ele fica me perguntando o porquê que e eu não gosto de ir lá e se eu não gosto dele e não quero ficar perto dele. Mas não é isso, é [que] quando ele morava aqui ele só trabalhava e nem falava muito comigo eu só ouvia grito, então a gente já não era muito unido. (F1a)

Especificamente neste caso depreende-se que o filho mais velho e o filho mais novo vivenciaram a separação dos genitores de maneira diferente e relacionam-se de forma distinta com o pai, sendo o primeiro mais envolvido nos conflitos conjugais, como visto na fala do pai: “Sem querer colocamos eles no meio das nossas coisas. O (F1a) viu a separação inteira, fiz coisas que eu não queria que ele visse, isso complicou a situação, é difícil explicar pra um filho por que traiu a mãe dele (P1).

Ainda sobre essa questão, em outro caso litigioso (Família 3), percebe-se que, após muitos conflitos, o divórcio gerou uma melhora no relacionamento pai-filha:

A gente não era muito próximo quando ele e minha mãe eram casados, o divórcio acabou aproximando a gente. Nos dois primeiros anos foi difícil, a gente brigava, muito, muito, muito(...) depois disso ele melhorou 100%, minha relação com ele melhorou 100%, a gente ficou muito mais amigo.(F3)

A literatura tem demonstrado a relação entre a interação dos pais e a qualidade da parentalidade exercida. Quanto mais conflituosa a relação conjugal, pior é o exercício e a construção da parentalidade (Hameister, Barbosa & Wagner, 2015; Lamela & Figueiredo, 2016; Poortman, 2018; Silva, Chapadeiro, & Assumpção, 2019). Os genitores têm dificuldades em desvincular a dissolução conjugal da relação parental, envolvendo os filhos em seus embates, o que tende a prejudicar a manutenção dos vínculos afetivos e gerar afastamentos (Silva et al., 2015).

No que tange aos sentimentos despertados nos genitores quando os filhos estão na residência do ex-parceiro, verifica-se percepções diferentes, a depender das relações no sistema familiar. Parece que quanto melhor elaborado o conflito conjugal ou a percepção de parentalidade separada da conjugalidade, maior facilidade os genitores possuem de conceber a ideia de o filho conviver com o ex-parceiro: “tranquilíssima, paz, descanso, me sinto bem, não tenho nenhum problema quanto a isso, não fico preocupada; ela viaja com ele também e eu fico tranquila” (M2); “Sinceramente não gosto, mas eles têm direito de conviver com o pai, eu estou disposta a tirar esses momentos pra mim, mas é difícil pensar que seu filho tá na casa da mulher e do homem que te traiu” (M1).

Por sua vez, quando os filhos foram questionados se havia dificuldades em ver o genitor com o qual não residiam, estes se mostraram conscientes de que têm o direito de conviver com ambos os pais, contudo, as opiniões e sentimentos despertados nos pais com quem residem influenciam no desejo dos filhos em efetivar a visita: “ela fala pode ir, ela até gosta que eu vá lá, ela gosta do meu pai, ela gosta que eu vá lá” (F2); “minha mãe entende que ele é pai e que vai continuar sendo pai e não priva a gente de sair com ele” (F3).

Ela não gosta não, no começo ela odiava, chorava, perguntava de quem a gente gostava mais, agora ela não tá mais fazendo isso. Ela odeia a mulher dele, ele traiu ela com a mulher que ele tá agora, já deixei de ir viajar com meu pai pra não fazer minha mãe chorar. (F1a).

Cabe destacar que a ocorrência de relações extraconjugais pode contribuir para a litigiosidade e, por conseguinte, para a ocorrência de atitudes alienantes do cônjuge “traído”, que, movido por sentimentos de abandono e rejeição, pode dificultar o contato do filho com o outro genitor após a dissolução conjugal (Barbosa & Zandonadi, 2018).

Como visto, mesmo que não seja a intenção dos genitores, os filhos podem ser envolvidos ou se sentirem obrigados a se envolver nos seus embates, o que pode ocasionar sintomas relacionados a conflitos de lealdade e acarretar danos emocionais aos filhos (Silva et al., 2019).É sabido que a família é o primeiro grupo ao qual a criança pertence e onde estabelece seus primeiros vínculos sociais e afetivos, sendo importante que, após a dissolução conjugal, os genitores forneçam um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo, físico e mental dos filhos (Silva & Gonçalves, 2016). Não obstante, para os adolescentes,a qualidade da vinculação aos pais após a separação pode conduzir a uma percepção de segurança emocional que promove maior capacidade adaptativa, autonomia e confiança para lidarem com as dificuldades características da adolescência (Mota, 2016).

Assim, Silva et al. (2015) e Silva et al. (2018) reafirmam a importância de ações que ofereçam suporte às famílias em reconfiguração, de forma a favorecer a construção do exercício parental compartilhado e a desvinculação entre parentalidade e conjugalidade, de modo que os genitores se envolvam nas vidas dos filhos e não os incluam em seus confrontos

 

Categoria 2 – Oficinas de Parentalidade: superando obstáculos

Esta categoria aborda as reverberações da participação nas Oficinas de Parentalidade no sistema familiar, enfatizando a maneira como genitores e filhos absorvem os conteúdos ministrados e aplicam-nos em suas relações parentais.

A experiência do divórcio na vida de um casal afeta a homeostase (equilíbrio) de todo o sistema familiar (Silva et al., 2019). Percebe-se que, muitas vezes, os genitores apresentam dificuldades em lidar com as novas configurações familiares advindas da dissolução conjugal, não sendo raro que os embates entre ex-cônjuges se estendam aos filhos por meio de práticas alienantes que, o que a médio e longo prazo, pode acarretar o surgimento da Síndrome de Alienação Parental, causando graves consequências ao desenvolvimento social, afetivo e familiar de crianças e adolescentes (Catenace & Scapin, 2018; Silva et al., 2015).

Diante deste contexto, a literatura aponta para a necessidade de elaboração de intervenções educativas/reflexivas direcionadas à manutenção do exercício parental após a ruptura dos laços conjugais, principalmente aos genitores que tenham filhos crianças e/ou adolescentes e, que, por vezes, careçam de informações que possam auxiliá-los na elaboração dos conflitos e na distinção de parentalidade e conjugalidade, proporcionando, assim, um ambiente saudável aos filhos (Oliveira & Crepaldi, 2018; Rapizo, 2014; Silva et al., 2018). Em consonância, Brito e Silva (2017) e Kostulski e Arpini (2018) destacam as Oficinas de Parentalidade como uma estratégia que pode auxiliar as famílias a minorar os conflitos familiares oriundos da dissolução conjugal e favorecer a continuidade dos vínculos parentais.

No que tange à construção da parentalidade, os genitores que compõem esse estudo realçam a importância da distinção entre parentalidade e conjugalidade após a participação na Oficina de Parentalidade, demonstrando que os filhos devem ser protegidos e priorizados após a dissolução conjugal por meio da revisão de atitudes nocivas muitas vezes realizadas de forma não intencional e também pela preservação dos vínculos parentais, como visto na seguinte fala: “aprendi que preciso, antes de tudo, pensar nos meus filhos, eles são minha grande prioridade, a conjugalidade acabou, a parentalidade não, já me comportei de maneira inadequada e não quero repetir” (M1).

Por sua vez, os filhos também ressaltam a diferenciação entre conjugalidade e parentalidade, enfatizando a diminuição do sentimento de culpa, a possibilidade de conviver com ambos os genitores, bem como o empoderamento diante de possíveis condutas nocivas dos pais: “tô com mais vontade de ir ver meu pai, com mais paciência, porque ele também é ser humano, o que ele e minha mãe tiveram é deles não é meu” (F1a).

Antes me culpava muito, e antes eu deixava que minha mãe falasse as coisas do meu pai pra mim e que meu pai falasse as coisas da minha mãe pra mim, eu deixava isso acontecer. E depois da oficina, quando eles vêm falar alguma coisa, eu falo que não quero entrar no assunto porque é uma coisa deles, não tem necessidade de eu falar mal de nenhum deles, nem ser colocada no meio. (F3)

É sabido que as contínuas movimentações e transformações que acometem a família ecoam na dinâmica relacional e exigem redimensionamento e adaptação de cada membro que compõe o sistema familiar (Bowen, 1989). A mudança nos comportamentos de um dos membros da família afeta os demais, visto que o funcionamento do sistema familiar é interdependente (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012). Nesse sentido, a construção da parentalidade após o divórcio/dissolução conjugal depende em larga medida da forma como os genitores administram seus conflitos e estabelecem suas relações para com os filhos (Mota, 2016).

Como apresentado neste estudo, a participação nas Oficinas de Parentalidade reverbera de forma positiva no sistema familiar, possibilitando tanto aos genitores quanto aos filhos reflexões acerca de ações e comportamentos, o que auxilia na manutenção dos vínculos afetivos. Em consonância, Schmidt, Staudt, e Wagner (2016) ressaltam que a literatura tem demonstrado resultados positivos de intervenções que visam ao favorecimento da parentalidade e do estímulo à coparentalidade após a dissolução conjugal, uma vez que essas práticas podem fornecer evidências para a atuação profissional, bem como subsídios para a formulação e aprimoramento de programas e políticas públicas em benefício das famílias. Sendo assim, propostas de trabalho com famílias pós-divórcio se mostram promissoras e devem ser estimuladas.

 

Considerações finais

Por meio da análise dos casos que integraram este estudo, pôde-se observar que, por vezes, os genitores, mesmo que não intencionalmente, envolvem os filhos em seus embates, acarretando conflitos de lealdade, o que pode prejudicar a continuidade das relações parentais e gerar danos emocionais às crianças e aos adolescentes.

Observa-se que o exercício da parentalidade ainda está atrelado à dicotomia existente entre papéis maternos e paternos, o que dificulta que as tarefas sejam igualmente compartilhadas pelos genitores, acarretando sobrecarga às mães e sentimento de ausência nos pais após a dissolução conjugal. Ressalta-se que o pai ainda é o membro parental mais afastado, mesmo durante o casamento. Entretanto, o papel do paterno vem se modificando e o divórcio pode emergir como uma maneira de repensar a relações parentais e favorecer aproximações. Destaca-se que a influência dos papéis de gênero na construção da parentalidade ainda é um tema pouco presente no material disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que sugere que essa temática seja incluída para o aprimoramento da intervenção.

A distinção entre conjugalidade e parentalidade é um grande desafio para o exercício parental, o que favorece atitudes alienantes do ex-casal, acarretando prejuízos ao desenvolvimento dos filhos, principalmente nos casos em que o divórcio ocorre de forma litigiosa. Nesse sentido, deve haver um grande esforço tanto de pais quanto de filhos para se adaptarem às mudanças do divórcio e preservar os vínculos parentais, sendo as Oficinas de Parentalidade uma importante estratégia de reflexão e suporte às famílias.

Visto a complexidade do fenômeno das dissoluções conjugais, suas repercussões nas relações entre pais e filhos, não se teve a intenção de generalizar os dados aqui apresentados, mas, sim, apontar singularidades vivenciadas por famílias envolvidas em processos de divórcio/dissolução conjugal e as repercussões da Oficina de Parentalidade. Por se tratar de um estudo de casos múltiplos, a limitação desta pesquisa consiste em apresentar um número reduzido de casos e de não se conseguir discutir os diferentes aspectos teóricos que permeiam a questão da dissolução conjugal e parentalidade.

Contudo, entende-se que as contribuições deste estudo estão relacionadas à inclusão da percepção de pais e filhos, bem como a um maior conhecimento acerca das reverberações de uma Oficina de Parentalidade no exercício parental pós-divórcio. Para estudos futuros, sugere-se a elaboração de trabalhos que incluam tanto pais quanto filhos, que participaram e que não participaram das Oficinas de Parentalidade e, também, pesquisas que busquem conhecer a perspectiva dos profissionais que atuam com as famílias envolvidas em processos de divórcio, buscando o aprimoramento de intervenções que favoreçam a coparentalidade.

Ademais, compreende-se que os resultados obtidos neste estudo, principalmente no que diz respeito à visão dos filhos, podem colaborar para estimular iniciativas que auxiliem a saúde e o bem-estar das famílias em reconfiguração, bem como aprimorar e expandir as Oficinas de Parentalidade. Dessa forma, a família pode perceber que o divórcio não é só uma ruptura, mas, também, uma oportunidade de reestruturar os vínculos parentais.

 

 

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Recebido em: 05/12/2019
Aprovado em: 20/03/2020

 

 

I Liniker Douglas Lopes da Silva (0000-0002-8259-7618) é mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (PPGP/UFTM). E-mail: liniker08@hotmail.com

II Cibele Alves Chapadeiro (0000-0003-2177-8295) é doutora pelo Programa de Psicologia Experimental no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Docente aposentada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça de São Paulo. E-mail: cibele.chapadeiro@uftm.edu.br

III Luciana Maria da Silva (0000-0002-1001-0494) é professora Adjunta do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutora em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: lumarias@hotmail.com

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