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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo jan./abr. 2020

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

O Silêncio dos Homens

 

 

Ana Luisa de Almeida Prado de Andrade CoutinhoI, Maria Gabriela Mantaut LeifertII

 

 


 

 

“Não existe bebê — no sentido de que quem se propõe a descrever um bebê vai descobrir que está descrevendo um bebê e alguém mais. Um bebê não pode existir sozinho, mas é essencialmente parte de uma relação” D. W. Winnicott (Salomon, 2013, p.12)

A entrada da criança na família se dá muito antes de seu nascimento. Ela é fruto da intersecção das histórias contadas e vividas por seus antepassados, da interação do sistema de crenças e valores de ambas as famílias, do contexto social e cultural no qual estão inseridas. A criança entendida como um ser social e relacional chega ao mundo carregando um leque de projeções e expectativas, às vezes explícitas, outras implícitas. O que fazer quando tudo aquilo que foi idealizado, pensado, gestado, sonhado cai por terra diante de uma realidade inesperada? Como cada família e indivíduo vão acolher a mudança de planos que o destino traçou?

A partir dessas perguntas, o professor, psicólogo e ativista LGBT Andrew Salomon escreveu o livro Longe da Árvore, com o intuito de refletir sobre como as famílias reagem ao ter um filho diferente do esperado. Entrar nesta discussão nos pareceu relevante, na medida em que estamos vivendo tempos sombrios onde a diferença, por vezes, se deseja suprimida ou normatizada. Movimentos como o da cura gay servem de exemplo de posturas que buscam retomar uma ideologia de gênero mais conservadora, voltada a padrões rígidos e de adequação única. A partir do livro, Salomon produziu o documentário “Longe da Árvore”, um filme impactante que nos coloca diante de histórias narradas por seus próprios intérpretes e seus familiares, como se estivéssemos em um reality show.

Salomon, que mora em Londres, inicia a narrativa contando sua própria história. Desde criança sentia-se diferente, foi recusado por 10 escolas por ser disléxico, sua mãe travou uma luta árdua para conseguir que ele iniciasse os estudos e se alfabetizasse. Comenta que era um menino excêntrico e gostava de chamar atenção. Na adolescência pôde assumir sua homossexualidade. Esse fato foi um choque para sua mãe, que nunca aceitou sua orientação sexual. Na tentativa de agradar a mãe, Salomon consultou especialistas para “tratar” sua inclinação homoafetiva. Nessa fase experimentou momentos de intenso isolamento, que culminaram, após muito sofrimento, com a aceitação de sua identidade sexual e no desenvolvimento de uma pesquisa com famílias que tivessem vivências semelhantes à sua. Este trabalho levou 10 anos e ao longo desse período foram entrevistadas 300 famílias.

O filme apresenta histórias variadas e interessantes, começando pelo relato da família de um menino autista que luta arduamente para conseguir se comunicar com seu filho. Notamos, cena após cena, como a relação vai sendo construída, incorporando a cada passo do tratamento a ambivalência de sentimentos e a aceitação da condição não desejada. Relata as dificuldades dessa relação de isolamento que pais e filho vivem e, após encontrar ajuda adequada, a possibilidade de comunicação é conquistada. O desafio que essa família trava de aceitar a diferença e os próprios sentimentos de hostilidade são fundamentais para a construção de uma relação mais integrada entre pais e filho, sem falar nos outros membros da família, que compartilham de diferentes lugares relacionais.

Somos apresentados a muitos depoimentos desde a perspectiva da diferença. Outro caso é o de uma família que tem um filho adulto com síndrome de Down e sua adaptação ao morar com dois amigos também com o mesmo problema. Para além dos cuidados da família, existe a preocupação em preparar o filho para exercitar a autonomia que lhe é possível. Também observamos a preocupação da mãe em relação à sua própria finitude, tendo vivenciado recentemente a morte do esposo e a vulnerabilidade que esta condição impôs à família.

A título de superação, assistimos à história de Vincent, um homem jovem, de 20 e poucos anos, que possui apenas tronco com braços reduzidos, andando de cadeira de rodas motorizada. Trabalha dando aulas, participa de palestras, consegue namorar e se casar com uma moça anã, e ambos têm uma filha normal. Ao iniciar seu depoimento, ele faz uma interessante reflexão sobre o olhar do outro. Como pensar que alguém com tantas limitações pode ser feliz? Deve ser difícil para as pessoas vê-lo e pensar que ele é feliz, pois, afinal, nos relacionamos com o corpo e a partir do corpo; quem tem tantas limitações físicas tende a despertar sentimentos de compaixão e tristeza. Como conhecê-lo a partir de outro lugar relacional? Daquilo que ele pensa, de seus projetos? Como podemos suspender o que estamos vendo para ver além? Vincent é, em si, uma quebra de paradigma, pois consegue, a partir de todas as suas limitações, se colocar no mundo como um ser humano em pé de igualdade e viver, de forma plena, uma vida familiar aparentemente satisfatória.

O filme incentiva a reflexão sobre a família em que se nasce e a família que se constrói, sobre a possibilidade intrínseca de cada grupo familiar buscar novos sentidos para tudo aquilo que sai do padrão. A narrativa embasa a tese de que uma nova família é construída a partir do inesperado. A ruptura da expectativa coloca familiares em um longo processo de aceitação e revisão de padrões, valores e condutas. O autor faz uma distinção entre a capacidade de amar e a capacidade de aceitar, refere que as famílias de modo geral amam seus filhos, mas muitas vezes não os aceitam. Pensamos que talvez este seja um dos pontos altos da narrativa: em inúmeras famílias a condição amorosa está preservada, mas o que vemos é falta de aceitação. O autor comenta que admitir a diferença enriquece o amor.

Nesse processo de aceitação os pais vão em busca de recursos para ajudar seus filhos a desenvolverem o potencial que têm, para conquistar uma vida além dos limites. Na pesquisa, o autor relata que esses pais dão depoimento de que hoje não conseguem pensar suas vidas sem a presença desses filhos “diferentes”, pois observam que se tornaram pessoas melhores. O filme propõe também uma reflexão ética sobre as escolhas individuais para além de uma padronização uniformizada do que é normal, numa época de grande desenvolvimento científico, exames que fazem mapeamento genético do feto, ultrassom em 3D para identificar anomalias, reprodução in vitro, em que se pode escolher as características dos doadores, cor da pele, altura, inteligência etc.

Grupos e associações minoritárias se unem para defender seus direitos como cidadãos e serem felizes nas suas particularidades. As políticas públicas de inclusão e assistência favorecem que esses “diferentes” tenham recursos para se desenvolver levando alguns grupos a defenderem uma bandeira de “naturalização da atipia”. Pregam o direito de serem diferentes e de terem filhos com herança vertical, uma vez que consideram que conseguiram se desenvolver e se realizar apesar das limitações.

Além disso, o próprio Salomon, que durante parte de sua vida pensou que nunca realizaria o sonho de ser pai em função de sua condição de homossexual, acabou formando uma família muito diferente do padrão. Uma possibilidade que, mesmo inusitada, nem sempre bem aceita, foi possível acontecer. Ao assistir a esse filme, é impossível ficar indiferente; somos convidados a refletir sobre nossa condição de estar no mundo, e nos emocionar com as histórias apresentadas por seus próprios atores. É um filme que fala de amor, aceitação, superação, e nos ensina a enxergar para além das aparências!

 

 

I Ana Luisa Almeida Prado de Andrade Coutinho, Terapeuta de Casal e Família, Mediadora de Conflitos, Coordenadora da Clínica de Mediação Instituto Noos, participa da equipe da gestão do Instituto Noos. E-mail: analuisacoutinho27@gmail.com

II Maria Gabriela Mantaut Leifert, Psicóloga Clínica, Mestre em Psicologia Social USP, Terapeuta de Casal e Família, Mediadora de Conflitos, Coordenadora da Clínica de Mediação Instituto Noos, Membro da Diretoria APTF gestão 2014/2018 e 2018/2020, Professora e Supervisora na UNIFESP do Curso de Especialização em Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade. Facilitadora de Grupos, participação em Projeto na Liga Solidária 2018/2019 e Sócia-Fundadora Sanga 8 Cursos para Desenvolvimento Profissional. E-mail: mgmleifert@gmail.com

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