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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo jan./abr. 2020

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

Os Vingadores – Ultimato: os super-heróis também choram, envelhecem e morrem!

 

 

Ivânia Jann LunaI, Gabriella Renuncio BodaneseII

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil.

 

 


 

 

Dirigido por Anthony Russo e Joe Russo, com roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely, Os Vingadores – Ultimato (título original: Avengers – Endgame) é continuação direta de Os Vingadores: Guerra Infinita (2018), e também o vigésimo segundo do Universo Cinemático da Marvel. “Ultimato” foi assistido por milhares de crianças, adolescentes e adultos ao redor do mundo, uma vez que o filme anterior levantou a expectativa sobre qual seria o destino dos vingadores, do planeta terra e do anti-herói Thanos. O filme que está sendo resenhado atende a essa expectativa, mas vai além, nos permite refletir sobre o que significa lidar com o luto e a morte, principalmente na perspectiva de ser um super-herói sobrevivente.

O desafio dos vingadores no filme “Ultimato” é reverter o genocídio promovido por Thanos. No entanto, eles são também desafiados quanto à recuperação do sentido da sua própria existência, uma vez que a derrota imposta por Thanos gerou um mundo devastado e enlutado. Para tanto, cada super-herói desenvolve um processo de luto e um estilo próprio de enlutar-se. O Capitão América conduz um grupo de apoio a pessoas enlutadas e, como elas, expressa o seu pesar; a viúva negra, inquieta e chorosa, busca recompor a equipe de vingadores remanescentes para iniciar a vingança contra Thanos; a máquina de guerra, tomada pela fúria e desejo de vingança, elimina pessoas que não considera dignas de continuar vivendo; o homem de ferro, ao viver isolado com a sua mulher e filha, abandona a sua identidade de super-herói; e Thor, personagem sempre mostrado como forte e resiliente em outros filmes da Marvel, aparece com ganho de peso acentuado, alta ingestão alcoólica, humor triste e irritado.

Nestas cenas iniciais do filme vemos vários estados emocionais, cognitivos e comportamentais que caracterizam o processo de luto dos super-heróis, como os sentimentos de impotência, fracasso, dúvida, culpa, anseio e protesto, raiva e tristeza (Parkes, 1996). Por sua vez, este processo permite a eles reconstruírem parte de seu mundo presumido por meio de novos significados dados às suas vidas e ao mundo (Parkes, 1988). Desta forma, observa-se que, durante a batalha final contra Thor e quando o planeta terra volta a ser o que era, os vingadores constroem novos desfechos pessoais para dar continuidade à sua existência e não apenas à do planeta. O Capitão América decide envelhecer para poder ficar com a mulher que ama; a viúva negra sacrifica sua vida atirando-se no precipício em busca da pedra da alma (o que significaria a possível derrota de Thanos); o homem de ferro luta com Thanos até perder as forças e morrer; Thor cresce emocionalmente durante o seu processo depressivo e sai fortalecido para enfrentar Thanos; e Hulk encontra equilíbrio entre Hulk/Banner, conseguindo conciliar a característica de cada um e viver em harmonia com a sua raiva.

O enredo do filme e a trajetória de cada super-herói propõem uma narrativa que pode ser um instrumento reflexivo que sinaliza para a importância de se lutar por um mundo ético, humanitário e democrático, mas, acima de tudo, implicam a todos quanto à necessidade de se construir significados pessoais sobre a existência quando se está diante de tragédias pessoais e humanitárias. E, por isso, recomendamos que este filme seja utilizado por educadores e profissionais de saúde em conversas formais e informais com crianças que constroem a concepção de morte e morrer; com adolescentes e adultos que enfrentam desafios no seu processo de desenvolvimento. Em todas estas situações está em questão a desmistificação dos mitos de imortalidade e invencibilidade.

Na contemporaneidade já não é mais possível sustentar conversas significativas que alimentem os mitos assinalados, ou seja, os poderes de um ‘super-herói’. Ainda que haja tecnologias de saúde que profetizam a felicidade e juventude eterna e, por isso, sejam atrativas, observa-se uma ampla adesão de pessoas ao movimento que ocorre em várias capitais brasileiras, os ‘Death Cafés’. Estes constituem espaços de fala e de relacionamentos por meio dos quais pessoas comuns buscam compreender o sentido da vida, da morte e das suas tragédias. Por sua vez, observa-se que nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia e nas áreas da saúde e educação, ainda é incipiente a inclusão de estudos e vivências que abordem os lutos do profissional quando perde um paciente, colegas de trabalho, amigos, familiares – seja por suicídio ou não. Como nos alerta McGoldrick (1998), o terapeuta é colocado numa situação de invulnerabilidade com relação à morte e, ao mesmo tempo, se pensa que ele estará mais bem preparado para lidar com ela do que qualquer outra pessoa. A questão é que o terapeuta é tão vulnerável quanto às famílias a que atende:

“...para ajudar as famílias a enfrentar as perdas, nós como clínicos e a terapia de família como campo devemos enfrentar o fato inescapável da morte, a inevitabilidade da perda na vida e o terror de nossa própria mortalidade (...) precisamos aceitar o nosso próprio medo da morte e os limites de nosso controle de modo a desmistificar as questões de perda, para que não continuemos a negar sua significação ou negligenciá-la em nossa teoria e prática clínica.” (Walsh & McGoldrick, 1998, p.52).

Sugerimos que o filme “Ultimato” possa auxiliar no reconhecimento das perdas e lutos de cada dia, bem como no estilo de enlutar-se de cada um, a partir de diferentes situações, crenças e valores localmente construídos. Além disso, que estudantes e profissionais possam se construir como pessoas/terapeutas que toquem verdadeiramente a alma humana por meio de recursos que são humanos: a construção de significados compartilhados por meio da escuta empática e do acolhimento coletivo. Pessoas, terapeutas e super-heróis também choram, envelhecem e morrem!!!

 

 

Referências

Parkes, C. M. (1988). Bereavement as a psychosocial transition: Processes of adaptation to change. Journal of Social Issues, 44(3), 53-65.         [ Links ]

Parkes, C. M. (1996). Estudos sobre o luto na vida adulta. São Paulo: Summus Editorial.         [ Links ]

Vingadores - Ultimato. (2019). [film] Directed by A. Russo and J. Russo. Marvel Studios.

Walsh, F., & McGoldrick, M. (1998). A perda e a família: Uma perspectiva sistêmica. In F. Walsh & M. McGoldrick (Orgs.). Morte na família: Sobrevivendo às perdas (pp. 27-55). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

I Ivânia Jann Luna: É professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Psicóloga (UFSC), com formação em Terapia Relacional Sistêmica; Mestrado em Psicologia Clínica (PUC/SP) e Doutorado em Psicologia (UFSC). É fundadora e coordenadora do Laboratório de Processos Clínicos e Psicossociais no luto (LAPPSILu) da UFSC. https://orcid.org/0000-0003-3095-5134. E-mail: ivania.j.l@ufsc.br

II Gabriella Renuncio Bodanese: Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente residente em psicologia no programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Tiago (HU/UFSC), com foco em atenção à saúde em Alta Cmplexidade. E-mail: gabriella_bodanese@hotmail.com

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