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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo Jan./Apr. 2020

 

ECOS

 

Pelos Caminhos do Diálogo Aberto: reflexões sobre aprender, praticar e formar profissionais no contexto da saúde mental no Brasil

 

 

Maitá FigueiredoI

I Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil.

 

 


 

 

“Como cada um quer usar esse espaço hoje?”. Essa é uma das perguntas de abertura da abordagem do Diálogo Aberto apresentada pela Cecília Villares na última edição da NPS. Como todo o restante do artigo, a questão me soou convidativa na missão de construir esse texto. Então, digo que quero usar esse espaço como uma das formas de aceitar o convite da autora, para que ressonâncias e ecos se façam presentes nessa conversa que tanto me agrada.

Entre outros feitos, o artigo Pelos Caminhos do Diálogo Aberto: reflexões sobre aprender, praticar e formar profissionais no contexto da saúde mental no Brasil transita com delicadeza e arte entre o autobiográfico e o informativo. Um autobiográfico que me contou da vida da autora e, também, da vida de tantos outros colegas trabalhadores da Saúde Mental implicados na construção de formas mais horizontalizadas, respeitosas e inclusivas de atuação nos diferentes espaços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Em uma primeira escuta, a abordagem do Diálogo Aberto me diz mais sobre a prática de equipes interdisciplinares em serviços de Saúde Mental do que sobre a prática de terapia familiar stricto sensu – permaneço curiosa para entendê-la sob este segundo olhar. Jaakko começa a dar corpo à sua abordagem por volta de 1980, penso que ecoando iniciativas importantes no que diz respeito a novas formas de pensar e agir no campo da Saúde Mental, como a Reabilitação Psicossocial e o Recovery (Anastácio & Furtado, 2012; Saraceno, 1999). Um primeiro ponto de identificação entre essas iniciativas é o fato de se proporem a abrir as portas da comunidade para as pessoas com transtornos mentais graves, no momento em que a desinstitucionalização fechava as portas das instituições (Anthony & Farkas, 2009).

Pensar um serviço de saúde estruturado sob os princípios do Diálogo Aberto me remete quase imediatamente aos serviços da Atenção Primária à Saúde do SUS (APS). Ajuda imediata, perspectiva de rede, flexibilidade e responsabilidade1 são norteadores que ressoam nas propostas do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e da Estratégia Saúde da Família (ESF), equipes que frequentemente encontram na composição de saberes, na escuta empática e na tomada conjunta de decisões, recursos preciosos na efetivação das ações. Essa associação, também trazida pela autora no artigo, me ajuda a entender um potencial amplificado na estratégia finlandesa – uma estratégia capaz de dar continência não só às crises da alma, mas também às crises do corpo?

Já há alguns anos, o Projeto Terapêutico Singular (PTS) vem ganhando espaço e sendo aperfeiçoado nas diferentes esferas do SUS, passando pela APS e pela RAPS. Pressupõe reuniões abertas entre pacientes, profissionais e familiares nas quais, a partir da perspectiva de cada um, são pensadas demandas, objetivos do tratamento e estratégias que serão usadas para alcançá-los. Norteado pela intersetorialidade, o PTS presume a participação dos diferentes serviços que atendam o paciente, sejam eles da Saúde, da Educação ou da Assistência Social. Demais instituições e pessoas significativas na vida do paciente também são convidadas a participar, de acordo com o momento e a demanda. A ideia é que o PTS caminhe a partir da corresponsabilização (como cada uma das pessoas presentes pode colaborar nesse percurso) e do follow up permanente (encontros periódicos para avaliação e revisão dos objetivos e estratégias). Como sugerido por Cecília, existem pontos de encontro entre esse formato de acordo terapêutico e o do Diálogo Aberto, sobretudo no que diz respeito à horizontalidade na conversa e à tomada conjunta de decisões.

A partir da experiência com a implantação do PTS em um serviço psiquiátrico terciário de um hospital universitário2, tendo a pensar o quanto é ainda estrangeiro para nossas equipes lidar com a tolerância à incerteza e com disponibilidade para o diálogo genuinamente horizontal, sem hierarquização do saber e prescrição de modos de ser. Fico na dúvida se essa chega a ser uma questão ou uma referência para os serviços. Tendo a pensar que ainda lidamos com o PTS como um método, um jeito de fazer atendimentos que a gente aplica, sem que necessariamente reflita mudanças na nossa forma de estar no encontro com o outro, com nossos pacientes e seus familiares. Uma postura dialógica em sua dimensão ética, relacional e encarnada precisa ser aprendida, praticada e, sobretudo, vivida, experienciada para que faça sentido, para que passe de um método aplicável para uma forma de estar na relação. Talvez este seja um grande desafio para as equipes de Saúde Mental da RAPS, a começar pelas relações que acontecem intraequipe, entre os pares, em um contexto ainda tão marcado pela centralidade médica e hierarquização do saber.

Às questões deixadas pela autora ao final do artigo, peço licença para acrescentar mais uma, a mim particularmente intrigante. Tive oportunidade de estar com Jaakko apenas uma vez, no workshop Diálogos Abertos Geram Novos Recursos em Crises de Saúde Mental, promovido pelo Instituto Noos em abril de 2019. Em meio a exemplos inspiradores de manejos e desfechos de casos atendidos pela equipe finlandesa, Jaakko nos contou sobre a prática de não medicar os pacientes com neurolépticos no momento da crise e nas semanas que se seguem, partindo da premissa de que os efeitos deletérios dificultariam o processo de recuperação. Não tive clareza se essa restrição é aplicada também aos benzodiazepínicos e demais classes de psicofármacos, configurando um acolhimento à crise que a priori já não prevê o auxílio medicamentoso. Fiquei pensando nas inúmeras situações agudas que chegam diariamente aos nossos serviços psiquiátricos do SUS, muitas vezes acompanhadas pela violência e pelo risco, por relações esgarçadas, famílias esgotadas, diálogos interditados; situações nas quais as medicações, a meu ver, acabam tendo um papel importante, nem sempre de contenção, mas algumas vezes de continência.

Falar da Saúde Mental é falar também da oposição histórica entre modelos biomédicos e modelos psicossociais de atenção. É falar de um campo onde a composição não costuma ser considerada e onde os diferentes discursos não se reconhecem. Talvez o exercício dialógico possa começar nesse ponto, entendendo que estar em diálogo pressupõe a polifonia, a legitimação, a coexistência, o debate e a reflexão incansável. É incômodo, é campo de tensão, mas não me parece haver outro caminho.

 

 

Referências

Anastácio, C. C. & Furtado, J. P. (2012). Reabilitação Psicossocial e Recovery: conceitos e influências nos serviços oferecidos pelo sistema de saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 4(9),72-83.         [ Links ]

Anthony, W. A., & Farkas, M. D. (2009). Primer on the psychiatric rehabilitation process. Boston: Boston University, Center for Psychiatric Rehabilitation.         [ Links ]

Boccardo, A. C. S.; Zane, F. C.; Rodrigeus, S., Mângia. E. F. (2011).  O projeto terapêutico singular. Rev. Terapia Ocupacional, USP, 22(1), 85-92.         [ Links ]

Brasil,(2005). Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil,         [ Links ] Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas.Brasília: Ministério da Saúde.

Ferigato, S. H., Campos, R. T. O., &Ballarin, M. L. G. S. (2007). O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 31-44.         [ Links ]

Saraceno, B. (1999). Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá/Instituto Franco Basaglia.         [ Links ]

 

 

1 Compõem os 07 princípios do Diálogo Aberto, junto com Continuidade Psicológica, Tolerância à incerteza e Dialogismo.

2 IPq HCFMUSP – Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde trabalhei por 11 anos no Centro de Reabilitação e Hospital Dia, em atividades de assistência, ensino, pesquisa e gestão.

 

I Maitá Figueiredo: Terapeuta de Casal e Família pelo Instituto Sistemas Humanos. Especialista em Saúde Mental e Reabilitação Psicossocial pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Associada Efetiva e Integrante da Equipe Clínica do Instituto Noos. E-mail: maita_figueiredo@yahoo.com.br

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