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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo Jan./Apr. 2020

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

Comunidades heterogêneas, produção do comum e acolhimento ao incomum

 

 

Entrevista com Isabela Umbuzeiro ValentI por Anita MachadoII e Leonora CorsiniIII

I Universidade de São Paulo, Brasil.

II Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil.

III Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil.

 

 


 

 

A partir do nosso acesso à pesquisa realizada por Isabela Umbuzeiro Valent, Terapeuta Ocupacional, mestre prestes a defender sua tese de Doutorado em Estética e História da Arte pelo PGEHA-USP (Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo), ficamos instigadas a conhecer um pouco mais do trabalho sobre o que ela denomina “comunidades heterogêneas”, coletivos culturais e artísticos que atuam em São Paulo há quase três décadas. Como diz Isabela, esses coletivos não foram criados para atender a um público específico: indo além de categorias identitárias, rótulos e diagnósticos, acabam formando redes de cuidado e mútua ajuda que visam à construção de um “comum”1 em termos de acesso à cidadania, de direito à cidade e de acolhimento e respeito por tudo o que é incomum, singular, expressão de diferença. Como parte da pesquisa, foi produzido de modo colaborativo o documentário Incomuns, que retrata as experiências de grupos como Cia. Teatral Ueinzz; Coral Cênico Cidadãos Cantantes; Oficina de Dança e Expressão Corporal ODEC; Coletivo Preguiça; Ponto de Cultura É de Lei; Ponto Benedito – Economia Solidária e Cultura; e Clínica Pública de Psicanálise, trazendo as vozes das pessoas que participam de cada coletivo, das instituições que colaboram, de pesquisadores e apoiadores dos diferentes projetos. O documentário será lançado ao público em 2020, e a ideia é que ele possa circular e gerar debates com diferentes grupos. Também serão disponibilizadas versões estendidas das entrevistas com cada coletivo no canal Incomuns do YouTube. Desde o início da conversa Isabela enfatiza que há uma intencionalidade na pesquisa de produzir conhecimento não só junto com os participantes, mas que esses saberes sirvam aos próprios coletivos e às demais pessoas envolvidas.

A entrevista aconteceu em São Paulo no dia 14 de fevereiro de 2020, no Instituto Noos. Uma das entrevistadoras participou via Plataforma Zoom. Com isso, a conversa pôde ser gravada com a permissão de Isabela para ser posteriormente transcrita e publicada na NPS.

 

***

 

Anita: Seja bem-vinda, Isabela, ficamos felizes por você ter aceito vir conversar conosco sobre o seu trabalho que, embora não esteja diretamente ligado à nossa prática de atendimento e assistência a famílias, tem atravessamentos e conexões que nos convidam a visitar outros territórios de produção de conhecimento e saúde. Queria começar te perguntando como foi esse percurso, com os coletivos e as oficinas, até chegar à sua tese – que você acaba de depositar na USP? Qual é a história dessa ideia de conhecer, entrevistar e filmar os coletivos?

Isabela: Não sei se conseguiram ver todos os vídeos e os textos já publicados, acabamos tendo em mãos um material riquíssimo que só em parte foi analisado na tese. O mais gratificante para mim foi poder construir uma parceria com as pessoas que foram entrevistadas, e a ideia de construir, a partir das oficinas, um filme documentando as experiências vividas em cada um desses grupos foi também para poder deixar um registro vivo desse material, um acervo histórico e social, ao mesmo tempo oferecendo uma devolutiva quase que imediata às pessoas que colaboraram e se relacionaram conosco e entre elas. No decorrer da pesquisa, enquanto aconteciam as oficinas colaborativas em vídeo, os participantes do projeto começaram a circular e a se relacionar entre si porque colocávamos as equipes misturadas. Alguns já se conheciam, outros não, e nos próprios coletivos, alguns já tinham notícia do que os outros grupos faziam, mas ainda não tinham se encontrado. Também começaram a se interessar em entrevistar uns aos outros, às vezes seguindo perguntas que eu propus, outras fazendo as próprias perguntas, perguntas que ainda não tinham sido formuladas sobre o fazer de cada grupo. Foram se apropriando desse conhecimento sobre cada participante, cada grupo, inaugurando conversas e diálogos que não tinham acontecido antes. E eu me empenhei para que todos que participaram do processo tivessem acesso ao que resultou dos encontros, então a oficina de audiovisual funcionou como mediadora de relações, de uma produção compartilhada de conhecimento que não opera só no discurso, apesar de ter muita entrevista, uma experimentação audiovisual bastante ligada a depoimentos, muitas histórias, memórias, elementos históricos e sociais da trajetória de cada grupo por vezes desconhecidas até pelos participantes que chegaram depois. É algo muito vivo, por isso todo o meu empenho em deixar tudo disponível.

Anita: Então o material é fruto de uma pesquisa-intervenção, numa perspectiva antropológica, ou seja, já vai sendo produzido e produzindo para os próprios participantes, o que rompe com a lógica de um “objeto” que faz parte de um experimento. É outra lógica de produção de conhecimento.

Isabela: É, e foi bem desafiador sustentar isso porque, imagina, o próprio processo vai te empurrando, porque [o participante do grupo] é autor e produtor de conhecimento, mas seu lugar de autoridade sobre o próprio saber é muito pouco reconhecido, esse saber próprio que ele já traz; eu tentei ficar implicada nessa questão desde o começo. Respondendo a sua pergunta sobre a história dessa ideia, eu me formei como TO na USP em 2007 e mantenho vínculo até hoje, como pesquisadora, com o laboratório PACTOLaboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional – da universidade. O PACTO começou a funcionar na década de 1990, no momento em que tinha início a redemocratização no país e o processo de construção de direitos com o fim da ditadura militar. Eu já vinha transitando, desde a Graduação, por projetos relacionados à cultura e às artes que fazem interface com a saúde e a saúde mental e quando o PACTO fez parceria com o Coral Cênico Cidadãos Cantantes, em 2006, fui a primeira estagiária no Coral. Aí começou meu envolvimento com esse tipo de projeto e descobri que era com isso que eu queria trabalhar. Mas, você sabe, é difícil se manter nesse tipo de trabalho porque esses projetos às vezes têm parceria e patrocínio, às vezes não, ficando até mesmo sem “lugar”, não tendo como contratar e remunerar profissionais. Enquanto fazia o Mestrado, fui ganhando experiência com produção audiovisual e nesse momento comecei a trabalhar no Ponto de Cultura É de Lei como “oficineira” de fotografia. Pouco depois passei a coordenar toda a parte de arte e cultura da ONG, criando um dispositivo audiovisual dentro do Centro de Convivência2. O É de Lei é um espaço aberto, voltado para esse público, mas não restrito a ele; qualquer pessoa pode chegar e interagir. É gerido por uma organização da sociedade civil e a partir dessa experiência lá pude começar a entender como é que se dá a sustentação de um projeto que tem uma equipe bem pequena – entre dez e vinte pessoas – com muitos desafios em diversos níveis, desde a captação de recursos até o atendimento à comunidade em geral e aos conviventes sem uma proteção institucional. Não é um CAPS, a gente nunca fez parceria com o poder público, ou um convênio para implementar um serviço; funcionamos sempre de forma autônoma.

Anita: Mas, a partir do momento que se tornou Ponto de Cultura...

Isabela: Sim, aí foi possível captar recursos através dos editais e também de outros projetos além da área da saúde, como os ligados às políticas culturais. O centro de convivência tem entre seus propósitos oferecer acesso a direitos e cidadania, atenção e cuidados em saúde, bem como advocacy pelos direitos dos usuários e conviventes. Quando começou, em finais dos anos 1990 e início de 2000, não havia muitos espaços com essas características, mas hoje, com a multiplicação de espaços e serviços em saúde e cidadania, grande parte das atividades se dá no campo, na rua, então o É de Lei acaba se tornando um lugar de chegada, de acolhimento, para que, a partir de lá, os conviventes possam acessar outros serviços, outros espaços. Foi lá que comecei a aprender a fazer projetos, a conhecer sobre gestão, movida pela vontade de encontrar meios de resistir. Naquela altura começávamos a receber outros estagiários do PACTO, que ainda mantinha uma parceria com o É de Lei e fui conhecendo outros projetos, me apropriando de metodologias de trabalho com grupos, aprendendo a desenhar projetos coletivos para criação artística, produção de imagens, fotografia e vídeo. Quando comecei o Doutorado a minha questão já estava delineada: como é que esse tipo de projeto se sustenta, como pode se manter durante tantos anos? Para dar uma ideia, o Coral Cênico é de 1992; a Cia. Ueinzz, de 1997; o É de Lei, de 1998 ... Eu acho que são projetos de vanguarda, corajosos por terem conseguido se manter com tamanha autonomia. Muito interessante também porque propõem uma outra relação com a cidade em termos de políticas públicas.

Leonora: E como foi feito o mapeamento desses coletivos?

Isabela: Na verdade, eu já conhecia vários deles porque, quando eu ainda estava no É de Lei fazíamos um trabalho de mobilização de rede. Chegamos a ter um GT de Arte, Saúde e Cultura, e elaboramos uma minuta para uma política intersetorial relacionando arte, saúde e cultura, e educação. Fizemos seminários, uma audiência pública, visando a uma proposta de ação intermunicipal de cultura, mas, no final, não conseguimos apoio para implementar um projeto-piloto. E aí começa uma outra atuação do É de Lei: como nós tínhamos computadores, câmeras e equipamentos de projeção, passamos a funcionar como agenciadores. Como sabíamos os dias em que grupos como Coletivo Preguiça, Coral Cênico etc. se encontravam, começamos a organizar encontros comunitários, até porque os próprios participantes dos coletivos já faziam esse movimento, de circular entre os diversos grupos. Enfim, eu já sabia da existência dessa rede e da potência que ela tinha, e que isso não estava escrito em nenhum lugar, não estava documentado. Como eu, algumas outras pessoas que participam dos coletivos estão na academia também, mas sem financiamento; quem está engajado está por desejo de estar engajado. Acaba sendo um trabalho voluntário que, de alguma maneira, produz uma certa equidade, uma equivalência, equiparando quem está na posição de coordenar, propor, fazer “conduções” – como eu chamo. Aliás, cada um tem seu próprio vocabulário para designar essas funções; na ODEC, por exemplo, eles falam de representantes, entendem que aquilo é tão coletivo que não caberia mais uma figura central de um coordenador. Eles têm um quadro de representantes: um fica com a função de mediação interinstitucional; outro é representante na Luta Antimanicomial; um terceiro atua como representante pedagógico, trabalha mais na esfera do movimento; e, finalmente, um que se denomina representante institucional. Além desses representantes, tem a “família”, com irmãos, irmãs, parentes; é bem interessante essa forma de se organizar deles. No Preguiça já é diferente, duas pessoas estão sempre ali para facilitar as conversas e o coletivo recebe estagiários do PACTO; tem que haver alguém de referência, e eles recebem um valor para poder facilitar as atividades, pago pela USP. Enfim, cada um funciona de um jeito, e eu tinha muita vontade de entender toda essa dinâmica. A minha principal questão sempre foi como esses coletivos se sustentam. Essa é a pergunta que sempre aparece nas entrevistas, e as respostas são incríveis, variadas, mas têm todas uma marca muito forte: o desejo, o afeto, sem dúvida, são os fatores que sustentam – seja um desejo político, um compromisso ético, uma vontade de criar. Nunca recebi uma resposta como “existimos há muito tempo porque contamos com um espaço, uma política, um projeto”. Assim, fui entendendo que existe um paradoxo: quanto menos institucionalizado o coletivo, mais força de resistência e autonomia nesse senso de coletividade, de comunidade. E isso vale para todos, desde o É de Lei, que tem CNPJ e recebe algum financiamento, até o Coral, que todas as quartas-feiras, aconteça o que acontecer, se reúne.

Anita: Sinto que se apresenta um paradoxo no que você vai dizendo, porque se por um lado há a necessidade do institucional, que vai dando um contorno, uma sustentação, ele, ao mesmo tempo, impede ou bloqueia, pelo que entendi da sua problematização, em termos de pertencimento, de deslocamento de uma posição adoecida, sofrida, justamente por ter esse caráter institucional. Mas fico pensando nos efeitos dessa “retirada” do Estado, na proposição de um Estado mínimo que não está presente onde deveria estar, e você está trazendo essa discussão sobre o comum que não se confunde com o Estado, um comum que não é propriedade do Estado. Ao mesmo tempo, o Estado tem uma responsabilidade, em termos de acesso a direitos, garantidor de cidadania. Por um lado, vejo que tem uma potência nessa liberdade de não depender de pagamento, de ter trabalhadores com vínculo, mas, por outro lado, fico pensando nesse desinvestimento do público, limitando as condições dos trabalhadores poderem participar.

Leonora: Entendi que vocês estão falando sobre as interseções entre o público que não é o Estado, mas que, ao mesmo tempo, precisa de algumas garantias, através de políticas de Estado, para dar manutenção e sustentação aos coletivos e aos trabalhadores dos coletivos. Busca-se autonomia, empoderamento e agência, mas também se depende de condições mínimas de financiamento para que essas ações se sustentem. Ao mesmo tempo, algumas vezes ouço falar do preceito da “autossustentabilidade” que pode acabar indo na contramão de tudo aquilo pelo qual a gente milita, porque essa autossustentabilidade é muitas vezes entendida como “porta de saída”, como o término de um direito que se pretende permanente e universal. Entendo o direito à cidadania não como benemerência, ninguém outorga, ninguém dá de presente, é algo de que as pessoas já são portadoras, precisam apenas ter acesso a e exercê-la. Para mim, essa é uma das questões que o seu trabalho coloca: entre a não institucionalização e a luta dos coletivos e das pessoas engajadas em oferecer e manter esses serviços, poder encontrar as brechas por onde se expandir, se ampliar e se sustentar.

Isabela: Realmente, fica bastante nessa interseção entre lugar precário e de potência. A gente tem no Brasil uma cidadania que foi constituída a partir de 1989, mas, por outro lado, uma subjetividade que não está acostumada a ter direito algum, porque isso era para quem estava inserido no sistema, para quem tinha trabalho com vínculo formal e carteira assinada. Passamos a ter coisas como SUS, SUAS, mas, efetivamente, como é que se foi construindo isso? Aqui comecei a pensar nessa ideia da “meso-política”, conceito de Isabelle Stengers3, um espaço entre a macro e a micropolítica que é o lugar onde a gente, de fato, faz as coisas acontecerem. Entre o projeto que está na Constituição, com todas essas ideias de participação e cidadania, e o que acontece na prática. O que eu vejo acontecer na saúde mental, por exemplo, é que as estratégias estão totalmente precarizadas, a integração intersetorial de fato não aconteceu. Fazendo uma análise comparativa com a Itália, de onde veio o modelo que inspirou a reforma brasileira, a gente tem no Brasil um orçamento engessado e pequeno, todo concentrado no Ministério da Saúde e que, na prática, não dá conta de atender à demanda. Muitas vezes você tem a agulha e a linha, mas não tem dinheiro para comprar a miçanga, aí o trabalhador traz a miçanga de casa para poder fazer o trabalho acontecer. Então, esse trabalhador entra em contato com uma demanda absurda de atendimento, pessoas que estão em sofrimento, e não só por estarem sofrendo por um processo psicótico: elas não têm acesso à moradia, à alimentação adequada, não têm acesso a inúmeras coisas, chegam totalmente estropiadas nos serviços onde, por sua vez, os trabalhadores também estão precarizados. Então, retomando as perguntas e reflexões de vocês, também fico nesse dilema, pensando que é muito melhor não depender do Estado, mas também é trágico, a gente precisa ter um mínimo, vide a luta do ODEC na Galeria Olido, para ocupar e poder ter um lugar para continuar existindo. O Estado ainda está presente aí ao permitir que um lugar público seja ocupado, mas pode ser que isso mude e daqui a pouco o Estado não permita mais, porque vai ser privatizado e você não pode ir contra porque tem o risco de sofrer repressão da polícia. Cada vez mais a gente vive essa restrição à convivência, nas cidades, essa privatização de tudo. E aí todas essas pessoas que estão fora do sistema de troca e produção ficam sem lugar. Então o Estado está aqui sim, senão nada disso seria possível, mas, ao mesmo tempo, fica cada vez mais difícil para os coletivos poderem oferecer esses serviços, essas experiências; a equipe “roda” a cada dois meses, é uma OS [Organização Social] que coordena, depois muda, tem toda uma burocracia para comprar as coisas, tudo acaba funcionando em meio à precarização. Tem uma questão neoliberal aí, atravessando essas estruturas.

Leonora: A outra pergunta que eu tenho é ligada à Saúde Mental e à Luta Antimanicomial no Brasil, em que se busca a não centralidade das instituições convencionais no tratamento e atenção aos usuários. Eu tive uma experiência lá no Rio, participando de uma pesquisa sobre os Pontos de Cultura, em que procurei mapear projetos com interface com a Saúde Mental. Acabei descobrindo um, localizado em São Gonçalo, município vizinho a Niterói, o Alice Prepara o Gato, Ponto de Cultura que funcionava num CAPS-Ad e promovia oficinas de criação audiovisual em parceria com estudantes da Escola de Cinema da UFF [Universidade Federal Fluminense]. Quando fui conversar com a pessoa responsável pelo Ponto eles já começavam a enfrentar problemas como descontinuidade dos pagamentos, ter que depender de terceiros para poder participar dos Editais por não terem CNPJ, enfim, estava tudo se desmontando. Mas o que me chamou atenção foram as críticas vindas de algumas pessoas com quem conversei, pessoas ligadas à Reforma e à Luta Antimanicomial, sugerindo que iniciativas como aquela do Alice Prepara o Gato poderiam acabar promovendo a reinstitucionalização dos usuários, fixando-os ali, fazendo-os circular em torno do CAPS. Fiquei curiosa em saber se você já se deparou com alguma crítica dessa ordem com relação a algum dos coletivos que você pesquisou.

Isabela: Acho que um ponto interessante de todos esses projetos, de todos os coletivos, é que nenhum deles está diretamente ligado à Reforma Psiquiátrica ou à Saúde Mental. O que mais se aproxima é o Ponto Benedito pelo fato de duas das pessoas que trabalham lá serem comissionadas via Secretaria de Saúde; também a sala que ocupam é pública, em regime de comodato. O Ponto Benedito, além do É de Lei, tem organização institucional com CNPJ. Os outros projetos – melhor dizendo, ações, práticas culturais, artísticas e coletivas, nem sei como chamar, pois eles não adotam a lógica de fazer algo para atingir um objetivo e por isso acabo chamando de Coletivos Incomuns, por não se encaixarem em nenhum setor específico – não são só para saúde mental, só arte, só cultura, embora tudo isso também esteja contemplado. O que eles têm em comum é o fato de serem heterogêneos, são o que chamo de Comunidades Heterogêneas, porque têm um senso comunitário, um sentido de comunidade, que é o que integra as pessoas e as convida a estarem juntas, sem serem capturadas por uma identidade, como a de “louco”, “deficiente”, “portador de transtorno”, “drogado”, “sem teto”. Tem pessoas mais velhas, mais novas, pessoas com deficiência, em situação de rua, e aí se dão esses encontros inusitados, fazendo frente a essa vida em que, como Foucault descreve, você acaba tendo tudo esquadrinhado: ou você está no trabalho, ou você está em uma instituição de assistência ou você está na rua, na Cracolândia. A gente não tem espaço para conviver. Nesses coletivos que pesquisei cabe todo mundo e por isso às vezes eles acabam não cabendo em nenhum lugar. Mas, enquanto não cabem nos lugares, neles cabe todo mundo que “sobra”, como na ideia da Gayatri Spivak4 do “resto heterogêneo”, do sujeito que não se encaixa, que sobra e que vai acabar sendo diagnosticado por algum serviço. Então esses projetos têm bem esta marca da não institucionalização inspirada em Franco Basaglia, de não fazer as pessoas ficarem presas a uma só identidade. Os serviços passam a ser ofertados tendo em conta que as pessoas têm muitas facetas, que transbordam e vão além de um diagnóstico, um rótulo. Um louco não é só louco, ele é muitas outras coisas. O que acaba acontecendo muitas vezes é que essas pessoas que estão em vulnerabilidade social acabam só tendo seu lugar de direitos, de desejo e de valor reconhecido numa instituição de assistência. No início do projeto Núcleo Audiovisual Experimental (NAVE) do Instituto de Projetos Terapêuticos (2012), percebemos que precisávamos falar com as pessoas que íamos fazer um filme, que filme seria esse? Fizemos um encontro em uma associação para conversar sobre o filme e um dos participantes, ao se apresentar, disse “eu sou paciente”, como se só tivesse isso para falar de si; em outro grupo ouvimos “sou CID 20.1”, não dizendo nem o nome. A partir do momento em que a gente convida para participar de um projeto em que todos estão criando coisas juntos, aí aparece o cantor, o artesão, o fotógrafo, a namorada de alguém, então ganha valor cada uma dessas dimensões. De fato, o valor aparece a partir daí, bem diferente do que normalmente acontece nos CAPS, nas UBS etc. Por isso nenhum desses coletivos quer se deixar institucionalizar.

Retomando a reflexão trazida pela Leonora, também no Programa Cultura Viva tem uma dimensão identitária: cultura quilombola, cultura afro-brasileira, cultura indígena, cultura periférica... As comunidades heterogêneas têm tudo isso e mais; como poderíamos dar nomes, vamos falar de cultura de “nóia”, “cultura de morador de rua”? Nesse sentido, acho que a possibilidade de criação, de as pessoas poderem participar com o que elas têm, acaba sendo reconhecida. Este é outro ponto importante: os encontros acontecerem em um espaço público acessível. Além disso, acontecem com regularidade, a maioria semanalmente, o que facilita, pois mesmo pessoas que não têm telefone ou não sabem ler comparecem, por ser acessível também no modo de funcionamento. Porém, o que acontece muitas vezes é que, para ter acesso a recursos, você tem que se acomodar e, em certa medida, se distorcer, porque o edital é voltado para determinado público; se você não se encaixa, tem que dar um jeito de fazer caber. O que a gente não consegue é ter uma governança e uma linguagem que consiga falar disso aqui na prática. Tem que se ajustar ao que é exigido.

Anita: E como fica para você a conversa com os que não estão ligados, esses “outros” que não estão vendo sentido no que os encontros mobilizam, que não se engajam, mas que, de alguma maneira estão ali, seja porque estão no mesmo espaço ou por outras razões? Seriam os pontos conflitantes, mas que fazem parte do que está sendo produzido, dentro dessa ideia de heterogeneidade, uma heterogeneidade que produz também choques?

Isabela: Sim, muitos. E parece que há certa disposição para esta exposição de entrar em “contato nu” com a diferença. Um dos pontos que analiso é como esses coletivos manejam o conflito e fazem isso de uma maneira incomum, são invenções. Isso acontece muito, às vezes até chegando a situações-limite, de pessoas que se expõem, que “entram pela vitrine”, vazando, deixando vazar o seu sofrimento de um modo em que essa loucura, de alguma maneira, acaba sendo compartilhada. Não é negar que exista sofrimento, que existem situações em que se precisa intervir, cuidar. Mas afirmar que são espaços que procuram dar um pouco de vazão, deixar vazar um pouquinho os limites para encontrar novos. Tem sim muitas situações de conflito dentro do próprio grupo; na oficina já aconteceu entre dois participantes. Um deles estava num dia mais persecutório, em situação mais de crise, e todo mundo de alguma maneira sacou isso, mas um dos participantes não teve essa percepção e entrou na briga. E foi lindo porque havia eu e uma estagiária de TO – por isso é bom ter essas figuras que têm possibilidade de leitura clínica e manejo, mas não necessariamente vão fazer o manejo – e percebemos que a pessoa precisava de um cuidado. Outro dos participantes que tinha bom vínculo com a pessoa em crise também percebeu, se aproximou, piscou para mim e fez uma intervenção, um manejo clínico sem ser terapeuta. Através dessa sensibilidade, conseguimos juntos mediar a situação e não precisamos intervir de modo convencional. É muito bonito ver essas parcerias acontecendo, para além do lugar de poder que a gente ocupa sendo terapeuta. Muitas vezes isso acaba virando criação, poesia.

Anita: Tem alguma coisa que te surpreendeu a partir da experiência com os coletivos, não mais trabalhando e participando deles, mas pesquisando junto, em um movimento não só de aproximação, mas também de distanciamento?

Isabela: Esse jogo de distância-aproximação e o dispositivo do audiovisual foram muito importantes. Quando conversei com os coletivos para propor a produção audiovisual colaborativa eu já sabia que a câmera ia ser este “terceiro”, operar como um terceiro entre o mestre e o aprendiz, no qual os dois vão fazendo juntos. Quando iniciamos, as pessoas sabiam quem eu sou, existia uma relação de confiança, não cheguei do nada. Mas foi todo um trabalho para entender que a proposta era outra. Eu não estava mais coordenando o Centro de Convivência, íamos construir uma outra relação. E não sabia quais grupos iriam aceitar a proposta, queria que se interessassem, não só em participar de uma pesquisa, mas em entender para que serviria, que relação poderiam criar com as imagens, com a documentação. Com cada um foi de um jeito. Num primeiro momento trabalhei junto com estagiárias do PACTO, deixei nas mãos delas uma câmera e pedi que filmassem os acontecimentos durante uma semana para depois compartilharmos o material com os coletivos. Foi surpreendente, juntamos todo o material filmado em um vídeo e, quando as pessoas dos coletivos se viram em ação puderam “enxergar” coisas de que nem tinham se dado conta que faziam ou sabiam. Essa “câmera-bastão” começou a operar como elemento intercessor. A partir da experiência de ficar num lugar de observação do que foi sendo captado pelas estagiárias, eu quis saber se os integrantes dos coletivos também gostariam de filmar e fiz o convite para que eles mesmos operassem a câmera. Foram divulgadas trinta vagas para uma oficina de audiovisual com coletivos artísticos e trinta pessoas se inscreveram. Todas que chegaram foram aceitas porque entendi que tinham algo para nos contar, inclusive a Clínica Pública de Psicanálise, que inicialmente não cabia no meu recorte, pois meu foco eram em criações artísticas e culturais. A oficina então aconteceu com os participantes misturados em equipes, o que trouxe muitas surpresas para todo mundo; eu mesma não imaginava tudo que iria surgir daquele universo heterogêneo, a percepção de cada um, foi mesmo bem surpreendente.

Leonora: Isabela, te agradecemos muito por nos oferecer esta descrição tão rica da construção de uma metodologia, de um processo de invenção compartilhada, e será também muito bom poder compartilhar esta conversa com os leitores da revista. Parabéns pelo belo trabalho, e sucesso na sua defesa.

 

 

Referência

Negri, A.; Hardt, M. (2016) Bem-estar Comum. Tradução Clóvis Marques. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Record.         [ Links ]

Negri, A.; Hardt, M. (2005) Multidão. Guerra e Democracia na era do Império. Tradução Clóvis Marques. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Record.         [ Links ]

Hardt, M.; Negri, A. (2001) Império. Tradução Berilo Vargas. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Record.         [ Links ]

Spivak, G. C. (2010) Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Stengers, I. (2008) History through the Middle: Between Macro and Mesopolitics. Interview with Isabelle Stengers, Inflexions: A Journal for Research-Creation, n. 3, pp. 1-16.         [ Links ]

Valent, I. U. (2017) Da diversidade ao comum: práticas artísticas, cidadania e políticas sociais. RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 3, ed. especial, dez 2017, artigo n. 475.

 

 

1 Isabela trabalha com o conceito de comum que vem sendo desenvolvido por alguns filósofos e cientistas políticos, entre os quais Antonio Negri e Michael Hardt, autores da trilogia Império (2001), Multidão (2005) e Bem-Estar Comum (2016). Os autores propõem uma ética da liberdade para viver no mundo de hoje e articular uma possível constituição do nosso bem-estar comum, onde “comum” supera a dicotomia entre público e privado, público e estatal, socialismo e capitalismo e as políticas baseadas nessas polarizações.

2 O É de Lei é um Centro de Convivência para pessoas usuárias de drogas que adota a perspectiva da redução de danos.

3 A filósofa belga Isabelle Stengers (2008) propõe que a questão “meso” começa numa política de vínculos. “Um dispositivo ‘meso’ poderia conferir a uma situação o poder de fazer pensar juntos aqueles que estão a ela vinculados de maneira conflituosa”.

4 Gayatri Chakravorty Spivak é uma crítica e intelectual indiana, mais conhecida pelo ensaio Pode o subalterno falar?(2010), texto fundamental sobre o pós-colonialismo que é também uma das referências, nos movimentos e trabalhos teóricos das feministas negras, para o conceito de lugar de fala. Para a autora, o sujeito subalterno colonizado é irremediavelmente heterogêneo, já que as classes subalternas têm sua identidade na diferença. “Spivak resgata um novo sentido para subalterno, aquele cuja voz não pode ser ouvida, aqueles que fazem parte das camadas da sociedade excluídas da possibilidade de se tornarem parte do estrato social dominante” (Valent, 2017).

 

 

I Isabela Umbuzeiro Valent: Terapeuta Ocupacional, doutoranda em Estética e História da Arte pelo PGEHAUSP (Programa de Pós- Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo). Recebeu bolsa de doutorado, processo Fapesp 2016/18723-3. https://orcid.org/0000-0003-4566-8517. E-mail: ?

II Anita Machado: Graduada em Psicologia pela PUC-PR, terapeuta familiar pelo Intercef, mestre em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pelo IPUSP. Terapeuta associada do Instituto Noos, é também técnica do Instituto Fazendo História e psicoterapeuta individual, de família e casal em clínica particular.
Bolsa de doutorado, processo Fapesp 2016/18723-3. E-mail: nini.costa@hotmail.com

III Leonora Corsini: Psicóloga, mestre em Psicologia Social e doutora em Serviço Social pela UFRJ, com pós-doutorado (Capes-PNPD) no PPGCI-IBICT/UFRJ. Terapeuta de família e psicoterapeuta, é associada efetiva do Instituto Noos, membro do Conselho Gestor e coordenadora da Clínica Social. https://orcid.org/0000-0002-7192-043. E-mail: corsinileonora@gmail.com

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