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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.67 São Paulo May/Aug. 2020

 

ECOS

 

Tecendo redes, construindo pontes: atendimento a uma família migrante na clínica de família do instituto noos

 

 

Maria Gabriela Mantaut LeifertI,II

IUniversidade de São Paulo, Brasil
IIInstituto Noos, São Paulo/SP Brasil

 

 

"...Yo no soy de aquí pero tú tampoco. De ningún lado del todo, de todos lados un poco. Atravesamos desiertos y glaciales, continentes. El mundo entero de extremo a extremo, empecinados supervivientes. El ojo en el viento y las corrientes, la mano firme en el remo. Cargamos con nuestras guerras nuestras canciones de cuna. Nuestro rumbo hecho de versos de migraciones de hambrunas, y así ha sido desde siempre, del infinito..."

Jorge Drexler - Movimiento

 

Recebo com muito carinho o convite para comentar este artigo publicado na revista Nova Perspectiva Sistêmica, n° 66, sobre o atendimento de uma família imigrante boliviana. Este trabalho é emblemático, pois se trata do primeiro caso de Atendimento Intercultural realizado pela Clínica Social do Instituto Noos, colocando foco na temática da imigração de Famílias estrangeiras vulneráveis. Além disto, compõe um caleidoscópio de inquietações que vão de encontro às ações cotidianas do Noos, tais como violência intrafamiliar, violência de gênero, separações com conflitos e litígio, prejuízo a menores. Neste relato, observamos também a intervenção do Estado, promovendo o afastamento da mãe e filhos para abrigo sigiloso, devido a situação de ameaça e violência gerada pelo pai. Outra característica importante é a presença de imigração iô-iô, ou seja, sucessivas idas e vindas para o país de origem, com períodos de separações mãe/filhos.

Penso que as terapeutas do caso estão de parabéns por ter conduzido os encontros com tanta delicadeza e precisão. É muito difícil estar diante de uma família composta por uma mãe estrangeira e três filhos, contando histórias de violência, medo, desenraizamento, culpa e desamparo e conseguir tecer um fio condutor de respeito, legitimação do outro, empatia e fortalecimento dos recursos.

O atendimento intercultural busca entender os acontecimentos trazidos à luz do processo de imigração, procura compreender em que condições esta família imigra, quais são as motivações subjacentes dos familiares, quais os laços com o país receptor, qual a qualidade da rede de apoio. Olha o sujeito e a família pelas lentes de seu contexto e sua cultura. Leifert (2007) refere que a experiência de deslocamento provoca uma "perda" em relação aos significados sociais e culturais, o imigrante se vê diante de novos códigos linguísticos que ele desconhece. Dar sentido e significado a esta nova vivência, compreender os novos símbolos e signos sociais será o desafio do imigrante. Observo que as terapeutas caminharam por essa linha. Ao adotarem a postura do não saber, elas se tornam "estrangeiras" diante da família, querendo conhecer para compreender, a fim de favorecer o protagonismo de todos. Percebo que tratam de compreender o caminho trilhado até aqui, humanizando a jornada a partir dos recursos daqueles que são assistidos. Ao realizar um atendimento intercultural, temos que ter algum conhecimento da cultura do outro, a fim de fazer mediações entre os significados culturais das duas culturas e não cair na tentação de fazer pré-julgamentos ou olhar para os eventos à luz da patologia. Neste relato, a denúncia da violência do marido em relação à mulher gera uma série de repercussões, culminando com o afastamento do ofensor. A cliente relata que na Bolívia, devido à tradição cultural patriarcal, a mulher não consegue se separar do marido, mesmo havendo a presença de violência. Em São Paulo, por meio de denúncia, ocorre a efetiva atuação do Estado no que se refere à proteção da mulher e menores. Aqui no Brasil o marido "perde" o controle e poder de opressão que provavelmente tinha em seu país de origem, e por outro lado a mulher ganha protagonismo e amparo social. Segundo De Biaggi (2004), o contato com uma sociedade onde os papéis de gênero são mais igualitários, bem como a entrada da mulher no mercado de trabalho, é fonte de desequilíbrio na relação do casal e pode promover mudanças no padrão de gênero. Percebemos que as dinâmicas relacionais se alteram e novos acordos precisam ser estabelecidos, mas na medida em que estas famílias estão em uma situação de extrema vulnerabilidade, podem ocorrer dramáticas rupturas que promovem prejuízos para a família, mas principalmente no desenvolvimento das crianças.

Portanto, dentro deste quadro de possibilidades, trabalhar o Genograma da família, como foi oferecido pelas terapeutas, é um excelente caminho para buscar as raízes que deram sustentação à família até aqui. Trazer à luz as origens, recursos, costumes, possibilitar a inclusão do pai dando voz ao relato de seus familiares, acolhe os adultos e informa às crianças que elas são fruto de uma história ancestral.

A psicóloga intercultural Maria Borsca (2016) desenvolveu a Entrevista do Genograma 4.0, que se baseia em uma série de perguntas específicas, focadas em levantar os sentidos e mapear os espaços relacionais de pertencimento das famílias imigrantes. A seguir, a título de ilustração, seguem algumas perguntas que exemplificam esta intenção:

• O que o teu país de origem significa para você? O que as pessoas diriam sobre esta questão se eu perguntasse a elas?

• O que o país de residência significa para você? Há outros países em que você ou tua família viveram? Como você descreveria o impacto de viver nestes lugares na tua vida? Se você tivesse que viver em outro país, qual seria? Por quê? Para qual país você não mudaria? Por quê?

• Qual língua você usa no teu dia a dia? Você usa línguas diferentes com alguns familiares?

• O que a tua etnicidade significa para você? Qual é o impacto no teu dia a dia? De onde você pensa que vem esse impacto? Quais atividades cotidianas mostram teu compromisso com tua origem étnica? Se tua identidade étnica é minoritária, o que isso significa para você e tua família?

• O que significa lar para você? E para teu pai, irmã?

• O que privacidade significa para você?

No caso da família atendida neste relato, ao executarem o Genograma, as crianças fizeram as bandeiras dos países onde cada um dos familiares vivia. Eram as bandeiras do Brasil, Argentina e Bolívia, ou seja, a contribuição delas demonstra como nomear e representar cada país com sua bandeira pode colocar todos em um lugar relacional de presença e conexão. Participar deste momento em família pode ampliar os sentimentos de pertencimento e união.

Corroborando o que foi colocado até aqui, ofereço a metáfora do jardineiro. Quando uma planta é arrancada da terra, permanece sempre algum resíduo de solo ligado às raízes. Os bons jardineiros sabem disso. Quando se replanta em novo solo, eles não devem lavar esse pequeno resíduo do solo antigo para minimizar o choque e garantir o sucesso do transplante. Nós, como terapeutas interculturais, precisamos ser jardineiros, acolhendo com respeito e carinho este bulbo de terra trazido na bagagem por cada um. Nesta troca de relatos, percebemos o quanto é importante dar voz a todos, para fortalecer e iluminar as fortalezas e recursos da família. As crianças ganham um protagonismo que, por vezes, surpreende os pais. Neste atendimento isto foi observado quando a mãe tem muito prazer em contemplar os filhos brincando. Ela relata que teve a chance de estar com os filhos a partir de um outro lugar, refere que observar os filhos brincando foi muito libertador para ela. As terapeutas comentam que ficaram admiradas pela forma amorosa como os meninos se relacionam com a mãe. Observamos, durante a leitura do relato, que o processo terapêutico teve condições de incluir o pai alijado, na medida em que, por vezes, os filhos fazem comentários sobre ele de forma amorosa.

Trabalhar com famílias imigrantes em situação de vulnerabilidade é um desafio, pois situações de extremo desamparo são colocadas em forma de avalanche, ficando difícil para o profissional definir o foco. Ter em mente o processo de imigração como pano de fundo ajuda a tecer uma narrativa integradora e a construir pontes entre as culturas. A compreensão destas pessoas e seus sofrimentos passa por poder acolhê-las de forma inclusiva e respeitosa, a partir de seu repertório cultural, nem melhor nem pior que o nosso, apenas diferente.

É muito bem-vinda a iniciativa de Atendimento Intercultural a famílias estrangeiras pelo Instituto Noos. Sabemos que nossa cidade é polo de atração da maioria dos fluxos migratórios deste país. Ter uma Clínica Social que seja competente e sensível no trato desta temática é uma excelente notícia!

 

REFERÊNCIAS

Borsca, M.; Hille. (2016). J. Virtual Relations and Globalized Families: The Genogram 4.0 Interview. In: Borsca, M.; Stratton, P. Origins and Originality in Family Therapy and Systemic Practice. European Family Therapy Association Series. Springer,Cham, p. :213-34.         [ Links ]

DeBiaggi, D.; Paiva, G.J.(org).(2004). Psicologia e/imigração e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Leifert, M.G.M. (2007). Migração de Retorno: Psicoterapia breve de jovens brasileiros, um diálogo entre Psicologia Intercultural e Construcionismo Social. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo,         [ Links ] SP, Brasil.

 

 

MARIA GABRIELA MANTAUT LEIFERT
Psicóloga clínica, mestre em Psicologia Social pela USP, terapeuta de casal e família, mediadora de conflitos, terapeuta intercultural. Coordenadora da Clínica de Mediação Instituto Noos, Membro da Diretoria APTF gestão 2014/2018 e 2018/2020, professora e supervisora, na UNIFESP, do Curso de Especialização Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade. Facilitadora de grupos e sócia-fundadora da Sanga 8 Cursos para Desenvolvimento Profissional.
CRP 06/20933-3
https://orcid.org/0000-0002-6086-2302
E-mail: mgmleifert@gmail.com

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