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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.67 São Paulo May/Aug. 2020

 

ESTANTE DE LIVROS

 

Mergulhando em ideias energizantes: em busca de uma complexa definição de mente

 

 

Edna Lúcia Tinoco Ponciano

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Rio de Janeiro/ RJ, Brasil

 

 

Siegel, D. (2018). Mente saudável: conexão e equilíbrio do corpo e da mente. São Paulo: nVersos. (288p.)

A apresentação sobre Daniel Siegel poderia ser objetiva (psiquiatra, pesquisador e psicoterapeuta), mas essa não é a única faceta que descreve o modo como se autorrevela em seus livros. Ler um livro de Siegel é se surpreender com uma linguagem simples, afetiva, além de conhecer histórias que indicam como sua trajetória, pessoal e profissional, o ajudou a construir as ideias discutidas. Dirigindo-se principalmente a especialistas, escreve de modo a interessar a um público variado e curioso para compreender a saúde mental em um sentido amplo. No entanto, isso não significa que suas temáticas sejam de fácil apreensão. A densidade de seus textos não está somente nas exemplificações de estudos empíricos e dados científicos que corroboram suas afirmações e propostas, mas, sobretudo, na coragem de articular elementos distintos em um todo complexo, não fechado. Principalmente neste livro "Mente saudável: conexão e equilíbrio do corpo e da mente", percebe-se, ao mesmo tempo, um envolvimento, uma alegria nas respostas formuladas e uma sensação de que é preciso continuar a refletir e discutir. Siegel é corajoso e não teme o desafio da complexidade, apresentando ideias e técnicas inovadoras que integram vários conceitos e referenciais teóricos, em uma perspectiva sistêmica. Nesse sentido, logo no início, apresenta um elemento pouco considerado, o corpo, como fundamental para pensar a discussão conceitual: "ideias são capazes de ter seu maior impacto quando são combinadas com uma plena experiência sensorial" (pg. 23). Para ler esse livro, Siegel chama a nossa presença corporal e não somente cognitiva. Espero que a leitura dessa resenha sirva para despertar o interesse de mergulhar na experiência sensorial que o livro provoca.

De partida, a definição de mente ("tudo que se relaciona com a nossa experiência subjetiva de estar vivo" - pg. 9) deve ser explicitada ao enumerar e discutir suas várias dimensões, tais como sentimentos e pensamentos, cognição e imersões sensoriais, além de conexões com pessoas e ambiente, referindo-se tanto à consciência quanto ao sentimento de estar vivo, à vida subjetiva e ao processamento de informações advindas do ambiente. Além disso, para essa discussão, não se deve descartar outras nomeações, tais como: íntimo, alma, espírito ou natureza real. Relembrar outras possibilidades de nomeação indica que a discussão está em aberto, confirmando a necessidade de expandir o conceito de mente, o que se encontra ao longo do livro, ao considerar que é tanto uma entidade (substantivo) como um processo (verbo). Essas considerações iniciais, no entanto, ressaltam a dificuldade de definir o que é a mente. Por isso, Siegel se propõe a buscar, ao menos, uma resposta sobre o que é a mente saudável, ensaiando uma definição funcional. Uma importante distinção inicial também deve ser referida em relação ao cérebro. Não se confundindo com a mente, o cérebro é uma fonte de informação em trabalho conjunto com o corpo (cérebro corporificado), inserido em um processo maior, que inclui nossas relações. Nesse momento, Siegel retoma William James para enfatizar a ideia de uma mente corporificada: "nenhuma modificação mental jamais acontece se não estiver acompanhada de ou for seguida por uma mudança corporal" (pg. 15), indicando que a dicotomia corpo/mente já poderia ter sido ultrapassada no século XIX.

Além do corpo, na definição da mente como relacional se destaca a sua construção social. Somado a esse conjunto de descrições interdisciplinares, Siegel desafia a se construir a elaboração de um sistema em que a mente seja vista ao mesmo tempo como corporificada e relacional, construindo um campo colaborativo que abranja o "internamente neuronal e o interpessoalmente social". Por conseguinte, a definição da mente, tanto em suas dimensões internas quanto externas, ressalta a necessidade de abertura para uma experiência de presença e de aprendizagem que implique pessoal e socialmente o pesquisador e o psicoterapeuta, ao elaborarem uma teoria sobre a mente (Rey, 2003).

Findo o primeiro capítulo, cujo título, Bem-vindo, remete ao acolhimento do(a) leitor(a), os seguintes retomam os tópicos inicialmente levantados, especificando cada um. Sintetizo, a seguir, as principais ideias apresentadas nos capítulos. Ao utilizar o termo consiliência, que descreve o processo no qual resultados universais são verificados por disciplinas independentes, Siegel busca identificar um processo consiliente para a compreensão da mente. Fluxos energéticos, cérebro, corpo, emoções e relações são interligados, a fim de caracterizar a fonte da mente em "um sistema corporificado de fluxo de energia e de informação" (pg. 36), vindo tanto de dentro quanto de fora. Desse ponto de vista, as fronteiras do eu foram diluídas, já que o fluxo de energia está dentro e fora. O termo auto-organização é a base para entender como a mente funciona integrando caos e ordem em um processo, levando a que o sistema funcione com flexibilidade, adaptabilidade, coerência, energia e estabilidade, criando um fluxo harmônico. A integração é o que faz uma mente funcionar de forma saudável, integrando dentro e entre, no eu e com o outro, trazendo bem-estar ao gerar uma sensação sentida de totalidade.

A partir do relato de sua formação em medicina, Siegel conta como uma crise em relação ao paradigma fisicalista o transformou e o fez encontrar o conceito de mindsight (Siegel, 2012), que abrange três competências: empatia, capacidade de cultivar insight e integração. Mindsight foca a realidade subjetiva, como um portal "para a integração interpessoal", proporcionando que dois indivíduos diferenciados se tornem interligados. A vida mental, que influencia o comportamento neuronal é, desse modo, compreendida a partir de uma visão que liga o mundo interno ao interpessoal.

São discutidos dois tipos de processamento: (1) o de "cima para baixo", um sistema cognitivo que molda a percepção do mundo e padroniza tudo que surge de novidade e (2) o de "baixo para cima", um sistema corporal de sensações que nos habilitam a ter novas percepções, e que conduz à possibilidade de estar presente na experiência. Essas duas formas de processamento mental devem ser integradas. Nas experiências cotidianas com o outro e com o ambiente, podemos observar, testemunhar e narrar, conciliando as novas sensações a padrões previamente estabelecidos, que podem ser modificados. Todo esse processo altera o modo de perceber e construir a identidade, não sendo mais previsível ou fixada em papéis ou em escolhas pessoais que definam uma essência, e sim no constante encontro com novas sensações e novas possibilidades.

A impressão de que essa discussão deixa as fronteiras eu/outro fluidas ao ponto de levar a uma perigosa indistinção pode indicar a não compreensão da proposta de Siegel. Por isso, é importante lembrar que ao lado da integração deve haver diferenciação. Mas ainda assim algumas perguntas devem ser feitas: onde fica a mente? (capítulo seis) o porquê da mente? (capítulo sete) e quando é a mente (capítulo oito). À primeira pergunta, Siegel relembra que a mente tem como fonte informações advindas de fluxos energéticos e, nesse sentido, encontra-se nas relações, sendo incorporada ao mundo ao redor, situada em contextos sociais, em constante interação. A característica de auto-organização da mente não estaria limitada a "um dentro da cabeça ou do corpo" (pg. 140), corroborando o que é defendido por Dossey (2018) com evidências científicas. Essa característica permite que uma pessoa tenha experiência de "se sentir sentida" na terapia, por exemplo, criando um "campo social de aceitação e de receptividade" (pg. 154). A resposta à primeira pergunta, portanto, é que a mente está dentro e entre. Já para a pergunta sobre o porquê, a resposta é direta: o objetivo da mente é a integração, construindo significados e propósitos para a vida. Sobre o quando da mente, a presença é destacada, já que viabiliza o processo de integração. A qualidade dos eventos em relação ao tempo (passado, presente e futuro) é remetida a esse quando da mente que é o agora, facilitando a sintonia interpessoal, na qual a "interligação transforma um Eu isolado em tanto um eu quanto um nós" (pg. 200).

A consciência, nesse sentido, não é necessariamente cognitiva, mas pode ser uma abertura à sensação, que se apresenta na qualidade de estar presente. A "mente pode ser vista como um desdobramento constantemente emergente de potencial em realidade" (pg.225), sendo a experiência de conscientização ao mesmo tempo parte do universo e o que nos faz ter a sensação de estarmos vivos. Por fim, é afirmado que a bondade é o resultado natural desse processo de integração, o que indica que a ideia de mente, desenvolvida ao longo do livro, pode ser a base de uma concepção ética que permite que nossas vidas compartilhadas sejam potencializadas pela integração/bondade/compaixão, a partir de uma perspectiva que enfatiza a conexão que nos faz ser humanos(as) (Bauman, 1999), e, consequentemente, saudáveis.

Concluindo, retomo a ideia de mergulhar nessas ideias com uma presença corporal. A escolha da palavra mergulhar, ressaltando a experiência sensorial, não foi à toa. Esse livro foi lido na praia e, ao retornar de um mergulho, o encontrei sendo banhado por uma onda. A minha experiência de presença permitiu que eu não me fixasse em um padrão costumeiro, que me levaria a ficar presa à perda do livro. A onda imprevista fez-me sentir que a leitura estava levando a uma conexão que incluía o livro, o mar e a minha experiência subjetiva, ampliando a minha mente e reforçando a ideia de que elaborar um conhecimento sobre a mente implica, necessariamente, observar e narrar a experiência pessoal nos contextos interacionais e sociais. Espero que o(a) leitor(a) aceite o convite do Siegel e mergulhe no mar desse livro, sendo invadido(a) por novas experiências sensoriais, que serão, processualmente, integradas na busca de uma mente saudável, conectada ao corpo, ao outro e ao ambiente.

 

REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (1999). Ética da pós-modernidade. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Dossey, L. (2018). A conexão da consciência: evidências científicas comprovam que fazemos parte de uma mente universal. Rio de Janeiro: Cultrix.         [ Links ]

Rey, F. L. G. (2003). Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.         [ Links ]

Siegel, D. (2012). O poder da visão mental: o caminho para o bem-estar. Rio de Janeiro: Best Seller.         [ Links ]

 

 

EDNA LÚCIA TINOCO PONCIANO
Professora Adjunta IP/UERJ. Especialista em Terapia de Família e Casal IPUB/ UFRJ. Pós-Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio) e em Psicologia Social (UERJ). Investigadora Visitante CES/Universidade de Coimbra.
https://orcid.org/0000-0002-8606-1095
E-mail: ednaponciano@uol.com.br

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