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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v29i68.606 

ARTIGO

 

Grupos reflexivos de gênero para homens no ambiente virtual: adaptações, desafios metodológicos, potencialidades

 

Gender reflective groups for men in the virtual environment: adaptations, methodological challenges, potentialities

 

Grupos reflexivos de género para hombres en el espacio virtual: adaptaciones, desafíos metodológicos, potencialidades

 

 

Adriano BeirasI; Alan BronzII; Pedro de Figueiredo SchneiderIII

IPsicólogo, psicoterapeuta. Terapeuta de Casais e Famílias pelo Familiare Instituto Sistêmico. Doutor em Psicologia Social pela Universidade Autónoma de Barcelona, Espanha. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenador do Núcleo de Pesquisa Margens (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero). Email: adriano.beiras@ufsc.br
IIPsicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), especialista em terapia de família e casal pelo Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro (ITF/RJ), mestre em psicologia clínica também pela PUC/RJ e, atualmente, participa de uma formação em psicanálise. E-mail: alanbronz@gmail.com
IIIGraduado em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e fundador do MEMOH negócio social. E-mail: pedro@memoh.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo temos por objetivo problematizar a adaptação de metodologias grupais reflexivas sobre gênero ao sistema de encontros on-line mediados por programas que permitem reuniões no espaço virtual. Relatamos o desafio de manter uma postura teórico-filosófica e metodológica alinhada a processos reflexivos, coconstrução de espaços relacionais de discussão, respeito à diversidade e problematização das relações de gênero, atentos a um novo contexto social e à produção de novas desigualdades. Buscamos trazer à reflexão aspectos adaptativos iniciais, desafios e potencialidades a partir da experiência dos autores na realização destes grupos nos meses iniciais de pandemia e isolamento social. Considerando a experiência de utilização da metodologia de grupos reflexivos do Instituto Noos e da organização MEMOH, especialmente centrando no público de homens interessados na reflexão coletiva sobre gênero e masculinidades, desenvolvemos uma nova organização de convivência e etiqueta relacional que permite avanços, porém alinha em seu entorno também perdas em comparação ao formato presencial.

Palavras-chave: Homens; Masculinidades; Espaço virtual; Gênero; Grupos.


ABSTRACT

This article discusses the adaptation of gender reflective group methodologies to an online system, by programs that have the potential for meetings in the virtual space. We report some challenges, such as, maintaining a theoretical-philosophical and methodological stance that are aligned with the reflective processes, and the co-construction of a relational discussion space. Creating scenarios where there is respect for diversity and the problematization of gender relations and that are attentive to a new social context and the possibility(dangers) of the production of new inequalities. We add to the discussion, some adaptations to the initial process and some challenges and potentialities that were faced in the implementation of these groups in the initial months of social isolation due to the pandemic. Considering the experience of using the methodology of reflective groups from the Noos Institute and the MEMOH organization, that are especially focused on men that are interested in a collective reflection on gender and masculinities. A new form of coexistence and relational etiquette is developed that allows advances, but also aligns some losses, if compared to the presencial format.

Keywords: Men; Masculinities; Virtual space; Gender; Groups.


RESUMEN

En este artículo tenemos como objetivo problematizar la adaptación de la metodología de grupos reflexivos sobre género al sistema de reuniones mediadas por programas que permiten encuentros en el espacio virtual. Es reportado el desafío de mantener una postura teórico-filosófica y metodológica alineada con procesos reflexivos, co-construcción de espacios de discusión relacional, respeto a la diversidad y problematización de las relaciones de género. Además, se argumenta la importancia de la atención al nuevo contexto social y la producción de nuevas desigualdades. Se busca proporcionar reflexiones sobre aspectos adaptativos iniciales, desafíos y potencialidades a partir de la experiencia de los autores en la realización de estos grupos en los primeros meses de pandemia y aislamiento social. Es considerado como base la experiencia de utilizar la metodología de grupos reflexivos del Instituto Noos y la organización MEMOH, con especial atención al público de hombres interesados en la reflexión colectiva sobre género y masculinidades. Se desarrolla una nueva organización de convivencia y etiqueta relacional que permite avances, pero también se visualizan pérdidas si comparado al formato presencial.

Palabras clave: Hombres; Masculinidades; Espacio virtual; Genero; Grupos.


 

 

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos tem crescido a quantidade de grupos e organizações, muitas delas compostas por homens, interessadas em discutir a construção de masculinidades e os impactos nas subjetividades e relações sociais cotidianas. Vivemos em um momento de busca por transformações nas relações de gênero, ao mesmo tempo em que se consolidam movimentos de manutenção do status quo e de hegemonia do poder masculino na sociedade. Vemos avanços e retrocessos em discussões sobre raça, classe e gênero na sociedade global.

Considerando os avanços da pauta feminista e LGBT nos últimos anos e o expressivo aumento de conservadorismos, buscando a manutenção de um estado anterior de hegemonia de um modelo dominante de masculinidade, temos visto a discussão se intensificar em mídias, redes sociais, grupos de homens presenciais e, recentemente, virtuais, com diferentes perspectivas teóricas, sobre a transformação do masculino em nossa sociedade ocidental.

Nesse cenário cresce, também, a relevância dos grupos reflexivos para homens autores de violência encaminhados pela justiça, que são mais específicos, para refletir sobre a estreita conexão entre a categoria masculinidades e violências, de forma que homens possam se responsabilizar e repensar seus atos violentos contra suas parceiras íntimas.

Estudos que buscaram mapear estes grupos para autores de violência nacionalmente (Beiras 2014; Beiras, Incrocci, & Nascimento, 2019) mostram a emergência crescente destes grupos e a necessidade de políticas públicas específicas e critérios e diretrizes mínimas para garantir a qualidade destes grupos. Vemos também a importância de integrar em rede grupos para refletir sobre masculinidades e autoconhecimento, com grupos destinados especificamente a autores de violência que também incluem em suas reflexões o tema de masculinidades.

É mister destacar a importância de que ambos os tipos de iniciativas trabalhem o gênero como uma categoria analítica, incorporem os estudos teóricos sobre masculinidades, movimento de homens e suas relações com as teorias feministas (Azevedo, Medrado, & Lyra, 2018; Beiras & Bronz, 2016; Chagoya, 2014). Além disso, também é fundamental que iniciativas estejam alinhadas à ideia de equidade de gênero, ao desenvolvimento de empatia com as vivências das mulheres e ao fortalecimento dos direitos humanos, no lugar de focar exclusivamente na experiência de homens entre homens e sua felicidade, sem relacionar com as vivências e empatia com as mulheres (Billand, 2016).

Com a eclosão da pandemia de Covid-19, passamos por uma grande transformação social em nível global. Este momento histórico nos forçou a redefinir os padrões estabelecidos de sociabilidades devido ao isolamento social, forçando muitas atividades de ensino, de saúde, sociais, dentre outras práticas sociais, a tornarem-se virtuais. Isso tem feito com que essas áreas redefinam suas formas de atuar devido à necessidade de promover encontros mediados pelas tecnologias.

Com os grupos reflexivos de gênero para homens em seus diferentes contextos, em especial aqueles derivados ou inspirados na metodologia de grupos do Instituto Noos (Beiras & Bronz, 2016), não tem sido diferente. Aqueles que formulam e aplicam esta metodologia também se veem diante do desafio de adaptar o formato ao "novo normal", ou seja, momento caracterizado pela recomendação de isolamento social e redefinição de determinadas sociabilidades e normas sociais. Enfatizamos que se faz necessário adaptar o trabalho de maneira que se mantenham as perspectivas filosóficas e teóricas que fundamentam a proposta metodológica.

A última grande epidemia com enorme impacto sobre a vida de seres humanos ocorreu em 1918, com a infecção causada pela chamada gripe espanhola. Portanto, se passou mais de um século até que fôssemos obrigados a conviver com um novo vírus que, se até o momento não causou a mesma mortalidade (a gripe espanhola matou entre 40 e 50 milhões de pessoas), certamente apresenta a mesma (ou ainda maior) amplitude. As lembranças acerca do que representou a gripe espanhola para a humanidade residem na memória de uma quantidade reduzida de centenários e, portanto, esse tipo de situação com o qual nos vemos obrigados a lidar é praticamente inédito e, certamente, por vivermos em uma época diferente, apresenta desafios originais. É óbvio que temos muito mais recursos do que há 100 anos e no campo social o mais vetusto deles se refere à necessidade de adaptação a um cenário de isolamento forçado. Para este caso, a Internet é um desses recursos e desde sua criação as relações vêm sofrendo um processo de virtualização gradativo. No entanto, esse processo nunca tinha sido tão necessário quanto agora e a Covid-19 tem testado seus limites.

A Internet trouxe inúmeros benefícios à humanidade, dentre eles um acesso gigantesco a informações gerais, bem como a possibilidade de estarmos mais tempo ligados a pessoas com as quais não convivemos diretamente. Práticas como os Grupos Reflexivos de Gênero, onde as relações sociais são vitais, podem se beneficiar deste recurso sem que, porém, estejam isentas de sofrerem problemas gerados principalmente por questões de caráter material.

Apesar de, segundo a Agência Brasil numa reportagem de 26 de maio deste ano1, 134 milhões de brasileiros terem acesso à Internet, já sabemos, pela experiência, que muitas vezes as pessoas não conseguem encontrar um espaço com a privacidade necessária, bem como as conexões muito frequentemente se mostram instáveis, acarretando desde a impossibilidade de acessar os encontros virtuais, passando por quedas sistemáticas do sinal, até a impossibilidade de transmitir a imagem, tendo que limitar a participação por intermédio do áudio.

Neste artigo temos a intenção de relatar os desafios, potencialidades e primeiros passos dados de adaptação da metodologia presencial de grupos reflexivos de gênero em seus diferentes contextos, derivada da experiência do Instituto Noos, e a partir da experiência do grupo MEMOH (que traz em sua metodologia adaptações do material do instituto Noos também), ao promover estes grupos no ambiente virtual. Trata-se de reflexões iniciais advindas da prática dos meses posteriores à pandemia, portanto, são reflexões em aberto, em construção, diante do cenário vivenciado, e partindo da experiência dos autores deste artigo. Deixamos, portanto, um convite a construir juntos estes espaços reflexivos em um novo contexto, atentos às potencialidades e desafios advindos deste novo panorama social.

Entendemos que não é uma tarefa fácil e, dado o ineditismo da situação mundial, ainda há muito o que aprender. A essa altura, no entanto, já se tem algum conhecimento sobre as perdas e ganhos em relação à prática em sua vertente presencial.

Para avançar nesta reflexão, nas linhas a seguir, procuramos explicitar os princípios básicos que norteiam os grupos reflexivos de gênero do Instituto Noos e em seguida problematizar aspectos iniciais e desafios para a transferência ao sistema virtual de grupos. Posteriormente, trazemos a experiência do trabalho realizado pelo MEMOH e os desafios diretos da experiência de 2020 ao transpor suas ações para o ambiente virtual. Destacaremos os cuidados e recomendações que já foram possíveis até o momento, bem como os desafios que se mantêm para realização deste trabalho, entendendo como algo em processo, como experiência ainda viva e sujeita a transformações. Por fim, serão feitas ponderações a respeito do futuro do trabalho presencial e virtual no contexto de um mundo ameaçado por pandemias.

 

A METODOLOGIA DE GRUPOS REFLEXIVOS DE GÊNERO DO INSTITUTO NOOS

Em 2020 completaram 18 anos desde que foi lançado o primeiro manual da metodologia (Acosta, Andrade, & Bronz, 2004) de grupos reflexivos de gênero do Instituto Noos. Esta primeira publicação, já resultado de alguns anos de experiência desenvolvendo este tipo de trabalho, era voltada exclusivamente para homens, sobretudo para aquelas pessoas envolvidas em situações de violência intrafamiliar e de gênero. Depois de 12 anos, a mesma organização lançou uma versão atualizada e que apresenta diferenças importantes em relação à primeira versão (Beiras & Bronz, 2016).

Nos últimos anos o Instituto Noos retomou de forma mais frequente o atendimento a homens que foram denunciados às autoridades por suas companheiras. Retomou já que, no início, também recebia pessoas pela mesma via. A diferença é que, no passado, os casos de violência de gênero estavam sob a "jurisdição" dos Juizados Especiais Criminais (JECRINS). Neste âmbito, não havia uma determinação jurídica clara para a realização dos grupos. Mais tarde, já sob a vigência da Lei Maria da Penha, eles podiam ser incluídos como uma pena alternativa. Isso aumentou a complexidade do trabalho, já que o público-alvo participava de forma não voluntária e muitas vezes confundia seus operadores como um braço da justiça, dificultando a identificação dos usuários com a proposta da iniciativa.

Essa nova realidade acelerou a inserção de mulheres na função de facilitadoras (uma espécie de coordenadora do grupo, mas que realiza sua função de uma forma mais horizontal). Essa era uma ideia antiga, mas que nunca tinha sido colocada à prova em grupos compostos exclusivamente por homens. Talvez alguns acreditem que, devido às adversidades resultantes de um trabalho voltado para um público compulsório, a inserção de mulheres poderia ser ainda menos recomendada. Os responsáveis pelo trabalho pensavam diferente e, em realidade, viam esse movimento como um passo no sentido de aumentar a eficácia da metodologia. O estabelecimento de uma maior simetria de poder entre os participantes e a facilitadora, a necessidade de modular a comunicação a respeito das mulheres devido à sua presença e a possibilidade de debater com a contraparte eram algumas das vantagens desta nova configuração da dupla de facilitadores (que necessariamente era composta por mais um homem quando a dupla era feminina).

O atendimento a homens enquadrados na Lei Maria da Penha também sensibilizou os formuladores da metodologia para a necessidade de fornecer maior ênfase na aplicação da metodologia enquanto um dispositivo preventivo por uma razão, no final das contas, relativamente prosaica. Ficou claro que a realidade do público atendido era bem mais dramática e de difícil resolução. A condenação parecia ser um eficaz recurso de contenção da violência, mas, por outro lado, aumentava o discurso de autovitimização e estigmatizante em relação às mulheres. Sem contar que os homens acabavam sofrendo algum impacto em sua vida devido ao fato de perderem a primariedade.

Essa ampliação do público-alvo também incluía a criação de grupos compostos por homens e mulheres por razões semelhantes àquelas que introduziram a dupla mista de facilitação no grupo para homens. O Instituto Noos também teve a oportunidade de realizar estes tipos de grupos (mistos) na parte vivencial das capacitações que ministrou com resultados alvissareiros.

Apesar das mudanças em relação à primeira versão, que inclui a retirada de técnicas consideradas muito complexas para aplicação por um leigo e diminuição da equipe por razões econômicas, a metodologia manteve, principalmente, o que se pode considerar a sua "coluna vertebral", a construção de um "contexto reflexivo", segundo compreende o criador dos chamados "processos reflexivos", de Tom Andersen.

A construção deste tipo de contexto reflexivo requer uma permanente articulação entre o que se diz com o que se pensa e sente numa relação dialógica com os demais (Andersen, 2002). Isso exige a aplicação de alguns recursos que mantenham este tipo de postura durante todo o trabalho, mas, sobretudo, a presença de facilitadores que tenham sido ensinados a exercer sua função dentro desta mesma postura. Não se trata de tarefa fácil mesmo para os iniciados, uma vez que não é usual nos expressarmos numa cadência que envolva o movimento pendular de confrontação entre a cultura linguística na qual estamos inseridos, com a forma como nos expressamos e sua coerência em relação ao nosso "ambiente interno".

Essa, no entanto, seria a chave para a ocorrência de uma inflexão na nossa forma de se posicionar diante do mundo. Uma concepção herdeira de um novo campo do conhecimento chamado de Teoria Geral dos Sistemas, criado por Ludwig Von Bertalanffy (Bertalanffy, 2013), pela inserção de ideias advindas de um outro novo campo de conhecimento, a cibernética, na área das ciências humanas, realizado por Gregory Bateson (Bateson, 1991) e, finalmente, o advento de um movimento de cunho acadêmico conhecido com Construcionismo Social (Gergen & Gergen, 2010).

Outras referências teóricas importantes foram deixadas de lado em nome da concisão, mas todas elas, de maneiras diferentes, destacam a centralidade do contexto na formação das subjetividades por conta dos significados que ali são construídos coletivamente e que configuram nossa compreensão sobre o mundo (ou mundos). Portanto, é na vivência em uma comunidade linguística, com a preservação intencional de uma "ecologia de ideias", de onde podem advir novas formas de se enxergar a "realidade" e, por conseguinte, possibilitar novos posicionamentos pessoais.

A metodologia segue alguns momentos importantes de execução. Um deles é o disparador de conversas, que pode acontecer com diferentes estímulos materiais, entrevistas, desejos, reportagens, algo que estimule a reflexão e a circulação de ideias sobre um tema. O segundo momento é a reflexão grupal sobre esta primeira etapa, com perguntas reflexivas, perguntas sistêmicas circulares, recursos conversacionais, gerando debate grupal. O terceiro momento é a síntese da discussão do dia, que caracteriza os novos sentidos e significados colocados no grupo, que representam sua coletividade e podem ser registrados e recordados posteriormente.

Outros dois aspectos muito importantes dizem respeito à atenção aos diálogos internos e ao cuidado especial na escuta, ou seja, em como escutar e observar o grupo em sua interação, em seus sentidos e significados, não colonizando ideias e sim trazendo e estimulando a troca de experiências e descrições diversas dos fenômenos e relações vividas. Como etapas das sessões grupais temos uma atividade inicial de acordo de convivência, onde se escolhe coletivamente e se justifica as regras do grupo, além do momento de escolha dos temas a serem discutidos. Todos estes aspectos podem ser mais bem aprofundados a partir do livro da metodologia de grupos reflexivos publicado pelo Noos em 2016 (Beiras & Bronz, 2016). Na experiência do Instituto Noos, sugerimos também a leitura da abordagem construcionista de processos grupais (Abrahamsson et al., 2016; Rasera & Japur, 2018) e sistêmica (Fuks & Rosas, 2014).

 

OS DESAFIOS DE ADAPTAÇÃO PARA O AMBIENTE VIRTUAL DA METODOLOGIA DO NOOS

Como já dito anteriormente, um dos pontos centrais da metodologia de grupos reflexivos de gênero é a postura teórica e filosófica de produzir processos reflexivos, perguntas reflexivas e especialmente o exercício da escuta. Estes aspectos podem ser mantidos no sistema virtual, mantendo o tom democrático e normas de convivência adaptados ao ambiente online. Enfatizamos esses pontos, em especial, como de grande importância.

Colocaremos neste texto algumas ponderações, em especial a partir de nossa experiência docente, de consultorias e da experiência que tem sido feita na Universidade Federal de Santa Catarina, no núcleo de pesquisa Margens (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero), do Departamento de Psicologia, com a utilização da metodologia em um projeto de extensão universitária em parceria com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina2, para a produção de grupos reflexivos para homens autores de violência, estudos e inovações teóricas e metodológicas. No entanto, entendemos que estas reflexões cabem para diversos outros usos da metodologia, como grupos de homens para equidade e igualdade de gênero, entre outros temas. Nosso foco estará em pensar especificamente os desafios metodológicos.

Seguindo com o tema dos desafios e ponderações, num encontro grupal presencial ocorre todo o tipo de troca característica das interações entre as pessoas que vai desde expressões faciais até as próprias reflexões pessoais. Em um encontro virtual composto por apenas duas pessoas ainda se pode preservar muito das informações que são geradas neste âmbito, mas há um risco grande disso não acontecer em encontros com mais pessoas. Para que se possa reproduzir da forma mais fidedigna possível a vivência dos encontros presenciais seria necessário, por exemplo, que todos pudessem utilizar um notebook cujo monitor conseguisse exibir a totalidade das faces dos participantes e essa meta ainda está bem distante de ser uma realidade. Também não se pode garantir a presença de todos os integrantes do grupo por razões tecnológicas que lhes são alheias.

Além disso, já é possível perceber que a dinâmica do espaço virtual não apresenta a mesma espontaneidade e fluidez característica dos encontros presenciais. Ainda assim, em nossa experiência, o engajamento e implicação na sessão feita não foi o maior problema, apesar de nosso receio inicial, talvez pela necessidade de muitos de produzir uma interação social em meio a práticas de isolamento social. Nosso desafio foi o engajamento entre uma sessão e outra, pela via on-line. Em primeiro lugar, cada participante pode sofrer interferências do local de onde realiza suas transmissões prejudicando, como já foi dito antes, sua privacidade, mas, também, gerando algum grau de dispersão. Outro aspecto que, a princípio, se mostra diverso ao contexto presencial é o compasso das interações. No ambiente virtual parece ser necessário estabelecer diretrizes bem definidas para que as falas possam se dar de forma ordenada sem que sofram interferência alheia, que podem ser adaptações para o acordo de convivência em relação aos tempos de fala e interação. Isso também é importante acontecer nos grupos presenciais, mas pela Internet isso parece ser uma condição sine qua non para o bom andamento do trabalho, elevando, assim, o desafio de manter uma postura teórico-filosófica e metodológica alinhada a processos reflexivos, sob o risco de tornar-se uma "roda de partilha" e não mais um grupo reflexivo.

Costumamos sugerir que estejam o máximo possível com a câmera ligada durante o grupo, ou ao menos ao falar, para ampliar a interação. Ainda assim, precisamos considerar que algumas pessoas se sentem interpeladas ou vigiadas com todas as câmeras ligadas, dificultando este processo. Por este motivo, é preciso explorar com o grupo os sentidos e significados que são dados para esse contexto, sem trazer uma verdade absoluta sobre o fato, e sim valorizando as experiências e sensações de cada participante, encontrando soluções coletivas, ética e criativas. Nossa experiência consolida a ideia de não esperarmos um simulacro da reunião presencial no virtual, sendo que esta última tem características específicas, sensações, movimentos diferentes que precisam ser observados. Temos que cuidar com os tempos de debate, silêncios e intervenções de cada participante de forma diferente. Percebemos que na nossa prática acabava por ocorrer menos debate em alguns momentos, se comparado ao presencial, e mais monólogos reflexivos, ou seja, as interrupções e os tempos reflexivos podem ser distintos do presencial.

Em função dos Grupos Reflexivos de Gênero realizados de forma virtual por plataforma digitais ainda serem uma novidade ou atividade pouco usual anteriormente3, não se possui dados consistentes que possam ser comparados com os resultados obtidos com sua vertente presencial. Está claro que os encontros virtuais podem fornecer condições muito semelhantes àquelas que são encontradas num espaço físico, mas cabe perguntar se suas idiossincrasias podem causar um impacto significativo a ponto de ser necessário repensar a proposta metodologicamente.

Um ponto em especial parece ser mais sensível e que se refere à qualidade do engajamento dos participantes. Não que esse não seja um problema que possa ocorrer com os grupos que são realizados de forma presencial, mas de saber até que ponto as dificuldades já relatadas podem se mostrar um desafio neste sentido. Uma conexão ruim pode impedir a transmissão minimamente aceitável de um colega. Da mesma forma, alguém pode se valer destas dificuldades para não se expor e passar ao largo do processo. Ambas as situações podem ser muito frustrantes para todos. No entanto, em termos de interação masculina, também notamos que alguns homens se sentem mais à vontade para relatar alguns temas mais íntimos ou emocionais no virtual, pela possível sensação - para alguns - de proteção da relação mediada por tecnologia. Pode acontecer de a produção da intimidade e do senso de grupo ser mais rápida de forma on-line também, apesar das limitações de proximidade presencial.

Estas são algumas reflexões preliminares de nossa experiência em andamento, ainda com muitas questões e ponderações por advir. Ressaltamos, todavia, que o principal se mantém: a postura teórico-filosófica que estrutura a metodologia e fundamenta seu caráter de produção de processos reflexivos.

 

A PROPOSTA DE ATUAÇÃO DO MEMOH

O MEMOH4 nasce como uma organização cujo propósito é promover equidade de gênero, fazendo com que o homem reflita sobre seu modo de agir consigo, com o outro e com a sociedade. O nome (MEMOH é "homem" ao contrário) resume a ideia de ajudar homens a se enxergarem por ângulos diferentes. Isso é feito por meio de grupos reflexivos, produção de conteúdo e consultorias voltadas ao ambiente corporativo. Uma proposta que serve, primordialmente, para uma ampliação de consciência por meio da problematização das relações normativas e tradicionais de gênero.

O início de sua atuação se deu em julho de 2017, a partir da realização de grupos reflexivos - até o momento foram realizados por volta de duzentos encontros, sendo cerca de 500 homens (além das pessoas com quem convivem) impactados pelos grupos reflexivos do MEMOH, assim como os colaboradores de aproximadamente 30 empresas clientes. Ainda no segundo semestre de 2017, o MEMOH já tinha dois grupos reflexivos. Em 2018, eram três. E em, 2019, seis grupos simultâneos se encontravam no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os grupos do MEMOH ganharam mais relevância em nível nacional com a procura e adesão de mais homens interessados pelo debate sobre masculinidades.

Apesar de comemorar o crescimento e à beira de pular para dezoito grupos, localizados em diversos estados do Brasil, a demanda continuava alta e a organização decidiu seguir um caminho diferente. O MEMOH queria manter-se comprometido com a expansão de novos grupos reflexivos, mas, ao invés de seguir com o acompanhamento -e controle de tudo, decidiu abrir sua metodologia. O material utilizado foi disponibilizado para todos os interessados em iniciar um grupo reflexivo e o MEMOH usou seu podcast para tornar público o passo a passo de como montar um grupo reflexivo5. Assim, foram criados dez novos grupos independentes (em estados como Minas, Pará e Rio Grande do Sul). O número de grupos reflexivos "independentes" vai aumentando sem o MEMOH ter conhecimento e sem saber o impacto que está causando, uma demonstração de que a proposta cresce organicamente.

Atualmente, o MEMOH promove três grupos reflexivos gratuitos, simultaneamente, on-line, com participação de vinte homens heterogêneos (heterossexuais, homossexuais, pretos, brancos, transexuais); a frequência dos encontros é quinzenal e neles se debate temas dos mais diversos, desde "por que os homens brocham" a "compartilhamento de vídeos íntimos em redes sociais".

Como dito acima, o MEMOH atua em mais duas frentes além dos grupos reflexivos oferecidos gratuitamente. A primeira se refere à produção de conteúdo - que é veiculado principalmente em um podcast disponível em diversas plataformas digitais de streaming e no site da organização6. Esse dispositivo surge para aumentar o alcance do debate sobre masculinidades que é promovido nos grupos reflexivos e em outras atividades do MEMOH, com a intenção de levar a postura teórico-filosófica e seu caráter de produção de processos reflexivos para um outro formato. E a segunda relaciona-se à atuação na área corporativa, entendendo a importância de levar a discussão para contextos deste tipo. Isso também garante a sustentabilidade financeira do trabalho desenvolvido.

Os grupos reflexivos do MEMOH, na prática, são espaços de troca, com uma metodologia própria - que tem como base a metodologia de grupos reflexivos desenvolvida pelo Instituto Noos. A metodologia do MEMOH segue, por exemplo, os mesmos momentos importantes de execução traçados pelo Noos: (a) o disparador de conversas, que, no caso dos grupos do MEMOH, acontece por meio de uma apresentação de slides, sendo o início da apresentação um resgate da intencionalidade do grupo e uma segunda parte com a manifestação do tema definido para o encontro específico, para estimular a reflexão entre os participantes acerca do tema em questão; (b) o momento de reflexão grupal partindo do disparador de conversa; e (c) a síntese do debate grupal, chamado, no MEMOH, de "prática", que deixa mais tangível o que foi levantado pelo grupo em relação a novos sentidos e significados, na busca de os participantes implementarem algo extraído da reflexão em seu dia a dia.

O público-alvo do MEMOH é constituído por "homens comuns", porém considerando interseccionalidades (Nogueira, 2017), ou seja, homens brancos, negros, gay, homens trans. O que queremos destacar quando falamos de "comuns" tem mais o sentido de não especialistas, não acadêmicos e, também, não autores de violência, no caráter jurídico - uma distinção importante para os participantes dos grupos reflexivos de gênero encaminhados pela Lei Maria da Penha.

O fato de estarem entre "comuns" traz a exigência do uso de uma linguagem acessível, popular, sem afetações academicistas e neologismos do momento. Desenvolver uma linguagem que de fato chega e faz sentido para o maior número de pessoas - sem se abster de nomear o machismo e outras expressões significativas para questões de gênero - é um pilar estratégico do MEMOH para atrair homens de fora das supostas "bolhas progressistas" da elite econômica. Os "homens incomodados", como também são chamados os participantes dos grupos reflexivos do MEMOH, são homens que se reconhecem machistas em algum nível (sejam eles brancos, negros, gays, homens trans, entre outras interseccionalidades) e/ou que reproduzem comportamentos que não querem mais, mas não sabem muito bem o que fazer para mudar, com quem falar etc. De alguma forma, já há a ciência de que a violência de gênero passa por eles e por seus comportamentos. Estão implicados, mesmo que minimamente, na questão. Para isso, não há restrição de nenhum tipo para chegarmos a esses "homens incomodados" mais diversos possíveis.

A predisposição de quem chegou até ali facilita uma reflexão sobre o que antes nem era visto como problema de fato. A partir do campo de confiança desenvolvido pelos homens ali presentes, é possível o participante perceber, ao menos em parte, seus sentimentos e emoções e, por consequência, elaborar novos problemas e problematizar suas questões já existentes de um modo mais qualificado. A existência deste espaço de acolhimento permite, do mesmo modo, a partilha de experiências cotidianas e de reproduções de comportamentos hoje, talvez, já entendidos como não desejáveis. Os encontros do grupo tornam-se desvios, uma nova experiência coletiva e se configuram em acontecimento, como Araújo (2007) diz:

O que faz desviar, o que cria um desvio é sempre um encontro; um esbarrão, um tropeço, o surgimento de uma nova imagem, de um novo horizonte são sempre encontros, isto é, são acontecimentos. Quando algo acontece um sentido se coloca, porém também podemos dizer que quando um sentido se coloca algo acontece. (Araújo, 2007, p. 46)

Enquanto dispositivo, parte-se do princípio de que todos ali presentes estão sob a mesma intenção, ou seja, estão à procura de elaborar sobre suas questões e que possam, na melhor das hipóteses, adquirir uma posição crítica em relação à opressão masculina criada pelo regime patriarcal. Como disse um empolgado ex-participante, "reunir homens para falar sobre seus sentimentos e emoções é um ato revolucionário". Isso nos leva a um fator sine qua non para a existência do MEMOH: a horizontalidade das relações e a ausência de uma voz institucional julgadora do certo e errado.

Para tal, a dinâmica se dá em uma roda de conversa, um formato circular - permitindo, quando na vertente presencial, que todos se olhem, observando o movimento do grupo e sem uma relação hierárquica em sua composição - de até vinte homens por grupo - número limitado para que se possa dar tempo de fala para todos que o queiram e que os mesmos possam, igualmente, ser ouvidos. Há, porém, a figura do líder. O nome dado é este, aliás: Líder da Rodada. Esta figura é responsável por escolher e trazer o tema que será debatido pelo grupo em cada encontro.

A proposta de tema é feita a partir de um questionamento específico do participante sobre seu comportamento e formatada em uma apresentação para ser compartilhada com o restante do grupo - esse, portanto, é o disparador de conversa utilizada na metodologia do MEMOH. A liderança pode ser reivindicada e assumida por qualquer um e a cada encontro há um novo representante. Este sistema de rodízio de lideranças - onde há uma equidistância para o centro da roda - e a ausência de uma voz institucional julgadora - partindo do princípio da mesma intencionalidade -, nos remete ao princípio da isonomia, todos são iguais. Sendo assim, concebe-se, em teoria, um espaço social igualitário e, do mesmo modo, um espaço de discussão com importantes reverberações políticas.

Os encontros acontecem quinzenalmente e são onze ao total de um ciclo. Entre o processo de entrada no grupo até o último encontro, a duração de um ciclo de encontros é a de um semestre. Neste momento, são três grupos reflexivos por semestre. Os ciclos semestrais permitem que mais homens participem dos grupos reflexivos e o nível de interesse se mantenha relativamente alto para se fazer presente na maioria dos encontros. E a periodicidade quinzenal possibilita um comprometimento razoável dos participantes - compete menos com outras agendas - e adequado para os Caseiros, outra figura central da metodologia do MEMOH, os facilitadores voluntários dos grupos reflexivos, que, com esse intervalo quinzenal, conseguem se organizar a tempo de preparar o que é preciso para o próximo encontro acontecer dentro do que a metodologia pede.

Esses facilitadores, os Caseiros, são também os organizadores do grupo. Cuidam do espaço - quando presencial -, auxiliam os outros participantes e garantem a dinâmica do debate. Essa figura-chave do Caseiro faz necessário retomar a ideia da falta de hierarquia, pois se procura produzir em conjunto reflexões e compreensões sobre o tema levantado, evitando uma posição autoritária, como dono do saber. A intenção é construir uma relação de parceria que garanta cumplicidade e crie um ambiente seguro para troca. Algo que é repetido em todo início de encontro (a primeira parte do disparador de conversa), principalmente entre o Caseiro e os demais, para reduzir o risco de reforçarmos os já cristalizados desequilíbrios de poder entre as diferentes configurações de gênero, classe, raça etc. presentes em nossa sociedade.

Busca-se propor, pela experiência coletiva que o MEMOH permite, uma problematização contínua que se aproxima da política - ao questionar a norma dominante de "ser homem" na sociedade atual - e da estética - ao tentar o início de um novo modo de relações humanas -, sendo prudente para não agir com excessos - assumir um protagonismo que não cabe ao homem, perder o caráter reflexivo por algum desvio da metodologia não percebido etc. - e, ao mesmo tempo, sem ser tímido para não coibir o impulso -, falar com amigos e sua rede de homens sobre questões de masculinidades, promover atividades e grupos reflexivos com e para homens, se colocar em conversas sobre questões de gênero.

 

OS DESAFIOS DE REALIZAR GRUPOS REFLEXIVOS DO MEMOH NO AMBIENTE VIRTUAL: A ADAPTAÇÃO REPENTINA

O primeiro ciclo dos grupos reflexivos do MEMOH em 2020 foi iniciado logo após o carnaval, na primeira semana de março. Portanto, com a chegada da pandemia, apenas o primeiro encontro do ciclo deu-se presencialmente. Chegou a pensar-se na suspensão dos encontros, já que não haveria como garantir uma boa adaptação dos encontros presenciais e também não sabíamos se todos teriam uma conexão com a Internet suficientemente boa para participar com um mínimo de estabilidade.

Com isso, surge a primeira questão dessa forçada adaptação para o ambiente virtual, levantada aqui anteriormente: como levar adiante um grupo reflexivo gratuito em um cenário de tanta desigualdade de acesso à informação, bens e tecnologia? Um notebook com conexão rápida à internet é artigo de luxo em nosso país. É possível fazer do celular? Sem câmera? Como se dá a interação? A questão foi dividida com os participantes dos três grupos reflexivos conduzidos pelo MEMOH e, com a percepção de que a situação se prolongaria, os próprios, quase que de forma unânime, insistiram para seguir com os encontros mesmo que online e sem garantias de sucesso. Tivemos, mesmo assim, algumas perdas de participantes e de um dos seis facilitadores por conta da falta de acesso estável à Internet e/ou de equipamentos para a realização de videochamadas - notebook ou smartphone.

Porém, o entusiasmo generalizado dos participantes fez com que os Caseiros -facilitadores dos grupos reflexivos e pontos focais dos participantes - improvisassem para realizar os encontros já na semana seguinte. Vale ressaltar aqui mais uma vez a importância da predisposição dos participantes em estar e se colocar nesse espaço. Acordos de convivência foram revistos para melhor corresponder ao espaço virtual, incluindo, por exemplo, um específico sobre microfone fechado enquanto não estiver com a palavra, a fim de não haver ruídos indevidos enquanto algum outro participante se manifesta, e câmera aberta durante todo o encontro, se for possível, para aumentar o sentimento de presença e atenção de todos.

Com a intencionalidade da atividade reforçada, nos restava, então, decidir a plataforma de videochamada para realizar os encontros no formato virtual. A prioridade era utilizar a ferramenta mais democrática possível e que permitisse um grau de interação suficiente para a troca entre os participantes.

O MEMOH e sua rede tinham disponíveis o Google Meet e o Zoom7. Depois de algumas tentativas pontuais com outras plataformas, manteve-se o Meet e o Zoom até hoje como as plataformas usadas e recomendadas pelo MEMOH. O Google Meet tem alguns pontos bem positivos para a proposta: sua versão gratuita não tem limite de tempo de reunião, não precisa baixar aplicativo para uma experiência satisfatória, nem de login para entrar na videochamada - além de possuir a interface de um produto Google, com o qual parte das pessoas já tem alguma familiaridade. A desvantagem ficava na impossibilidade de ter um formato de visualização de todos ao mesmo tempo - o que já foi atualizado pela plataforma - e, principalmente, por ser "pesado" para transmitir e visualizar os vídeos uns dos outros, de acordo com a percepção dos participantes nos testes realizados. Como a prioridade era facilitar a conexão, o Google Meet ficou como plataforma backup e seguiu-se com o Zoom.

O Zoom, que se tornou um dos aplicativos mais baixados do mundo ainda no início da pandemia, parecia ser o melhor por ser mais "leve", com uma interface também bastante intuitiva para qualquer usuário e, assim, tornou-se a plataforma oficial dos grupos reflexivos do MEMOH, ou seja, a organização passou a contar com uma assinatura paga da ferramenta para acessar funcionalidades de interação e não ter limite de tempo das sessões, já que sua versão gratuita limita o tempo da sala em quarenta minutos.

Com a plataforma definida, o próximo passo seria checar como se daria a dinâmica em si neste ambiente virtual, sem a troca "olho no olho", sem conseguir pegar as sutilezas das expressões corporais do presencial, sem um espaço dedicado a isso e sem o desconforto de estar ali, fisicamente, ouvindo e falando sobre questões particulares a cada um dos participantes.

Foi percebido que, de fato, há uma perda nas interações, muito por conta das problemáticas já apontadas anteriormente neste artigo: a escassez de recursos como notebook - que garantiria uma "presença" maior, onde é possível visualizar todos os participantes ao mesmo tempo -, um ambiente com privacidade, sem interferências no local, e uma boa conectividade que dê estabilidade à transmissão da imagem por vídeo.

Nota-se que algumas questões de fluidez e espontaneidade já vistas como pontos de observação no ambiente presencial se reproduzem em seu caráter virtual, só que de uma outra forma. Por exemplo, nos grupos do MEMOH, não é forçada a fala de nenhum participante - há como um acordo de convivência fixo para todos os grupos a não obrigatoriedade de falar, ou seja, o participante só se coloca caso queira. Em diversos encontros, portanto, homens entraram em silêncio e saem da mesma forma - entende-se que o fato de o homem estar ali escutando tudo que os outros estão colocando já é uma participação ativa que pode gerar grandes reflexões e permite que, mesmo os mais tímidos/desconfortáveis, permaneçam nos grupos. A migração para o ambiente on-line, de uma certa forma, facilita essa não manifestação do participante, só que o porquê de isso estar acontecendo ganha inúmeras novas possibilidades. Não há garantia, dessa forma, que o participante, mesmo em silêncio, esteja atento e absorvendo o que é colocado pelos outros.

Por outro lado, há a novidade da ferramenta de bate-papo disponibilizada pelas plataformas de videochamada. Com a perda da riqueza já relatada das interações presenciais e o ritmo mais cadenciado das falas dos participantes para garantir uma organização mínima, o bate-papo surge como um espaço alternativo a colocações, comentários e questionamentos, aproximando um pouco mais a experiência interativa do presencial com o virtual, além de garantir a possibilidade dos participantes que estão com conectividade instável e/ou acessando pelo celular ficarem mais atentos e participativos. É válido apontar o risco de o chat ganhar um espaço maior que o de complementar, gerando conversas paralelas e dispersão. Esse fator traz uma nova dimensão de cuidado para os Caseiros, os facilitadores do grupo, para não deixar isso acontecer. Por tudo citado acima, o engajamento dos participantes, mesmo com o chat e a disponibilidade da câmera ligada, é, obviamente, afetado.

O prejuízo da migração do presencial para o virtual é evidente, mas os benefícios advindos do novo formato também são. Mesmo com todos os desafios e reveses elaborados aqui, a experiência dos grupos reflexivos do MEMOH em relação ao engajamento dos homens participantes pode ser vista da mesma forma por um viés positivo.

O ambiente presencial traz, intrinsecamente ao seu formato, o deslocamento da pessoa até o espaço. Mesmo os grupos reflexivos do MEMOH sendo gratuitos, o deslocamento para alguns participantes sempre apareceu como uma grande questão para a presença e frequência para diversos homens. É comum haver participantes de cidades vizinhas e áreas periféricas aos espaços onde os encontros eram feitos presencialmente - região central e zona sul da cidade do Rio de Janeiro e zona oeste da cidade de São Paulo. Os encontros dos três grupos promovidos acontecem sempre após o horário comercial - início por volta das dezenove horas -, fazendo com que os homens voltem para suas casas após às vinte e duas horas. Muitos acabavam não conseguindo participar por conta disso e alguns deixavam de ir aos encontros ao longo do ciclo.

Em oposição à situação descrita está o ambiente virtual. A facilidade de estar presente a um encontro sem a necessidade do deslocamento e o aumento do alcance que a Internet oferece, somados à expansão do interesse pelo debate sobre masculinidades em geral fez crescer - e muito - o número de homens querendo fazer parte dos grupos reflexivos do MEMOH. As inscrições para o ciclo do segundo semestre de 2020 tinham sessenta vagas - vinte por grupo. Ao divulgá-las pelas redes sociais, não foi preciso nem de trinta minutos para chegar a sessenta homens inscritos. Em menos de quarenta e oito horas, já havia mais de quinhentos homens interessados.

A potencialidade de ocupar novos territórios, possibilitando dialogar com homens diversos também de regiões fora do eixo Rio-São Paulo e de suas áreas centrais, e, mesmo que com perdas, evitando evasão e viabilizando o comparecimento de inúmeros homens por não haver a necessidade do deslocamento, se apresenta como características muito positivas e inovadoras para a expansão do debate sobre masculinidades por meio de grupos reflexivos de gênero para homens.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escrita deste texto e suas reflexões acontecem em um momento em que ainda estamos passando por uma pandemia, com recomendações de isolamento social. É evidente que, depois de meses, muitas transformações advindas já se tornaram corriqueiras no cotidiano de muitas pessoas, como as diversas reuniões e contatos on-line.

As experiências apresentadas encontram semelhanças importantes relacionadas ao acesso de novos homens, mas também a exacerbação dos efeitos de desigualdades de acesso digital no país, ampliando desigualdades sociais e de redes de apoio para muitos. Em ambas as experiências, aprendemos a nos adaptar ao novo contexto, sem perder nossas posturas reflexivas, democráticas e éticas. Fica a pergunta sobre qual é o futuro das relações sociais diversas após o período de pandemia e isolamento social. Permanecerão muitos destes formatos on-line de encontros em nosso cotidiano?

Faz-se necessário mapear e conhecer as diferentes experiências em andamento no país e internacionalmente similares às relatadas neste artigo, para a troca de estratégias e potencialidades, pensando no aprimoramento metodológico e na solução de problemas novos de desigualdade relacionados a isso. É importante dizer que o momento de emergência destas relações pelas plataformas on-line também escancarou desigualdades de gênero, divisão desigual de tarefas domésticas, muitos desempregos, aumento de divórcios, feminicídios e casos de agressão conjugal.

Como encontrar espaços seguros para discussão destes temas de forma on-line? Como manter estes temas contemporâneos em discussão? Sugerimos pesquisas e formação contínua e troca de experiências para a consolidação destas práticas e talvez preparação para um futuro híbrido, em que muitos destes formatos permanecerão protagonistas, juntos com espaços presenciais de discussão.

É preciso também avaliar como proceder em casos e discussões que mobilizam muito emocionalmente alguns sujeitos nestes encontros. Como proceder para acionar a rede de apoio local presencialmente? É preciso investigar em cada local as possibilidades de acesso institucional e estratégias de atenção focada a estas pessoas, evitando problemas maiores da distância física. A seleção adequada de conteúdos para discussão, considerando as idiossincrasias deste novo contexto, precisa ser feita com cuidados, atentando a novos sentidos e significados e ao questionamento ao que parecia óbvio em nossas interações anteriormente. Deixamos, portanto, o convite para um exercício reflexivo e construcionista contínuo sobre este tema, com o esforço de manter nossa postura ético-filosófica e democrática nas interações. Há a produção de uma nova etiqueta social e relacional aplicada ao novo contexto relacional em plataformas digitais. É um aprendizado constante e uma oportunidade para transformar e aprimorar nossas conexões e relações, coconstruindo novos espaços relacionais e seguindo com o sonho de uma sociedade mais justa e igualitária, no que se refere a relações de gênero e direitos humanos.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 30/10/2020
Aprovado em 05/12/2020

 

 

1 Reportagem recuperada de www.agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa.
2 Projeto de extensão universitária da UFSC (Dept. Psicologia), do Grupo de Pesquisa Margens (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero) e Grupo de pesquisa do CNPq - NPPJ - Núcleo de Pesquisa em Psicologia Jurídica), em parceria com o TJSC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) - "Projeto Ágora": Grupo Reflexivo Para Atendimento de Homens Autores de Violência contra a Mulher (SIGPEX n. 201823177). Agradecemos a toda a equipe de estudantes de graduação, pós-graduação e voluntários psicólogos participantes deste projeto. Agradecimento em especial a Rodrigo Caio Novaes e a David T. Cardoso, pela leitura cuidadosa deste texto e preciosas contribuições de aprimoramentos.
3 Temos exemplos de algumas iniciativas e experiências, inclusive de grupos reflexivos realizados de forma on-line pelo MEMOH. Alguns grupos de homens com metodologias específicas - não necessariamente dentro da postura teórico-filosófica e metodológica alinhada a processos reflexivos - e outros que seguem a metodologia do MEMOH: Brotherhood, Projeto Desvio, SobreNós, EsseUm, Quintal, Respeito Todo Dia, Instituto Shanti entre outros. No entanto, destacamos que o contexto era anterior à pandemia, portanto, há ponderações que precisamos pensar considerando o isolamento social e virtualização de muitas reuniões e relações.
5 Recuperado de www.memoh.com.br/metodologia/.
6 Recuperado de www.memoh.com.br/podcast/ e em plataformas como Spotify, Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts entre outras.
7 Outras plataformas similares também podem ser usadas, como Jitsi Meet, Cisco Webex e, em alguns casos, o Whatsapp vídeo em grupo, a depender do número de participantes. Este último tem a facilidade de ser o mais comum entre a população, tornando- -se mais acessível e inclusivo.

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