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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v29i68.561 

ARTIGO

 

Psicologização do machismo e romantização da violência de gênero no filme Wifi Ralph

 

Psychologization of machism and romanticization of gender violence in Ralph Breaks the internet movie

 

Psicologización del machismo y romanticización de la violencia de género en la película Wifi Ralph

 

 

Gabriela Martins SilvaI; Domitila Shizue Kawakami GonzagaII

IPsicóloga e professora da área de Psicologia Escolar no Colégio de Aplicação ESEBA, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro do The Taos Institute. E-mail: gabrielampsico@gmail.com
IIPsicóloga, terapeuta familiar e de casal e doutoranda em Psicologia pela USP, Ribeirão Preto, SP, com doutorado sanduíche em Psicologia na Universidade do Porto. E-mail: domitila.gonzaga@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo apresentamos uma análise discursiva do filme WiFi Ralph - Quebrando a Internet, com o objetivo de compreender como a violência de gênero aparece na trama. A partir da perspectiva construcionista social, descrevemos e analisamos três pontos que consideramos centrais na narrativa: quando Vanellope encontra Shank; quando Vanellope encontra outras princesas famosas; e quando Ralph ataca Vanellope. Para a análise, buscamos identificar os diferentes sentidos de gênero e de relações de gênero presentes no filme, destacando como sua narrativa reitera ou desafia os discursos hegemônicos sobre questões de gênero. Ao mesmo tempo, buscamos mostrar o silenciamento dessas questões ao adentrarmos no âmbito da violência, construindo uma perspectiva individual e essencialista sobre sua prática, isto é, a psicologização do machismo. Além disso, identificamos a valorização do excesso de afeto e deste como justificativa para violência, configurando o que chamamos de romantização da violência de gênero. Desta maneira, problematizamos o potencial de filmes infantis em apresentar situações cotidianas que crianças vivenciam e em propor soluções de como lidar com elas, neste caso, a violência de gênero. Advogamos que filmes infantis podem ser utilizados como importantes recursos discursivos e performáticos para que crianças interajam de forma igualitária.

Palavras-chave: Violência de gênero; Normas de gênero; Construção social; Meios de comunicação de massa; Psicologia social.


ABSTRACT

This article presents a discursive analysis of Ralph Breaks the Internet Movie in order to understand how gender violence appears in the plot. From the social constructionist perspective, we describe and analyze what we consider three central points of the narrative: when Vanellope meets Shank; when Vanellope meets other famous princesses; and when Ralph attacks Vanellope. Then, we analyse these points to identify different meanings of gender and gender relations, highlighting how they reiterate or challenge hegemonic discourses on gender issues. At the same time, we aim to show how these gender issues are silenced when we enter at the sphere of violence, building an individual and essentialist perspective on its practice, what we call psychologization of machism. In addition, we identified an appreciation of the excess of affection and this used as justification for violence, configuring what we call romanticization of gender-based violence. In this way, we problematize the potential of children's movies to present everyday situations that children experience and to propose solutions on how to deal with them, particularly in this case, with gender-based violence. We advocate that children's movies can be used as important discursive and performative resources for children to interact on an equal basis.

Keywords: Gender-based violence; Gender norms; Social construction; Mass media; Social psychology.


RESUMEN

Este artículo presenta un análisis discursivo de la película WiFi Ralph, para comprender cómo la violencia de género aparece en la trama. Desde la perspectiva construcionista social, describimos y analizamos tres puntos que consideramos centrales en la narrativa: cuando Vanellope se encuentra con Shank; cuando Vanellope conoce a otras princesas famosas; y cuando Ralph ataca a Vanellope. Para el análisis, buscamos identificar los diferentes significados de género y de las relaciones de género presentes en la película, destacando cómo su narrativa reitera o desafía los discursos hegemónicos sobre género. Al mismo tiempo, buscamos mostrar el silenciamiento de estos temas cuando entramos en el ámbito de la violencia, construyendo una perspectiva individual y esencialista sobre su práctica, es decir, la psicologización del machismo. Además, identificamos la apreciación del exceso de afecto y esto como una justificación de la violencia, configurando lo que llamamos la romantización de la violencia de género. De esta manera, problematizamos el potencial de las películas infantiles para presentar situaciones cotidianas que los niños experimentan y para proponer soluciones sobre cómo abordarlas, en este caso, la violencia de género. Abogamos por que las películas para niños se puedan usar como importantes recursos discursivos y performativos para que los niños interactúen en igualdad de condiciones.

Palabras clave: Violencia de género; Normas de género; Construcción social; Medios de comunicación de masas; Psicología social.


 

 

INTRODUÇÃO

A literatura científica nos indica que os contos e histórias infantis trazem em suas tramas diversos valores e padrões sociais, exercendo importante influência na forma como as crianças significam o mundo ao seu redor e a si mesmas (Contreras Salinas & Ramírez Pavelic, 2011; Ochoa et al., 2006; Pires, 2009; Raffaini, 2018; Ramos, 2015; Rodríguez Washington et al., 2013; Streib et al., 2017; Vieira, 2006).

Juntamente com sua importância para o desenvolvimento infantil, uma vez que têm papel fundamental na aquisição da linguagem e apropriação da cultura, os contos infantis reproduzem diferentes conteúdos discriminatórios, referentes a gênero, classe social, etnia, aparência física, idade etc., presentes em nossa sociedade (García Ramírez, 2014; Ochoa et al., 2006; Streib et al., 2017).

Assim, os contos e histórias infantis, em suas diversas formas de apresentação (livros, filmes, áudio-gravações etc.), se tornam um dos caminhos de perpetuação de processos de desigualdade. Nesse sentido, algumas pesquisadoras têm se dedicado a compreender de que forma os conteúdos sexistas e machistas se fazem presentes nos contos e histórias infantis, perpetuando a cultura patriarcal.

Por exemplo, em um estudo sobre o sexismo presente nos contos infantis mais lidos nas pré-escolas de uma cidade venezuelana, Ochoa et al. (2006) identificaram, dentre outros aspectos, que, na maioria dos contos, a trama se desenrola em torno da figura masculina, mesmo quando o título da história traz o nome de uma personagem feminina. Com isso, destacam o androcentrismo e a invisibilidade da experiência feminina presente nos contos.

Além disso, as autoras identificaram que, na maioria dos contos, a figura feminina está ligada a atividades domésticas e de cuidado da família, em posições passivas e submissas às figuras masculinas. Já as figuras masculinas são ligadas a posições de dominação, sendo destacadas a astúcia, a inteligência e a força, tendo a função de defender e salvar as mulheres, tidas com indefesas. Com isso, ressaltam Ochoa et al., se naturalizam certas características de gênero, limitando outras possibilidades de vida e significação de si.

As histórias contadas em filmes infantis são relevantes não só porque muitos deles são baseados em contos literários (como é o caso dos contos de fada), mas também porque se tornaram importante produto de consumo do público infantil, tendo sua audiência incentivada por propagandas e produtos de consumo temáticos, que intensificam a influência desse conteúdo na leitura de mundo feita pelas crianças (Lelis, 2016). Tanto é que os filmes com classificação livre e maiores taxas de venda, tanto em cinemas quanto em meio para exibições domésticas, já em 2006, eram filmes infantis (Sundaram, 2006) e, em pesquisa feita com crianças norte-americanas de 0 a 6 anos, em 2007, verificou-se que um terço delas assistia a filmes e vídeos cotidianamente, na média de uma hora e dezoito minutos por dia (Vandewater et al., 2007). No Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), dentre os dez filmes com maiores números de público em 2019, dois são animações - Toy Story 4 e Wifi Ralph Quebrando a Internet - além de outros quatro, com classificação etária indicativa de 10 anos, que se tratavam de filmagens realísticas de animações ou histórias infantis - Rei Leão, Homem-Aranha Longe de Casa, Malévola: a Dona do Mal e Alladin (Ancine, 2020).

A partir do final da década de 90, temos visto um maior engajamento das produtoras de filmes e editoras de livros infantis na produção de conteúdos que extrapolam os contos de fadas com expressões tradicionais de gênero, ampliando as possibilidades de ser mulher. Como exemplo, podemos citar os filmes Mulan (Coats, Bancroft, & Cook, 1998), Valente (Sarafian, Andrews, & Chapman, 2012) e Moana - Um mar de aventuras (Shurer, Clements, & Musker, 2016), e os livros A Princesa Sabichona (Cole, 1998), Até as Princesas Soltam Pum (Brenman, 2008) e o recente lançamento Lute como uma Princesa - Contos de Fadas para Crianças Feministas (Murrow, 2019). Nessas histórias, as restrições impostas ao gênero feminino são questionadas e, em muitas delas, o apoio entre as mulheres é ponto fundamental.

Além disso, temos presenciado uma atenção crescente ao diálogo também com meninos e homens, no intuito de compreender as restrições que o machismo impõe, inclusive, à vida deles. O projeto Escolas Transformadoras, o Instituto Alana, a ONG Promundo, o espaço Papo de Homem e o Instituto Papai1 são algumas dessas iniciativas que têm aprofundado o debate em torno dos efeitos restritivos e violentos que o machismo tem para meninos e homens, além de para meninas e mulheres. Além delas, algumas produções midiáticas voltadas ao público infantojuvenil, como os filmes Detona Ralph (Spencer & Moore, 2012) e Wifi Ralph Quebrando aInternet (Spencer, Moore, & Johnston, 2018), os curtas-metragens In a heartbeat (David & Bravo, 2017) e Eu não Quero Voltar Sozinho (Ribeiro, 2010), além do livro Príncipe Cinderelo (Cole, 2005), merecem menção.

Essas iniciativas são importantes, pois a construção cultural do que é ser homem traz as marcas do machismo e da masculinidade normativa ou hegemônica, que valoriza a competitividade, a dominação e a força, influenciando, por sua vez, a adoção de práticas de risco por meninos e homens (Connell & Messerschmidt, 2013; Souza, 2005).

A Organização Pan-americana de Saúde aponta que a masculinidade normativa está ligada às três principais causas de morte de homens jovens. São elas: a violência interpessoal, na proporção de 7 homens por mulher, os acidentes de trânsito, na proporção de 3 homens por mulher, e a cirrose hepática, causada pelo consumo de álcool, cuja proporção de casos entre os homens é o dobro das mulheres (Organización Panamericana de la Salud, 2019).

Assim, homens estão mais suscetíveis ao abuso de álcool e outras substâncias tóxicas, ao envolvimento em brigas corporais, ao uso da violência como forma de resolução dos problemas e à adoção de comportamentos agressivos no trânsito, como alta velocidade, manobras imprudentes e direção sob efeito de substâncias (Organización Panamericana de la Salud, 2019). O efeito disso é marcante também na vida de mulheres que, quando em relacionamentos afetivos com homens, ficam suscetíveis à violência de gênero (Cavaler & Macarini, 2020; Galeli & Antoni, 2018).

A violência de gênero manifesta-se na violência doméstica e na violência conjugal de diferentes formas - física, psicológica, material, constituindo uma grave violação dos direitos humanos. Dados do "Mapa da violência, 2015: homicídio de mulheres no Brasil" revelam que a cada dois minutos há um registro de violência doméstica no país (Waiselfisz, 2015). Diante da complexidade social e relacional envolvida no fenômeno da violência contra a mulher, a Lei n. 11.340, de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, prevê ações não apenas de cunho punitivo aos autores de violência, mas iniciativas de prevenção em diversos âmbitos, incluindo o midiático e o educacional, além de intervenções grupais reflexivas junto aos homens que praticaram violência de gênero (Antezana, 2012; Beiras et al., 2019).

Nesse sentido, faz-se necessário, também, o engajamento na produção midiática, tanto de filmes quanto de livros infantis, que produza maior liberdade de vida a meninos, com noções de masculinidade que incluam a possibilidade de expressão emocional, apoio mútuo e igualdade de responsabilidades entre gêneros.

A partir do exposto, conceituamos gênero como um processo socialmente construído, portanto, não biologicamente definido. As expressões culturalmente consideradas como "tipicamente" masculinas (tal como a força e a competitividade) ou femininas (maior sensibilidade e proposição ao diálogo) são produzidas, reproduzidas e sustentadas em um ciclo de interações entre as pessoas, e por expectativas sociais e padrões que se estabelecem por essas interações. As interações, por sua vez, respondem aos aspectos estruturais de gênero, que influenciam na manutenção dos comportamentos genderizados (Biever et al., 1998; Butler, 2013; Lorber, 2008; Marshall, 2008; Scott, 1986).

Nesse sentido, este texto enfoca uma produção recente dos estúdios Disney, o filme Wifi Ralph - Quebrando a Internet, uma vez que, além de trazer conteúdos relacionados às expressões de gênero, ele nos traz a possibilidade de reflexão sobre a violência de gênero. Assim, propomos uma análise discursiva do filme com o objetivo de compreender como a violência de gênero aparece na trama. Buscaremos, especificamente, identificar os sentidos de gênero e de relações de gênero que compõem a narrativa, bem como seus efeitos, tanto na trama, quanto nas possibilidades de interações viáveis entre as crianças que estão relacionadas direta ou indiretamente ao filme.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo qualitativo, realizado a partir da perspectiva construcionista social. Essa perspectiva nos convida a examinar a linguagem como aspecto fundamental nas relações humanas e na construção do mundo. Como linguagem e discurso entendemos não apenas a linguagem oral e escrita, mas todos os aspectos ligados à comunicação e ao relacionamento humano: imagem, postura, gestos etc. (Gergen, 2015; Shotter, 2000).

Especificamente, os pressupostos da pesquisa construcionista social nos servem, nesta pesquisa, para analisar quais sentidos têm sido veiculados no filme Wifi Ralph Quebrando a Internet que podem sustentar ou problematizar noções hegemônicas a respeito do que é ser menina, menino e também, especialmente, como é entendido o fenômeno da violência de gênero. Ao considerar que a produção discursiva também é produção de interação, entendemos que determinados sentidos produzem diferentes relações sociais (McNamee, 2014).

O filme Wifi Ralph Quebrando a Internet (Moore & Johnston, 2018), lançado no Brasil em 2019, é uma animação que dá continuidade à história de Ralph, um famoso vilão de videogame, iniciada no filme Detona Ralph (Spencer & Moore, 2012). É importante contextualizar que a história de Ralph se dá em torno da desconstrução de alguns estereótipos de gênero tanto masculinos quanto femininos. No Detona Ralph, o personagem busca um lugar no mundo que extrapole as características dominantes de homem valentão atribuídas a ele. Para isso, ele encontra apoio em uma amiga, Vanellope, que, ao mesmo tempo em que é doce e sensível, caracterizando sua feminilidade, tal como apregoa o estereótipo feminino, é corajosa e adora velocidade e aventura, algo que a diferencia do considerado padrão feminino.

Em Wifi Ralph Quebrando a Internet, foco deste texto, essas características são mais exploradas, gerando o mote da análise aqui proposta. Na história, os personagens Ralph e Vanellope enfrentam o desafio de comprar, na internet, um novo volante para o jogo de fliperama "Corrida Doce", do qual Vanellope faz parte, evitando que o jogo seja desligado permanentemente, em decorrência do volante danificado. A história se passa, portanto, na aventura que empreendem na rede, um espaço totalmente novo para ela e ele, quando se deparam com a necessidade de conseguirem dinheiro para a compra do novo volante.

Dessa aventura, nos propomos a descrever e analisar três pontos: quando Vanellope encontra Shank; quando Vanellope encontra outras princesas famosas; e quando Ralph ataca Vanellope. Cada um desses pontos será apresentado a seguir, compondo a análise e discussão dessa pesquisa. Para cada um deles, consideraremos os sentidos sobre gênero e sobre relações de gênero que compõem a narrativa, viabilizando a compreensão da violência de gênero presente na história, examinada em tópico específico.

 

QUANDO VANELLOPE ENCONTRA SHANK: IDENTIFICAÇÃO E APOIO MÚTUO

Com o objetivo de conseguirem dinheiro para comprarem um novo volante para o fliperama da "Corrida Doce", Vanellope e Ralph encaram a tarefa de tentar "roubar" o carro de Shank, estrela do jogo "Corrida do Caos", em busca de uma recompensa. Esse é um jogo novo para ambos, que envolve velocidade, lutas e armas.

Shank é uma mulher branca, magra, bem vestida e maquiada, de cabelos longos, sensual, sensível e educada, com papel de liderança no jogo. A personagem tem habilidades estratégicas e sagazes, articuladas à coragem e à velocidade na direção. Vanellope, ao conhecer o "Corrida do Caos", fica extasiada com a possibilidade de tantas aventuras imprevisíveis, que exigem capacidades em lidar com criatividade e rapidez, o que já não acontecia mais em sua conhecida "Corrida Doce". Dirigindo o carro de Shank, Vanellope mostra também coragem e velocidade, rapidamente reconhecidas e valorizadas por Shank, quando finalmente consegue, não sem dificuldade, impedir que Vanellope leve seu carro.

Nesse trecho do filme podemos ver a valorização de características femininas não hegemônicas em personagens mulheres: coragem, habilidade na direção, gosto pela aventura e pela velocidade, poder e liderança. Essas características fora do padrão são sobrepostas a outras, estas sim, hegemonicamente consideradas do âmbito feminino, como corpos dentro do espectro/padrão de beleza, sensibilidade e doçura.

É importante, ainda, considerar o tipo de relação de gênero que se estabelece nesse trecho, especificamente entre estas três personagens, Vanellope, Shank e Ralph, a partir de algumas características que destacamos.

Ralph, o protagonista da história, é um personagem, que, como pontuamos, busca refletir e flexibilizar características circunscritas na masculinidade hegemônica. Em determinados diálogos deste filme, declara como sua vida melhorou após a amizade que estabeleceu com Vanellope. Ao mesmo tempo, Ralph, com seu estereótipo físico padrão - branco, alto e forte -, mostra-se também sensível e cuidadoso, dedicando-se em ajudar sua amiga, ainda que receoso e medroso diante dos desafios colocados na corrida.

Desta maneira, este trecho em específico apresenta uma inversão no papel de salvador ou herói, comumente endereçado aos homens. Aqui, é Vanellope quem os salva dos perigos, evidenciando sua coragem e audácia criativa na direção para atingir os objetivos deles, de roubar o carro de Shank e, finalmente, conseguir dinheiro para comprar o novo volante para seu jogo. De qualquer maneira, é válido pontuar que Ralph declara não gostar de Shank desde esse primeiro contato, oferecendo informações que se revelam importantes para o decorrer do filme, bem como desta análise.

A relação entre Shank e Vanellope, além da descrição de ambas já apresentadas, também se dá de forma contra-hegemônica. Diferentemente das relações entre mulheres representadas nas mais diversas mídias audiovisuais, marcadas pela competição (o que seria, sobremaneira, esperado em um jogo de corridas), o que se dá é uma relação de imediata identificação, admiração, apoio e reconhecimento mútuo de habilidades e capacidades. A disputa acirrada que ocorre entre elas, na tentativa de roubo do carro de Shank por Vanellope, se transforma tão logo a corrida é finalizada, e o relacionamento entre elas é, então, marcado pela solidariedade e companheirismo.

Desta forma, essas personagens contribuem para ampliar o rol do que é considerado "coisa de menina" e "coisa de menino". Tanto as meninas quanto os meninos são convidados a desafiarem os padrões de gênero colocados a elas e eles, tendo permissão para se aventurarem, para expressarem suas emoções e para se apoiarem mutuamente.

 

QUANDO VANELLOPE ENCONTRA AS PRINCESAS:POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO CONJUNTA

Ainda na busca de conseguir o montante necessário para a compra de um novo volante para seu fliperama, Vanellope, em determinado momento do filme, ao fugir de perseguidores (espécie de antipop-ups da internet), invade o camarim de princesas famosas de histórias infantis - das mais tradicionais como Branca de Neve e Cinderela, até as mais recentes, como Moana e Elsa - em busca de esconderijo. Como a entrada no mesmo era restrita, a chegada de Vanellope é recebida com estranhamento pelas princesas. Contudo, tão logo Vanellope revela que também é uma princesa, as demais se prontificam em acolhê-la, mesmo com o estranhamento por ela não ter as características típicas de princesa, relacionadas à beleza e ao comportamento - Vanellope não usa vestido longo e rodado, tampouco penteado, maquiagem ou salto alto, também não é elegante e altiva e nem mesmo sabe cantar.

Nesse trecho, um dos mais cômicos do filme, elas estabelecem uma conversa curiosa sobre diferenças e semelhanças, em torno da argumentação de Vanellope sobre a legitimidade de seu título de princesa. Por fim, elas encontram um ponto fundamental em comum: o fato de todos pensarem que os problemas delas acabaram porque um "cara fortão" apareceu. Tal fato legitima Vanellope como princesa e, então, elas podem conversar com cumplicidade.

Nesse trecho identificamos o reconhecimento das imposições de sentidos hegemônicos de gênero colocadas às mulheres princesas. Em contato com Vanellope, elas encaram a problematização dessas imposições. Vanellope estranha as descrições do que é ser princesa: condições de envenenamento, maldições, sequestros, escravização... Situações, segundo Venellope, dignas de que se recorra à polícia. O principal impacto dessa problematização, todavia, se dá na alteração da vestimenta das princesas, pois Vanellope as influencia para que adotem, assim como ela, roupas confortáveis - moletons, camisetas, leggings, shorts, tênis - e, recebe, então, a condecoração de "rainha do conforto". Ao mesmo tempo, as princesas compartilham com Vanellope alguns saberes, especialmente a importância de descobrir e valorizar seu verdadeiro desejo, algo que se torna muito importante para o desenrolar da história. Temos, assim, uma relação intragênero, novamente, marcada pela valorização e fortalecimento mútuos.

Esse trecho tem como efeito um apelo para a igualdade de gênero, a partir da consideração da opinião das mulheres princesas diante do que lhes é imposto. Isso se faz por meio da nomeação, por Vanellope, das inúmeras restrições e constrangimentos pelas quais as princesas passaram em suas histórias - como casos de polícia -, e por meio do reconhecimento de necessidades das princesas que extrapolam a beleza e a bondade, tal como o conforto, estabelecendo a construção da possibilidade de diversidade. E, como isso se dá a partir da relação das mulheres com elas mesmas, produz um efeito de valorização da amizade entre as mulheres e de reconhecimento da capacidade de elas se fortalecerem e, conjuntamente, se libertarem.

 

QUANDO RALPH ATACA VANELLOPE: VIOLÊNCIA DE GÊNERO E EXTERNALIZAÇÃO DO PROBLEMA

A partir do contato com Shank e com o jogo "Corrida do Caos", bem como inspirada por sua conversa com as princesas, Vanellope começa a ter dúvidas sobre se deseja voltar para o seu jogo de origem. Esta reflexão se faz paralelamente a Ralph atingir os objetivos de conseguir dinheiro, pelas ferramentas que a internet oferece, para, finalmente, comprar o volante do jogo da amiga e ambos voltarem para casa e para suas rotinas.

Assim, Vanellope procura por Shank, com quem tem uma conversa sobre a possibilidade de fazer parte do "Corrida do Caos". Vanellope descobre que esse é o seu verdadeiro desejo, mas compartilha com Shank sua insegurança e receio à reação de Ralph. Shank a acolhe e aconselha que um amigo verdadeiro valoriza e apoia os sonhos de outro amigo, já que estes sonhos não necessariamente precisam ser os mesmos.

Nesse momento, Ralph faz um contato telefônico com Vanellope e, sem que ela perceba, escuta toda a conversa e se ofende com a revelação. Ralph, então, tomado pelo ciúme, expressa o sentimento de raiva, tendo o impulso de ir buscá-la imediatamente. Para ele, é evidente que a amiga sofreu uma lavagem cerebral, enfatizando o seu desagrado pela presença de Shank na vida da Vanellope, avaliando que o "Corrida do Caos" fazia mal para ela. É uma cena, somada a outras de menores ênfases no filme, na qual Ralph performa o que é conhecido por mansplaining, isto é, quando o homem explica algo à mulher presumindo que ela não tenha capacidade de entendimento, desqualificando o seu saber.

A expressão mansplaining, de modo semelhante à expressão gaslighting, citada adiante, tem sua origem nas interações cotidianas, tendo sido recentemente disseminada pela internet (Liguori, 2015; Rufino, 2018; Stocker, Dalmaso, Stocker, & Dalmaso, 2016). Neste caso em específico, o mansplaining acontece porque Ralph presume que sabe mais sobre os desejos de Vanellope do que ela mesma.

Com a ajuda de um anunciante de resoluções simples, garantidas e fáceis (por exemplo, "como ganhar dinheiro jogando videogame"), Ralph troca o plano de ir buscar a amiga pelo de disparar um vírus no "Corrida do Caos". Desta maneira, o jogo se tornaria menos interessante à Vanellope, afetando sua vontade de permanecer nele. Ralph, então, deixa a impulsividade e parte para o planejamento de uma ação violenta que visa ao boicote dos planos de Vanellope.

A situação foge ao planejado por Ralph quando o vírus, inserido no jogo, começa a espalhar códigos de vulnerabilidade por toda a parte, colocando a vida de Vanellope em risco. Ao se dar conta disso, Ralph se arrepende e vai ao resgate de Vanellope, salvando-a do desaparecimento.

Tomando a relação de Vanellope e Ralph como uma metáfora das relações amorosas entre homens e mulheres, nesse trecho, além das características de gênero já apontadas anteriormente, destacamos outras mais específicas às expectativas de performances. Vanellope, assim que é salva por Ralph, revela seus sentimentos de responsabilidade pelo cuidado e manutenção da relação com Ralph, bem como de culpa por não querer as mesmas coisas que ele, o que a faz cogitar sacrificar o seu desejo para preservar a relação. Ao mesmo tempo, vemos que Ralph tinha essas expectativas com relação à Vanellope, sentindo-se traído e enciumado quando descobre que ela tinha o desejo de mudar de jogo e que a relação com ele não bastava para a felicidade dela.

Esses sentimentos são expressos por Ralph por meio da raiva e da explosão, comportamentos legitimados na perspectiva tradicional da performance do gênero masculino. Nesse contexto, Ralph demonstra o seu sentimento de posse em relação à Vanellope, desconsiderando o desejo dela em detrimento do seu. Com isso, vemos a reprodução das representações hegemônicas de gênero na trama, com a naturalização do comportamento agressivo do homem como forma de reagir aos dilemas da vida e aos sentimentos ruins que podem vir deles, bem como já foi dito, a expectativa de que as mulheres cuidem das relações.

Essas performances tradicionais de gênero promovem uma relação desigual e abusiva entre os dois. Ralph, ao infectar o jogo "Corrida do Caos", destrói algo que Vanellope gosta - o jogo e seus novos amigos - e coloca a vida de Vanellope em risco. É evidente, neste momento do filme, Ralph como autor de violência psicológica e física. Ainda, sua performance se relaciona aos casos clássicos de violência de gênero e feminicídio, em que o homem, enfurecido por ciúmes, é autor de violências contra a mulher, posteriormente, mostrando arrependimento (Falcke, Boeckel, Arpini, & Madalena, 2015; Penha, 2012).

Ralph, então, arrependido, encara diversos riscos para evitar o desaparecimento de Vanellope, tirando-a do jogo. Ao se ver salva, ela o enaltece e se julga por ter desejado deixá-lo. Ralph não aceita a posição de herói, confessando à Vanellope que ele mesmo causara toda a situação, mas justifica sua ação violenta pelo desejo de Vanellope de deixar o jogo, num movimento conhecido como gaslighting.

A expressão gaslighting, como já dito sobre mansplaining, é um sentido de uso cotidiano, referendada na internet. Refere-se ao processo de desacreditação e deslegitimação das mulheres pelos homens, de modo que a mulher passa a duvidar de sua faculdade mental para análise da situação vivida ou mesmo a se culpabilizar pela violência que sofre (Liguori, 2015; Rufino, 2018; Stocker et al., 2016).

Essa tentativa de manipulação por Ralph, contudo, é confrontada por Vanellope, que rompe definitivamente com ele, ressaltando que um amigo de verdade não faria o que ele fez. Essa atitude de Vanellope tem como efeito desnaturalizar a violência de gênero que estava em curso, pois ressalta o significado de uma relação de amizade, em detrimento de performances hegemônicas de gênero. Chama atenção o fato de ela ter utilizado um argumento que fora antes utilizado por Shank ao aconselhá-la, nos convidando a compreender essa atitude como efeito da conversa que ela teve com a amiga, que parece ter ampliado sua forma de significar a situação.

De forma semelhante ao que ocorre nos casos reais de violência de gênero, no momento em que Vanellope rompe com Ralph, ele se descontrola e a persegue por toda a parte. Todavia, há uma diferença muito importante com relação aos casos reais: Vanellope é perseguida por milhares de Ralphs, pegajosos e violentos, criados a partir da clonagem do que fora chamado no filme de "insegurança de Ralph" - caracterizada pelos seus sentimentos de posse e ciúme.

Nesse ponto, ocorre o que consideramos uma metáfora da externalização do problema. Epston, White e Murray (1992) trazem a noção de externalização do problema como uma estratégia conversacional que viabiliza que a pessoa se distinga do problema, possibilitando, assim, que alternativas sejam possíveis em uma narrativa saturada pelo problema. O que sustenta esse constructo é a ideia de que organizamos nosso senso de self e damos sentido ao mundo por meio de narrativas. Assim, em alguns momentos, algumas situações problemáticas podem parecer sem saída, isto é, se tornam narrativas saturadas pelo problema. E, nessas ocasiões, fazer a separação entre pessoa e problema auxilia na visualização de novas perspectivas.

Nesse sentido, Ralph se viu possibilitado de redefinir sua história e seu self, corrigindo o seu erro por meio do enfrentamento do grande e perigoso monstro, constituído de todos seus "clones" inseguros - e machistas - compondo um ser monstruoso, a partir do pior de si mesmo. Desta forma, ele conseguiu dizer para si mesmo, representado pelo monstro, que a amizade significava confiança mútua e que Vanellope tinha o direito de ser livre, dissolvendo o monstro e restabelecendo os laços de amizade e confiança com ela. Com isso, a relação desigual e violenta se transformou no reconhecimento da igualdade, na legitimação da liberdade de Vanellope e em bem-estar para ambos.

 

PSICOLOGIZAÇÃO DO MACHISMO E ROMANTIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

À primeira vista, o filme infantil Wifi Ralph Quebrando a Internet promove questionamentos e tensionamentos das representações e performances hegemônicas acerca dos gêneros feminino e masculino em sua narrativa. Conforme exposto, apresenta outros discursos do que pode ser "de menina", em termos estéticos, de gostos, bem como possibilidades positivas de relacionamentos entre mulheres. Da mesma forma o faz com meninos, com a construção de um protagonista forte e corajoso, mas também sensível e medroso.

Nossa intenção, contudo, é apresentar omissões, as quais avaliamos como sustentações de discursos heteronormativos, sexistas e patriarcais, bem como problematizar seus efeitos. Diante das análises realizadas até aqui, é importante ponderar o silenciamento que se dá, no filme, das questões de gênero ao adentrarmos no âmbito da violência. Se até então o filme não se furtou a destacar as problematizações relacionadas às performances hegemônicas de gênero, especialmente daquelas relacionadas às personagens mulheres, ocorre um apagamento dessas questões quando o conflito entre Ralph e Vanellope se constitui.

Nas cenas em que Ralph claramente é violento com Vanellope, se propondo a destruir os sonhos, desejos e afetos da amiga, bem como a colocando em situações de risco de morte, a narrativa do filme se dá de maneira a sermos convidadas a compreender o conflito como simplesmente carência e insegurança, ou como divergência de planos e sonhos, aspectos relacionados à subjetividade individual das personagens.

Ocorre, dessa forma, o processo de psicologização do machismo, ou seja, a narrativa propõe, explicitamente, a compreensão do comportamento de Ralph como algo inerente ao seu ser, como algo que ele, individualmente, produzira. E, nesse sentido, o filme, ao mesmo tempo que sustenta discursos essencialistas sobre a violência masculina, perde na possibilidade crítica de apresentar aspectos construídos socialmente, que se referem às desigualdades de gêneros reveladas em situações de violência.

Ao nosso ver, o filme poderia oferecer recursos a meninas e meninos de como perceber que estas são situações de violência cotidianamente vividas por meninas, e de como lidar com elas de forma a desconstruir a violência. O que se passa, no entanto, é que o filme não possibilita o reconhecimento de que o conflito entre Ralph e Vanellope se trata, na verdade, de cenas repetidas de violência de gênero, envolvendo não só a violência física, mas também a psicológica, como já pontuado por nós.

Esse apagamento é relevante porque dificulta a compreensão de que o que estava em jogo era o desrespeito às escolhas e às vontades de Vanellope e a tentativa de submissão de suas vontades às dele. Assim, o processo de psicologização do machismo vem acompanhado também da construção da romantização da violência de gênero, pois as ações violentas de Ralph são entendidas como consequência de um excesso de apego e sua insegurança de que seu amor não seja recíproco ou suficiente, ou seja, a violência é entendida como resposta ao excesso de seu amor.

Esse entendimento é ainda mais incentivado no filme com o destaque dado às ações de Ralph no sentido de ajudar Vanellope a recuperar o volante para o seu jogo de origem, tomadas como prova de amor, tal como as ações violentas. Para isso, ocorre uma supervalorização das ações de ajuda e companheirismo de Ralph, ao invés de serem compreendidas como inerentes a uma relação de amizade, juntamente com a minimização das suas ações de violência, que, por sua vez, não são consideradas como incompatíveis com uma relação de amizade. Esta condição é enfatizada pela fala da personagem Yess, que absolve Ralph à Vanellope, justificando seus autos violentos por tentar "salvar sua melhor amiga".

Este processo de romantização é problemático por duas razões. Primeiro por reproduzir o entendimento de que as demonstrações de afeto são válidas quando "excessivas", e, em seguida, por considerá-las justificativas legítimas para a violência. O excesso se dá pela representação desproporcional do que é denominado de afeto e zelo de Ralph em relação ao que Vanellope relata querer. No decorrer do filme, Ralph expressa de diferentes formas e em momentos distintos que Vanellope assume papel central em sua vida, sendo a principal fonte de sua felicidade. Ao passo que, para Vanellope, há preocupação em demasia por parte do amigo, o que a constrange de ser sincera com ele, mas, principalmente, com seus próprios desejos. Para nós, este excesso de afeto, zelo e amor é tanto não questionado, quanto romantizado na trama.

Essa concepção é grave, pois contribui para a manutenção de relações abusivas e violentas, ao mesmo tempo que sustenta a relação inerente entre amor e violência. Meninas são levadas a compreender que meninos são violentos porque amam e meninos levados a entender que o excesso de sentimento, bem como o ciúme, são justificativas suficientes para atos violentos (Cavaler & Macarini, 2020; Galeli & Antoni, 2018). Daí a importância de se nomear a violência de gênero como ela é, ressaltando a desigualdade de gênero que a sustenta.

Nossas problematizações se dão em perceber um filme voltado para o público infantil com potencial não apenas de desafiar performances e discursos de gênero, mas também em oferecer recursos de como lidar com situações cotidianas que meninos e meninas passam no que diz respeito à violência de gênero. Apontamos diversos esforços presentes nesta história na proposição de alternativas aos discursos hegemônicos. Contudo, em relação à resolução do tema central do filme, que é a situação de violência de gênero que se estabelece entre um amigo e uma amiga, o filme falha em servir como um recurso para construção de interações saudáveis e soluções emancipatórias.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, as análises aqui realizadas sinalizam para o processo de psicologização do machismo e de romantização da violência de gênero, a despeito da problematização de alguns aspectos relacionados aos estereótipos de gênero. Ao mesmo tempo em que o filme nos convida à desconstrução dos sentidos e performances hegemônicos de gênero, especialmente dos femininos, nos convida, também, à compreensão de comportamentos típicos machistas e de relações abusivas entre homens e mulheres como atribuições subjetivas e individuais, decorrentes do excesso de amor.

A partir dos pressupostos da pesquisa construcionista social, entendemos que o mundo se faz a partir de como o nomeamos e como agimos com estas nomeações. Portanto, para nós, é importante que palavras específicas sejam eleitas, justamente pelo caráter político que se tem, a partir das possibilidades de ações que essas palavras evocam. Um apelo de feministas negras, por exemplo, é a importância de falar sobre situações de violência, para que elas passem a existir (Crenshaw, 2004). Portanto, a problematização central deste artigo mora justamente em que tipos de interações são possíveis quando se denomina a mesma situação de "excesso de amor" ou "violência de gênero".

Por outro lado, o processo de transformação que ocorre com Ralph, possibilitado pelo que chamamos de externalização do problema, nos sinaliza para um caminho promissor no enfrentamento dessas questões. Convida-nos a reconhecer a importância de envolver meninos e homens nas discussões sobre como o machismo afeta e empobrece suas próprias vidas, bem como de que o enfrentamento à violência de gênero não prescinde da participação deles.

Para isso, o uso da linguagem externalizadora (Epston et al., 1992) é uma estratégia muito útil, não no sentido da psicologização, mas por permitir o exame do caráter social do machismo, de como ele afeta nossas vidas e como nós contribuímos para sua reprodução. Assim, conseguimos visualizar possibilidades de ação e transformação do mundo, a começar por nossas ações individuais, diante de uma cultura machista. Como ocorre no filme, quando Ralph se vê separado do seu machismo, podendo se perceber, inclusive, como mais uma vítima dele, ele foi capaz de mudar suas ações e seu entendimento sobre a situação, reconhecendo Vanellope como livre e com direito de escolha sobre a própria vida.

O filme, assim, a despeito de suas limitações, se constitui em um recurso interessante para suscitar conversas e reflexões no sentido da construção de masculinidades saudáveis e legítimas. Consideramos este um papel importante da mídia, sendo essa uma agência produtora de discursos, e, consequentemente, de interações sociais (Borges & Spink, 2009; Medrado, 2000). Especificamente voltado para o público infantil e com capacidade de acesso mundial, considerando ser uma animação do estúdio Disney de cinema, refletimos a importância de oferecer possibilidades alternativas de interações e resoluções de problemas para crianças.

Destacamos, ainda, a importante contribuição do filme ao valorizar o relacionamento entre as mulheres como forma de libertação e apoio mútuo. Como buscamos mostrar, essa relação é aspecto marcante na história, sendo definidora dos rumos da narrativa.

Contudo, é importante pontuar que os padrões de beleza feminina, o racismo e o classismo foram aspectos naturalizados no filme. As personagens principais, Ralph e Vanellope, são brancos, tal como Shank, importante personagem coadjuvante no filme. Como já dito, Shank preserva características do padrão de beleza feminina - tal como magreza, cabelo liso e longo e uso de maquiagem - da mesma forma que Vanellope, uma menina com penteado e adereços tipicamente femininos. Além disso, o poder de Shank é desenhado no filme não apenas com base em suas características pessoais, mas também por meio de suas roupas e do caráter luxuoso de seu carro, que se destaca dentre os demais. Algo semelhante ocorre com as princesas, que, sendo representantes da alta classe e, na maioria, brancas, não proporcionam o espaço para a valorização das mulheres negras e de classes sociais baixas.

Mas é em relação a Ralph que o preconceito de classe se torna explícito. Diferentemente das personagens aqui analisadas, Ralph não tem vestimentas consideradas dentro do padrão da normalidade burguesa. Usa um macacão com defeito e permanece descalço por todo o filme. Por essa razão, em tom de piada, foi chamado, por duas vezes, no filme, de mendigo.

Essas observações sinalizam para importantes limitações do presente texto e para aspectos que precisam ser cada vez mais denunciados nos conteúdos midiáticos. Tal como vemos acontecer com a desnaturalização dos sentidos hegemônicos de gênero, crescentemente presente nos filmes e livros infantis, é preciso, também, que nos atentemos na produção de conteúdos, tanto midiáticos quanto acadêmicos, que sejam antirracistas e anticlassistas.

Por fim, esperamos que este texto contribua para o exercício crítico e reflexivo diante de produções midiáticas direcionadas ao público infantil, tornando-os, a despeito de seu conteúdo, ferramentas para diálogos, problematizações, questionamentos, ressignificação e ampliação de sentidos.

 

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Recebido em 01/04/2020
Aprovado em 25/11/2020

 

 

1 Para saber mais, acesse: www.escolastransformadoras.com.br/; www.alana.org.br/; www.promundo.org.br/; www.papodehomem.com.br/; www.institutopapai.blogspot.com/.

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