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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo Sept./Dec. 2020

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

Um olhar apreciativo para a série Nada Ortodoxa

 

 

Elvis Henrique Santos AndradeI

IInstituto Noos, São Paulo/SP, Brasil

 

 

Nada Ortodoxa, no original Unorthodox, é uma minissérie germano-americana produzida pela Netflix e disponível nesta plataforma desde março de 2020. Foi escrita por Anna Winger e Alexa Karolinski, dirigida por Maria Schrader, produzida por Karolinski e filmada em Berlim. É livremente inspirada no livro autobiográfico de Deborah Feldman, Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots, ainda sem tradução para o português. São quatro episódios de cerca de 55 minutos sobre a história de uma judia de 19 anos chamada Esther “Esty” Shapiro (Shira Haas), que foge grávida de sua comunidade ultraortodoxa em Williamsburg, Brooklyn, para Berlim, onde mora sua mãe e onde encontra a vida secular e a música. Seu marido, Yanky Shapiro (Amit Rahay), viaja a Berlim com seu primo, Moishe Lefkovitch (Jeff Wilbusch), para tentar encontrá-la. A minissérie é falada principalmente em iídiche, além de inglês e alemão.

A trama se desenrola na tensão entre a comunidade judia surgida da evasão do holocausto, a terra onde este aconteceu e o bairro nascido dessa emigração. Uma comunidade ultraortodoxa e, portanto, com regras muito rígidas sobre todo o comportamento, desde a alimentação e vestimentas até os papéis dos indivíduos na comunidade, sexualidade, casamentos – por vezes arranjados. Ainda que a temática de fuga de uma comunidade mais austera para uma mais flexível possa, em um primeiro momento, sugerir depreciação de uma em favor de outra, o cuidado com que a primeira é retratada sugere um olhar mais respeitoso para as diferentes formas de criação de regras sociais. Afinal, a história dos judeus na Alemanha nos remete imediatamente à lembrança do que o ódio demasiado a uma comunidade pode gerar.

Uma sociedade mais flexível tem também seus próprios valores, suas regras, sua austeridade. Superficialmente pode-se negar que exista, por exemplo, em uma Berlim liberal, limites bem estabelecidos de proibições de comportamento e com isso indevidamente criticar a sociedade religiosa ultraortodoxa. “Todos os estilos de vida podem ser estranhos ou odiosos para aqueles que não participam deles.” (GERGEN, 2016).

A jornada de Esty torna-se um processo de diferenciação, na acepção de Murray Bowen (1991). Ela já se enuncia como “diferente” quando conhece seu futuro marido. Seu pai, Mordechai Schwartz (Gera Sandler), tem problemas com álcool e sua mãe, Leah Mandelbaum (Alex Reid), saiu da comunidade. Esty foi criada principalmente por sua avó Babby (Dina Doron) e sua tia Malka Schwartz (Ronit Asheri), ambas quem tutoraram e mediaram a relação entre Esty e sua mãe. Houve uma história única dominante sobre a saída de Leah da comunidade, a de um abandono das tradições e de sua filha. Apenas mais tarde, Esty poderá ampliar as narrativas sobre suas histórias, saber sobre a luta de Leah para manter-se com sua filha e o que a impediu. Leah diferenciou-se da comunidade, vivendo sua sexualidade em um lugar onde tinha suas origens. Esty, garantindo sua nacionalidade alemã por parte da mãe, segue os passos dela ao buscar a possibilidade de existir fora de Williamsburg. A diferenciação nunca é completa: algum grau de fusão e repetição sempre se mantém – o que faz parte da experiência humana (BOWEN, 1991).

Entendo Yanky Shapiro, o marido da Esty, como o porta-voz das forças fusionais da cultura, alguém capaz de questionar-se como inábil ou insuficiente, sem se contrapor ao que é herdado como definição de suficiência. Mostra-se genuinamente interessado em cumprir seu papel, agradar à esposa, à mãe e à comunidade. Já o personagem Moishe é uma figura ambígua, que traz tanto elementos fusionais quanto de diferenciação. Como já navegou fora da tradição e retornou a ela, é recrutado pelo rabino para, junto com Yanky, ir a Berlim e levar Esty de volta a Williamsburg. Pressiona Esty e Leah a reconduzirem-na para a comunidade. Por outro lado, é quem enuncia “na estrada, a Torá é diferente”, agindo em muitos momentos em desacordo com o prescrito por sua cultura. “Eles sempre têm um Moishe”, conta Leah a Esty.

Pensar o que é estranho no outro implica  se questionar sobre o que torna algo trivial para nós. Uma passagem nos convida a isso. Esty vai a uma biblioteca, onde lhe orientam a usar um computador para realizar uma pesquisa. Ora, hoje, para a maioria de nós, estar diante de um computador é tão corriqueiro que sequer pensamos que há pouco tempo eles não existiam. A estranheza de Esty diante do aparelho é tão cômica quanto surpreendente e nos coloca a questão: é assim que as coisas são? Como mesmo vamos nos acostumando com objetos, comportamentos, narrativas a ponto de não mais prestarmos atenção a eles e entendê-los como parte integrante de nós? Há um convite a refletirmos sobre a criação de verdades, como ampliam e estreitam escolhas, disfarçam e escancaram as angústias e os deleites de pertencer – e de excluir.

A cena continua com Esty conhecendo um mecanismo de busca. Impressionada por poder colocar uma pergunta a ser buscada, ela escolhe a questão por excelência que inaugura o pensar moderno: existe Deus? O auxiliar da biblioteca lhe diz “vamos começar pequeno”. Nossa grandiosidade humana, o Ícaro que habita em nós, é apresentada como uma ação ocorrida no processo de diferenciação e amadurecimento. Algo análogo não ocorre em todos nós, terapeutas, ao iniciarmos nossas formações e a partir de nossas inseguranças desejarmos o Deus do “jeito certo” de atender ou mesmo da teoria “certa” a seguir? Como começar pequeno e escutar os seres humanos no setting terapêutico? Lembrando que, na cena em questão, a pergunta não traz respostas, mas sim diversos convites a igrejas diferentes.

Outra cena particularmente interessante é a da relação sexual na qual pela primeira vez consegue-se a penetração. Yanky não está lá cheio de lascívia, mas sim como alguém tentando cumprir sua função no mundo como marido e gerador de filhos para repor as milhões de almas perdidas no Holocausto. Existe também claramente o desejo de Esty em concretizar o ato sexual, não por tesão, mas por uma adesão moral ao que aquilo representa. Ela queria querer aquele ato. A consumação do casamento, a procriação, a perpetuação da cultura. O conflito dela estava emocionalmente presente, talvez ainda não pudesse ser nomeado. “Valores muitas vezes podem se chocar no peito de um único indivíduo; e disso não deriva a conclusão de que uns são falsos e outros, verdadeiros.”  (BERLIN, 2016, p. 38). Ainda não era possível para ela, naquele momento, imaginar que poderia existir um outro mundo. Nem para ele. Eu diria que é uma cena de uma mulher e de um homem que se permitem violados pela cultura em prol do pertencimento. Ela não goza e sente a dor como membro do sistema que é porta-voz da diferenciação, mas ainda não está no ponto de fazê-la. Ele sente um prazer quase pueril, também indiferenciado – comportou-se como achava que tinha que se comportar. São dois humanos vulneráveis pasmados diante do fluxo da vida, encontrando um desencontro que eles não entendem e no fim não acham quem os acolha, especialmente Esty.

Imagino que uma comunidade de migrantes sobreviventes de um genocídio se apegue provavelmente mais à segurança do que a liberdade para construir seu pertencimento no estrangeiro. Seria uma maneira de preservar a origem em meio ao local possível? Seria uma maneira de preservar-se ao viver no trauma de ter de considerar suas cercanias como potencialmente letais? Preservar no espaço o tempo perdido... Talvez nessa tentativa um Deus demasiado exigente é construído. É o que nos conta Esty. Quando perguntada diretamente sobre por que fugiu, Esty responde, após alguma hesitação: “porque Deus esperava muito de mim”. Quantos foram os criadores desse Deus nessa comunidade? Quantos desses deuses criamos em nossa vida e em nossas sociedades? “Alguns desses grandes deuses não podem viver juntos”, nos conta Berlin (2016, p. 41).

A força de preservar esse espaço deve ser grande o suficiente para fazer frente ao tamanho da ameaça. Não à toa na cena em que Moishe encontra Esty em um parque – antes um edifício, destruído durante Holocausto –, a fala dele é de que ela não aguentará sobreviver fora da comunidade e uma arma é apresentada como forma de eventualmente aliviar esse intolerável. Falaria Moishe também de sua própria angústia vivida ao se afastar? Diante do suicídio, contemplando-o como real possibilidade, escolher a vida é um gigantesco ato de liberdade, seja na direção de costumes não ortodoxos, seja na de aceitar a comunidade ortodoxa — algo talvez experimentado pelo próprio Moishe.

Um importante fio condutor da narrativa é a arte, especialmente a música, como metáfora para pluralidade, contradições e desenvolvimento. É a música uma das poucas formas de educação que Esty recebe – e mesmo assim às escondidas. É a professora de música de Esty quem a ajuda a escapar de Williamsburg. É ao escutar uma peça clássica pela primeira vez que se emociona falando “nunca ouvi coisa mais linda” – um sentimento de ampliação do que é possível viver e experimentar. É com os estudantes de música que há encontro com diferentes, o que permite que surjam as forças de coesão e de expulsão dentro desse grupo. É na música que Esty se desenvolve, pode ter voz e expressá-la.

A música, aqui, funciona como uma espécie de “bem comum” criado dentro do contexto de uma responsabilidade relacional (GERGEN, 2016). Ao criar um terreno possível que proteja a possibilidade de existir uma relação, cria-se a possibilidade de valores diferentes de “bem” coexistirem entre as pessoas que se relacionam, tensionados, porém, sem a obrigação de uma unificação. Concordo com Isaiah Berlin (2016) na impossibilidade de uma coexistência de bens completamente pacífica entre nações. No entanto, aceito o convite de Kenneth Gergen (2016) a pensar na possibilidade de uma coexistência plural no espaço local de número pequeno de indivíduos.

Ao final, um encontro tocante entre Esty e Yanky. Ele a presenteia com um colar com um símbolo de notação musical. Uma metáfora para o reconhecimento e a aceitação do que existe de diferente nela, do que de novo emergiu nele e do que será possível para eles a partir de então?

A série faz um convite à reflexão sobre semelhanças e diferenças, autonomia e pertencimento, coexistência possível ou não de valores irreconciliáveis. É capaz de nos fazer pensar tanto de um modo macro, cultural e geopolítico, quando micro, no individual, na multiplicidade que temos em nossas relações e em nós mesmos. Por fim, como já disse Gergen (2016, p. 18): “um dos grandes meios de desenvolvermos um maior apreço ao que, de outra maneira, seria um estilo de vida estranho, é escutar suas histórias.”.

 

REFERÊNCIAS

BERLIN, I. A procura do ideal. In: BERLIN, I. Uma mensagem para o século XXI. Tradução de Andé Bezamat. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 15 - 56.         [ Links ]

BOWEN, M. De la familia al individuo - La diferenciación del si mismo en el sistema familiar. 1a. ed. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991.         [ Links ]

GERGEN, K. J. Rumo a uma Ética Relacional para a Prática Terapêutica. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, v. 56, p. 11 -21, Dezembro 2016.         [ Links ]

 

 

ELVIS HENRIQUE SANTOS ANDRADE

Médico formado pela Universidade de Brasília (UnB). Residência médica em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mestre em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Unifesp. Terapeuta de Casal e Família pelo Instituto Sistemas Humanos. Membro do Núcleo de Saúde Mental do Instituto Noos.
https://orcid.org/0000-0002-1487-4759
E-mail: andrade@evidenciapsiquiatria.com.br

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