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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo set./dez. 2020

 

ECOS

 

Recursos da terapia narrativa de sessão única em tempos de pandemia e isolamento social

 

 

Telma Pereira LenziI

IAssociação Instituto Movimento, Florianópolis/SC, Brasil

 

 

É com muita felicidade que venho tornar públicas minhas conversas internas após a leitura do artigo das queridas e querido: Laura, Camila, Letícia e Murilo. Estava esperando por esse texto já havia alguns meses, especialmente em se tratando de um conceito que já utilizamos em nossa comunidade desde 2018, a terapia de sessão única. Então ofereço aqui os caminhos por onde meus personagens internos conversaram entre si e com os companheiros textuais.

A estrutura para um atendimento, suas sensibilidades filosóficas, conceitos norteadores, coerências teóricas, sentimentos e diálogos internos do terapeuta estão sempre presentes nas trocas em nossa comunidade de práticas colaborativas, especialmente quando tomamos para nós a responsabilidade de treinar novos terapeutas e atender pessoas que vêm de entornos marginalizados ou desprivilegiados. Mas para muito além destes contextos, as práticas colaborativas se propõem a uma postura filosófica para qualquer relacionamento, uma forma de estar presente e engajadas no desenvolvimento dos participantes de qualquer interação.

Conhecer a prática da sessão única foi um desafiador convite para mim.

Afinal, o que poderia ser feito em uma conversa de 50 minutos? Algo. Muito. E sabíamos que era necessário.

Foi com dedicação que eu e alguns colegas estudamos e buscamos orientações para incluir esta oferta ao nosso atendimento social.

Aprendemos e levamos um pouco do que somos para criar algo sob medida ao nosso entorno. Estreamos este treinamento com um sábado de atendimentos de sessão única feito em uma praça pública em Florianópolis. Isso nos rendeu muitos encontros transformadores, feedbacks encorajadores, união da equipe de terapeutas e uma reunião com o Comitê de Orientação e Fiscalização do CRP.

Por isso fiquei conectada à primeira parte do artigo, quando os autores apresentam explicações precisas quanto à oferta do serviço pela psicologia, suas possibilidades e limites. Sim, há muitos psicólogos que, por ingenuidade, ou estratégia, usam o serviço voluntário para iniciar processos e depois começar a cobrar de seus clientes, ou finalizar o atendimento, talvez precocemente. Essa é a realidade como o próprio CRP nos apresentou, então, quando somos uma comunidade que pode oferecer um serviço gratuito com qualidade, sem estratégia de mercado, mas como oferta à sociedade, precisamos saber apresentar nosso serviço e nos diferenciar da infeliz alternativa. Os parágrafos dedicados pelos autores ao rigor ético são um atestado da seriedade do projeto que iniciaram.

Quando estamos seguros da qualidade do serviço, podemos apreciar o inovador que as terapias de sessão única podem oferecer; estamos falando de uma sessão empenhada na necessidade do cliente e efetividade do primeiro – e, muitas vezes, único – encontro. De rápido acesso para aproveitamento da motivação do cliente. E realizada de forma a ser autocontida, ou seja, o terapeuta responde de forma a não criar necessidade de continuidade (Bloom, 2001).

Escolho destacar a atenção que o terapeuta precisa ter com as etapas para máximo aproveitamento do tempo com o cliente. Em processos em que temos a expectativa de encontros posteriores, podemos deixar o cliente se organizar com tempo, utilizando  uma sessão inteira para falar de problemas e angústias diversas, mas, na sessão única, temos uma responsabilidade de resposta, o foco da conversa precisa ser negociado. Isso demanda do terapeuta uma posição responsiva que apresenta o espaço disponível e defina o conteúdo com o cliente para que ele possa falar do que é mais importante para aquela sessão (Bloom, 2001). A importância dessa etapa é evidenciada quando os autores relatam o feedback da cliente para “o fato de auxiliarmos na organização de tudo o que ela está vivendo, no sentido de desemaranhar esses problemas, já foi algo importante para auxiliá-la a identificar quais seriam os primeiros passos” (Souza et al, 2020, p. 15).

Fiquei sensibilizada pela coerência dos conceitos narrativos presentes no texto, a desconstrução da dominância das narrativas macrossociais para o encontro com a história do cliente, na humilde postura de não saber pelo terapeuta, interessado em conhecer seu cliente em sua complexidade o que é sempre inspirador, me preenche de esperança, para práticas terapêuticas mais democráticas, menos colonizadoras, das pessoas que nos buscam com problemas. Esse respeito fica evidente quando os autores exploram as narrativas por meio de perguntas que convidam a descrição detalhada do dilema e expansão da compreensão desse participante na vida do cliente (Souza et al, 2020). Remete-me à Slive e colegas (2008), quando convidam o cliente a guiar o terapeuta, mas estimulam o terapeuta a facilitar a definição daquilo que o cliente quer com a terapia, para perseguir este objetivo, através de perguntas que usam a linguagem do cliente.

E um quarto momento que me convidou a mais diálogos internos foi a apresentação das perguntas que lhes ocorreram. Achei valioso poder ler essas perguntas, que têm tantas outras palavras entre suas palavras, tanta história e conhecimento para serem feitas dessa forma, mas que ocorrem espontaneamente aos terapeutas com seus clientes. Tenho uma curiosidade especial pelas perguntas que fazemos e suas origens. Recentemente alguns tipos de perguntas foram exploradas por Lenzi (2020) como formas de convidar o cliente a expandir sua linguagem descritiva da realidade para viver alternativas criativas a seus itinerários cotidianos. As perguntas que fazemos, quando suficientemente diferentes, colocam o cliente no lugar de produzir conhecimento sobre si mesmo, desenvolver na relação com o terapeuta novas formas de ser e responder ao mundo, experimentar espontaneamente novos personagens internos para viver nas relações. Esse entendimento de transformação aparece em alguns momentos do artigo, quando os autores afirmam que as soluções aparecem quando “a história do problema vai sendo percebida a partir de uma nova perspectiva” (Souza et al, 2020, p.16). E quando trazem o construcionismo social em sua compreensão de que “a forma como narramos os problemas circunscreve as formas de superá-lo” (p.17).

Finalizo esta reflexão encorajada pela comunidade nacional a expandir nossa criatividade para desenvolver novas práticas transformadoras. Práticas que estejam a serviço dos clientes e não dos interesses macrossociais de produtividade. Que percebam o entorno local que as convida e se proponham a estar com as pessoas que usufruirão delas em sua evolução, considerando feedback e relação colaborativa durante todo o processo. O atendimento social e voluntário tem um lugar precioso no meu self, algo que busco honrar com minha comunidade e cotidiano. Senti que tenho nos autores companheiros para esta mesma sensibilidade. Continuaremos a fazer democracia e diálogo juntos, mesmo separados, pelos tempos de pandemia e isolamento social.

 

REFERÊNCIAS

Bloom, B. L. (2001). Focused single-session psychotherapy: a review of the clinical and research literature. Brief therapy and crisis interventions. 1:1,summer. pp. 75-86.         [ Links ]

Lenzi, B. (2020). Responsividade Reflexiva: um conceito para meios criativos de transformação em práticas colaborativas-dialógicas. Nova Perspectiva Sistêmica. 66. 22-35.         [ Links ]

Slive, A. McElheran, N. Lawson, A. (2008). How brief does it get? Walk-in single session therapy. Journal of Systemic Therapies. Vol. 27, n. 4. pp. 5-22.         [ Links ]

Souza, L. V. Lion, C. M. Vidotto, L. T. Moscheta, M. S. (2020). Recursos da terapia narrativa de sessão única em tempos de pandemia e isolamento social. Nova Perspectiva Sistêmica. 67. 7-22.         [ Links ]
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TELMA PEREIRA LENZI
Presidente da ONG Associação Instituto Movimento. Treina terapeutas desde 1987, em Florianópolis. É terapeuta colaborativa dialógica. Autora do conceito de Personagens Internos. Associada honorária ao TAOS Institute, Chagrin Falls, Ohio, EUA.
https://orcid.org/0000-0001-6319-1105
E-mail: Telmalenzi@hotmail.com

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