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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v30i69.584 

ARTIGO

 

Conversa sobre valores: construindo sentidos, importâncias e caminhos na prática clínica

 

Values talk: creating meanings, significances and paths in clinical practice

 

Conversación sobre valores: construcción de significados, importancias y caminos en la práctica clínica

 

 

Pedro Pablo Sampaio MartinsI; Ana Flávia Nascimento ManfrimII; Giovanna Cabral DoricciIII

IPsicólogo pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Fundador do Projeto Intervenções Terapêuticas. Atua na clínica a partir de uma perspectiva construcionista social. E-mail: pedropablomartins@gmail.com
IIPsicóloga e mestre em psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e mediadora de conflitos. Docente do Instituto de Psicologia da UFU e psicóloga clínica a partir de uma perspectiva construcionista social. E-mail: ananmanfrim@gmail.com
IIIPsicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Terapeuta familiar e mediadora de conflitos. Docente do curso de Psicologia da Universidade de Ribeirão Preto. E-mail: dorigica@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo descrevemos a conversa sobre valores, um recurso terapêutico de epistemologia construcionista social. Ela tem como objetivos ajudar o cliente a nomear valores importantes para si, a partir da análise conjunta e produção de sentidos sobre acontecimentos de sua vida, e construir possibilidades para que eles estejam mais presentes e bem cuidados em suas ações e decisões cotidianas. Descrevemos quais foram nossas experiências que inspiraram a construção deste recurso, sua fundamentação teórica, os passos que o compõem na prática e seus principais efeitos. Eles são: a construção de um senso de orientação diante do problema; a possibilidade de caminhar de maneira visual diante do que é importante para o cliente, considerando sua proximidade espacial em determinado marco temporal; e a reflexão sobre quem nos tornamos conforme orientamos nossas decisões a partir do que consideramos importante. Um caso clínico é apresentado para ilustrar o uso do recurso.

Palavras-chave: Terapia; Prática clínica; Construcionismo social; Produção de sentidos.


ABSTRACT

This article describes "values talk", a therapeutic resource derived from a social constructionist epistemology. It aims to help the client to name important values for themselves, from the joint analysis and meaning making about events in their lives, and to create possibilities for these values to be more present and well taken care of in clients' actions and daily decisions. We describe the experiences that have inspired the construction of this resource, its theoretical foundations, the steps that make the practice, and its main effects. These effects are: the construction of a sense of orientation in face of the problem; the possibility of walking alongside the client in a visual way in regards to what is important to them; and the reflection about who we become as we orient our decisions from the standpoint of what we deem important. A clinical case is presented in order to illustrate the use of the resource.

Keywords: Therapy; Clinical practice; Social constructionism; Meaning making.


RESUMEN

Este artículo describe la conversación sobre valores, un recurso terapéutico de epistemología construccionista social. Suyos objetivos son ayudar al cliente a nombrar valores que son importantes para él, a partir del análisis y la producción de significados acerca de eventos en su vida, y construir posibilidades para que estos valores sean más presentes y bien atendidos en sus acciones y decisiones diarias. Describimos las experiencias que inspiraron la construcción de este recurso, sus fundamentos teóricos, los pasos que lo componen en la práctica y sus principales efectos. Ellos son: la construcción de un sentido de orientación frente al problema; la posibilidad de caminar junto al cliente de manera visual acerca de lo que es importante para él; y la reflexión sobre en quién nos convertimos cuando guiamos nuestras decisiones desde el punto de vista de lo que consideramos importante. Se presenta un caso clínico para ilustrar su uso.

Palabras clave: Terapia; Practica clínica; Construccionismo social; Producción de significados.


 

 

Um fotógrafo-artista me disse uma vez: veja que o pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balança nem com barômetro etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Sobre Importâncias - Manoel de Barros.

No trecho do poema acima, o poeta Manoel de Barros aponta caminhos os quais desejamos percorrer neste artigo. A proposição de que as "importâncias" devem ser medidas pelo encantamento que as coisas produzem em nós é um lembrete poético que se alinha a um recurso terapêutico que chamamos de conversa sobre valores. Temos utilizado esse recurso em nossos encontros com clientes na clínica de formas bastante úteis para a terapia. Com base em uma concepção não essencialista, partimos do entendimento de que seres humanos têm sua existência marcada por valores ou, para usar o vocabulário de Manoel, importâncias, construídos socialmente, que os fazem enxergar o mundo de determinadas maneiras e direcionam suas ações.

Utilizamos esse recurso a partir de uma sensibilidade construcionista social para a prática em terapia (McNamee & Gergen, 1992). Deste ponto, entendemos o encontro terapêutico como um processo dialógico favorável para a construção de sentidos sobre si e sobre o mundo, os quais podem gerar novas ações e mudanças na vida daqueles que participam deste encontro. Neste texto, buscamos explicar como pensamos a conversa sobre valores, contando nossa história com essa intervenção e explorando quais pilares teóricos e práticos a sustentam. Além disso, descrevemos como temos organizado as sessões, com a ilustração de um caso clínico real. Ao final, discutimos os possíveis efeitos do uso desse recurso terapêutico.

 

A CENTRALIDADE DOS VALORES NA BUSCA POR SENTIDO

Para começar a responder aos objetivos descritos acima, consideramos útil retomar brevemente como esse recurso se delineou em nossas histórias como terapeutas. Em nossos encontros de interlocução1 - reuniões com outros terapeutas para discutirmos casos clínicos -, frequentemente compartilhávamos como alguns de nossos clientes se viam presos àquilo que descreviam como "uma ausência de sentido na vida".

Essa conversa nos levava tipicamente a caminhos pouco promissores em termos de transformação terapêutica. Muitas vezes, para uma investigação abstrata sobre qual seria "O sentido da vida", como se houvesse um sentido em si mesmo, independente das nossas histórias pessoais que ajudam a compô-lo. Essas conversas nem sempre consideram o caráter construído, temporal, histórico e contextualizado desse questionamento e de suas possibilidades de resposta. Outras vezes, nos víamos engajados em conversas que se dedicavam a buscar ações práticas que pudessem, de alguma forma, conferir sentido à vida. Nesses casos, as conversas podiam ser paralisantes, na medida em que é comum os clientes relatarem não encontrar sentido na vida mesmo quando se engajam nessas atividades ou, em outros casos, clientes que sequer conseguem começar a nomear quais ações seriam essas. A partir dessas experiências e de nossas discussões, passamos a nos questionar: como poderíamos construir conversas sobre o sentido da vida com nossos clientes sem cair nesses dois becos sem saída?

Foi no contexto dessa pergunta que procuramos modos de produzir conversas diferentes, que ampliassem as possibilidades de compreensão das pessoas sobre o que lhes oferece sentido na vida. Aqui, o poema de Manoel de Barros nos inspirou a fazer uma transição conceitual: afastar-nos da noção do sentido da vida como algo abstrato e absoluto, em direção a diferentes sentidos, às importâncias do que vivemos no cotidiano.

Nossa concepção básica é a de que os sentidos são construções humanas (McNamee & Gergen, 1992). Poderíamos, então, produzir conversas sobre o sentido da vida e nossas escolhas, a partir de diálogos sobre o que as pessoas valorizam e consideram importante sobre si mesmas e sobre o mundo, de maneira contextual. Deste ponto, acreditamos ser possível produzir sentidos que possam orientar suas vidas em um determinado momento, para decisões e caminhos situados sobre os quais falamos em terapia (Shotter, 2012).

Mas, afinal, o que são valores? Em revisão de literatura sobre o tema, Rohan (2000) afirma que há muitos aspectos confusos sobre o conceito, sobretudo por seu uso diverso e, muitas vezes, vago, ao longo da história da Psicologia. Buscando contemplar essa diversidade, trazemos aqui seis contribuições selecionadas pela autora, a partir de seu valor histórico no campo. Para Lewin (1952), os valores são constructos que exercem influência sobre o comportamento, sem, contudo, terem a característica de metas. Segundo o autor, não se busca "alcançar" valores, mas eles funcionam para guiar o comportamento. Para Kluckhohn (1951), um valor é um conceito, que pode ser implícito ou explícito, e que distingue um indivíduo ou um grupo a partir do que consideram desejável diante de modelos, meios e fins de ação. Para Heider (1958), valores podem ser a propriedade de uma entidade ou um conjunto de entidades que, de alguma forma, têm uma conotação positiva. Rockeach (1973) define valor como uma crença duradoura de que uma conduta ou modo de existência específicos são preferíveis a outros. Por sua vez, Feather (1996) enxerga valores como crenças sobre formas desejáveis ou indesejáveis de comportamento ou de metas. Por fim, a autora cita as definições de Schwartz (1994; 1999) que, primeiro, compreende valores como metas desejáveis que servem como princípios guiadores para a vida de uma pessoa ou entidade social e, mais tarde, define-os como "concepções de algo desejável que guia as maneiras como atores sociais (...) selecionam ações, avaliam pessoas e eventos e explicam suas ações e avaliações" (1999, p. 24).

Quando pensamos sobre a utilidade do conceito de valores na prática terapêutica, encontramos também ampla variedade de contribuições, em que podemos citar como exemplos a Logoterapia (Frankl, 2019) e perspectivas cognitivas (Krüger, 2015; Hayes & Lillis, 2012). Apesar das diferenças teóricas, percebe-se que é comum a estas contribuições uma intenção em se criar contextos de conversação em que os valores possam ser pensados, buscando entender o que confere sentido às ações e acontecimentos na vida dos clientes.

 

UMA PERSPECTIVA CONSTRUCIONISTA SOCIAL ACERCA DOS VALORES

Quando partimos de um ponto de vista construcionista social, compreendemos que tudo aquilo que consideramos como significativo, verdadeiro ou digno de comprometimento são produtos das tradições culturais e relacionais nas quais estamos inseridos. Valores, como concepções que informam sobre o que consideramos importante, são também produto dessa inserção. Isso significa nos afastar de um entendimento dos valores como processos mentais individuais, e compreendê-los como possibilidades que emergem de processos de coordenação da ação humana (Gergen, 2016). Didaticamente, podemos pensar a produção de valores de duas maneiras: em um tempo longo, histórico, podem ser compreendidos como construções sociais; em um tempo curto, local, como realizações relacionais.

Valores são construções sociais na medida em que não estão dados na natureza, são definidos por seres humanos em tempos históricos específicos, que produzem e sustentam entendimentos sobre o mundo em seus relacionamentos. De acordo com McNamee (2007), o interesse construcionista social está no que as pessoas fazem juntas e no que esse fazer produz. Ela explica esse processo da seguinte forma: ao nos engajarmos conjuntamente em processos de coordenação de ações, acabamos construindo rituais e padrões, ou seja, formas específicas de interagir. Com o tempo, tais rituais geram normas e expectativas: esperamos que nossas coordenações futuras aconteçam de uma determinada forma. Essas expectativas vêm acompanhadas de avaliações morais sobre o bom e o real. Em outras palavras, nossas ações conjuntas criam ordens morais, sensos compartilhados de realidade que nos informam sobre quem somos e o que podemos fazer. Entendemos, portanto, que os valores individuais só podem fazer sentido como parte de ordens morais mais complexas, socialmente compartilhadas, das quais o indivíduo extrai possibilidades de compreensão sobre si e a vida.

Ao mesmo tempo, valores são, também, realizações relacionais. Isso porque é no intercâmbio social, a cada vez que interagimos uns com os outros, que sustentamos ou reconstruímos a ordem social. Desses relacionamentos cotidianos, extraímos nosso senso de quem somos, quem são os outros e o que são as coisas. Aqui, incluem-se os valores, já que nossas noções de identidade e do que é "bom para nós" são também produtos dos relacionamentos em que nos engajamos. Dizer que nossos valores são realizações relacionais significa compreender que eles estão sempre em possíveis e ativas negociações no contexto de cada interação de que participamos.

Compreendemos essa dupla descrição dos valores, tanto como construções sociais e como realizações relacionais, a partir do enquadre de produção de sentidos que, segundo Spink (2004), acontece em três tempos. Eles funcionam como "norteadores" que informam a atribuição de significados em nossas conversas. O primeiro tempo, nomeado tempo longo, refere-se aos sentidos amplamente compartilhados em uma cultura e tempo histórico. São os discursos sociais que se fazem presentes como formas de compreensão dadas, e sobre as quais não refletimos mais, que podemos comparar às ordens morais advindas do processo de construção social, tais quais descritas por McNamee (2007) no trecho acima. O segundo tempo, o vivido, refere-se às histórias e vivências pessoais. Cada pessoa, a partir das relações que estabelece ao longo da vida, se engaja em determinados grupos específicos que compartilham certas formas de compreensão. Todo processo de negociação de sentido acontece informado por essa história particular de inserção no mundo. Por fim, o terceiro tempo, o curto, é o momento da interação. Esse é o tempo da realização relacional, em que os sentidos estão sendo negociados ou construídos num contexto concreto específico. Pensar a construção de valores é, então, falar destes três tempos, de forma entremeada: de como os valores dependem dos contextos, das histórias pessoais e da possibilidade de negociação ativa desses entendimentos.

A conversa terapêutica também acontece na interface entre os diferentes tempos na construção de sentidos e no encontro de dois universos linguísticos - o do terapeuta e o do cliente - em que novos sentidos podem emergir. A conversa sobre valores, como intervenção na prática clínica, abre caminho para uma negociação explícita junto aos clientes sobre quais deles são importantes para sua própria vida. Quando fazemos isso, não estamos simplesmente descobrindo quais são esses valores. Em contraste, estamos construindo, no tempo curto, uma realidade na qual esses valores são negociados e ganham o status de real.

 

INSPIRAÇÕES PRÁTICAS

Além de ancorada nos princípios teóricos descritos anteriormente, a conversa sobre valores tem influência prática dos pressupostos da terapia narrativa, especialmente da entrevista relacional (Madigan, 2017) e das conversas de externalização (Carlson & Haire, 2014; White, 2009). De forma breve, a entrevista relacional consiste em um modo de organização de conversa, pensada para sessões de terapia de casais em alto conflito, fundamentada no entendimento de que nossas identidades são políticas e relacionais em suas origens e implicações. Entende-se que uma relação é baseada na construção de uma ética comum, "situada em uma apreciação dos efeitos bastante reais que nossas ações têm sobre os outros e sobre histórias de self às quais essas ações os convidam a adentrar" (Carlson & Haire, 2014, p. 4).

Esta ética - construída especialmente na versão anterior ao início de conflitos na relação - implica valores e princípios que a norteiam. A entrevista relacional tem como objetivo remembrar essa ética comum, distinguindo quais valores a sustentam, a partir de um entendimento de que esse resgate possibilita aos clientes dirigirem suas ações futuras guiados por aquilo que outrora foi importante para a construção da relação. "Remembrar", neste contexto, vem da palavra em inglês re-member. Esse conceito refere-se à noção oferecida pelas práticas narrativas de trazer algo ou alguém de volta à história de forma ativa, ou seja, torná-lo membro novamente. Além disso, é também um trocadilho que pode ser compreendido como "lembrar". Em todo caso, a prática permite que o terapeuta construa com o casal a noção de qual ética pode orientar o relacionamento a partir daquele momento e como isso se pareceria na prática (Madigan, 2017).

Já as conversas de externalização, voltadas para casos em que a história dominante do cliente se torna saturada pelo problema (White, 2009), têm como objetivo criar um enquadre em que ele possa se ver como separado da questão sobre a qual se conversa, entrevistando o problema e entendendo os efeitos dele sobre a vida da pessoa. Partindo dessa noção, Carlson e Haire (2014) propõem uma alternativa de conversas de externalização com casais da seguinte forma: "nós intencionalmente externalizamos uma ética positiva ou preferida para ajudar os parceiros a conquistar um entendimento mais próximo da experiência relacionalmente relevante de como essas palavras podem informar suas maneiras de estar um com o outro em cada momento específico" (p. 11).

Essa influência, traduzida para a conversa sobre valores em terapia individual, se dá de duas formas. Primeiro, no resgate nas histórias dos clientes sobre quais valores estão presentes em suas vivências, formas de vida e escolhas, como no caso da entrevista relacional. Segundo, conversando com os valores como entidades externas, separadas, que podem ser visualizadas a partir de perguntas e intervenções que ajudam os clientes a construírem um senso de orientação sobre si mesmos com relação à sua identidade e às suas ações no futuro diante desses valores, como no caso das conversas de externalização.

Assim, situando as diferentes influências teóricas e práticas desta intervenção, descreveremos, a seguir, a conversa sobre valores, intercalando a descrição dos passos e sua ilustração, por meio de um caso clínico real. O material utilizado para descrição do caso clínico decorre dos registros de sessão feitos pelo primeiro autor deste artigo em sua prática clínica cotidiana. Para manter os cuidados éticos necessários, o terapeuta entrou em contato com o cliente para solicitar autorização para que um recorte de sua história clínica fosse utilizado como ilustração. A escolha por essa história específica se deu pelo fato de que foi a partir dela que a conversa sobre valores se delineou de maneira mais clara para o nosso grupo. Antes da publicação, o artigo foi enviado em sua íntegra para que o cliente pudesse ler e sugerir alterações. O nome do cliente foi abreviado, ao invés de trocado, a seu pedido. Além disso, fornecemos apenas o mínimo de informações relevantes para a compreensão do aspecto específico do caso em discussão. Não se trata, portanto, de pesquisa empírica, mas, sim, da utilização de um relato clínico autorizado como forma de fomentar o contexto da prática clínica como fértil para a produção do conhecimento (Rasera & Guanaes, 2006). Nos tópicos em que a ilustração é contada, ela está narrada em primeira pessoa do singular, na voz do primeiro autor deste artigo.

 

A CONVERSA SOBRE VALORES

A conversa sobre valores é um recurso conversacional que busca (a) ajudar o cliente a nomear valores importantes para si, a partir da análise conjunta e produção de sentidos sobre acontecimentos de sua vida, e (b) construir possibilidades para que eles estejam mais presentes e bem cuidados em suas ações e decisões cotidianas. Consiste basicamente de três passos, cada um com uma lógica específica que orienta o diálogo. Porém, não se caracteriza como uma técnica ou prática única. Ao apresentá-la a partir de uma lógica, buscamos nos afastar de uma noção tecnicista, reconhecendo que seus usos e efeitos podem ser múltiplos, segundo a responsividade do terapeuta e do cliente em cada contexto.

Como já dissemos, originalmente, a conversa sobre valores surgiu em nossa prática como uma alternativa às conversas abstratas sobre o sentido da vida. Nesses casos, ela é uma forma de encontrar nas histórias cotidianas do cliente o que ele valoriza e que possivelmente pode servir como orientador para uma vida significativa.

Outros contextos em que a conversa sobre valores também pode ser útil, em nossa experiência, são em casos em que individualmente o cliente relate sobre conflitos relacionais. Assim, entender sobre como seus valores estão presentes, sendo cuidados ou não, quando pensa sobre determinada relação, pode ser um modo em terapia individual de avaliar os entendimentos sobre causas e efeitos do conflito e possíveis mudanças e ações a serem pensadas como forma de cuidar destes valores no âmbito das relações. Particularmente nestes casos, a influência da entrevista relacional (Madigan, 2017) fica ainda mais evidenciada, buscando, a partir da reflexão individual, pensar modos de como contribuir para questões que são relacionais. Essa é uma forma, como propõem Labs e Grandesso (2017), de "transportar" recursos que são advindos de práticas coletivas comuns em contextos terapêuticos, para momentos em que estão apenas terapeuta e cliente.

Além disso, pensamos também na utilidade da conversa sobre valores quando as pessoas estão presas na tomada de alguma decisão em que percebemos que há uma disputa de diferentes valores envolvidos. Nesses casos, a conversa ajuda o cliente a entender o que está em jogo para ele naquela decisão e por que ela parece ser tão difícil. Tiramos o foco da decisão em si e a colocamos em segundo plano, como ocorreu no caso clínico a seguir.

Ilustração de caso: em busca de sentido na profissão com P.

P. era um estudante de Medicina, em seus vinte e poucos anos, quando chegou à terapia comigo (Pedro Martins). Tipicamente um rapaz movido por ideais, alegre e cheio de vida, ele me contou que isso estava se perdendo para ele desde que começara o internato. Seriam os dois últimos anos da faculdade, e também os mais sonhados pela maioria dos estudantes, já que significavam finalmente ter a oportunidade de viver a medicina na prática.

Contudo, essa animação e expectativa foram se dissolvendo conforme os meses se passavam e P. conhecia sua nova vida de interno. Ele chegou à terapia com dúvidas sobre seu futuro como médico. Conhecera na prática uma profissão muito diferente daquela que imaginara. A forte hierarquia e competição entre os médicos, a frequente falta de recursos adequados para o cuidado aos pacientes e suas consequências, o contato cotidiano com a morte e as longas horas de trabalho eram alguns aspectos relatados por P. sobre a vida no hospital e que vinham fazendo com que ele tivesse dificuldades para dormir e desânimo para continuar o curso. Se aquilo era Medicina, então, P. não estava mais certo se ser médico ainda tinha sentido para ele.

A perda de sentido com relação à profissão escolhida era fonte de importante sofrimento e o colocava um dilema aparentemente sem saída. Isso porque nenhuma, dentre as duas opções que P. via pela frente, lhe agradavam. Ficar no curso, naquele ponto, seria investir em um caminho que parecia cada vez menos atrativo, especialmente quando pensava que, além dos anos de internato, teria ainda que viver a residência - um contexto em que todos os elementos apontavam para um agravamento de suas queixas - depois que se formasse. Sair do curso, porém, também não era boa opção. Sair para fazer o quê? Valeria a pena desperdiçar todos aqueles anos de investimento e estudo? Além disso, havia as pressões envolvidas em estar no curso mais socialmente legitimado dentre todos. Como poderia abandonar uma suposta promissora carreira em medicina?

Foi pensando nessa perda de sentido e aparente falta de opções que conduzi, junto a P., uma conversa sobre valores. Em meu diálogo interno, àquela altura, eu tinha um senso de que o problema de P. não era com a medicina em si, mas com a forma como alguns de seus valores estavam sendo violentados enquanto ele se via sem opções de como praticá-la.

Passo 1: Nomeando valores

O primeiro passo da conversa sobre valores consiste em encontrar e nomear, junto aos clientes, valores importantes em suas vidas. Por "encontrar e nomear", leia-se "construir", já que, como argumentamos anteriormente, essa conversa ajuda o terapeuta a produzir com o cliente uma realidade em que - em histórias já vividas por ele - estão presentes valores que podem orientá-lo daqui por diante. De forma simples, a pergunta geral que guia este passo é: "o que você acha importante sobre o mundo"? Porém, essa pergunta é abstrata e só faz sentido no contexto teórico que apresentamos nessa introdução. O desafio do terapeuta aqui é encontrar recursos para conversar sobre esses valores de forma mais concreta, construindo-os como uma realidade compartilhada entre terapeuta e cliente nesse contexto.

São diversas as possibilidades de intervenções para nomear valores. A maneira mais simples de fazer isso é o terapeuta se colocar atento, nas próprias conversas cotidianas em terapia, às possibilidades de descrições de valores - implícita ou explicitamente nomeados -que aparecem para o cliente conforme ele conta sua história.

Isso é possível a partir do seguinte entendimento: enquanto contamos histórias, sobre nós mesmos ou nossas experiências, estamos necessariamente falando do que valorizamos. Se alguém diz, por exemplo, que está sofrendo com algo que tem que fazer no trabalho, esse sofrimento provavelmente nos informa, ainda que implicitamente, sobre valores que estão sendo feridos ou malcuidados. Essa premissa nos permite fazer determinadas perguntas, como, por exemplo: "o que você acha que é importante para você que fica de fora dessa história?" ou, ainda, "o que seu sofrimento conta sobre o que é importante para você que não pode ser cuidado neste caso?". Perceba como essa construção - valores implícitos que não estão sendo cuidados - não está dada pela história em si; ela é apenas um potencial que pode ser visto pelo terapeuta a partir de um enquadre teórico. Seu trabalho, então, é, no contexto terapêutico, realizar esse potencial como uma construção relacional, oferecendo descrições objetivas de que valores seriam esses, ao mesmo tempo em que suas perguntas e intervenções permitem ao cliente complementar, com seus próprios entendimentos, a possibilidade de que aqueles valores sejam legitimados como de fato importantes para si.

Outra forma de nomear valores é partir do exercício "Negociando identidades" (Martins, 2019), em que o terapeuta pede que o cliente conte uma história sobre si mesmo, informada pela consigna: "Eu escolhi essa história porque, em tais pontos específicos de seu desenvolvimento, é possível ver quem eu sou, por causa dessa, dessa e dessa razão" (p. 376). Com esse pedido, o terapeuta está atento aos critérios utilizados pelo cliente para definição de sua própria identidade. Junto desses critérios, é possível investigar com o cliente o que aquela história conta sobre o que valoriza a respeito de si mesmo e de sua vida.

Além disso, é possível nomear valores a partir da investigação de histórias de exceção (Shazer, 1985) ou acontecimentos extraordinários (White, 2009), ou seja, momentos da vida do cliente em que o problema sobre o qual está falando não acontece, ou nos quais narrativas diferentes daquela dominante sobre a pessoa se tornam possíveis. Perguntar sobre esses momentos e explorar como aconteceram é uma forma de entender quais valores se fazem presentes para a pessoa fora da influência do problema. Na mesma linha de raciocínio, perguntas sobre "momentos marcantes" (Shotter, 2012) também podem ser úteis. Explorar como o cliente reflete sobre seus motivos para a escolha de um momento como significativo nos ajuda a entender quais valores ele utilizou como orientadores nessa escolha. Independente do caminho escolhido, ao nomear valores, estamos colaborativamente construindo quais são as importâncias da vida do cliente.

Ilustração do passo 1: nomeando valores com P.

Propus a P. que deixássemos de lado por alguns momentos seu dilema atual e que ele me levasse de volta à história de sua escolha pelo curso de Medicina. Essa pergunta é um exemplo da influência anteriormente descrita da entrevista relacional (Madigan, 2017): remembrar os valores centrais que estão envolvidos em determinadas escolhas passadas. Ele me contou que sempre se interessou por estudar a vida. Tanto que, no Ensino Médio, pensava de fato em cursar Biologia. Contudo, quando o momento do vestibular se aproximou, P. tinha notas altas que lhe davam a chance de entrar em um curso mais concorrido e mais valorizado. Isso era explícito na visão das pessoas significativas ao seu redor e na sociedade como um todo. Segundo o que me contou, P. pensou que a Medicina era também uma forma de estudar a vida. Exploramos juntos de que maneiras ele imaginava, à época, que isso estaria contemplado em sua escolha. Segundo ele, tinha um grande interesse em cuidar das pessoas e promover qualidade de vida, ambos aspectos nos quais reconhecia importância.

Essa é a história resumida de nossa conversa. Na prática, enquanto ouvia P., eu estava especialmente interessado em quais valores o orientaram na escolha pelo curso de Medicina. Fiz perguntas que buscavam ajudá-lo a se conectar com esses valores, explorando seus sonhos, ideais e expectativas diante de sua decisão. Enquanto buscava nomear com ele explicitamente esses valores, eu explorava também seus sentidos, com perguntas como: "então, P., seria possível dizer que o interesse pela vida foi o principal guia de sua decisão?", "você está me dizendo que, além do interesse pela vida, você tinha também outro interesse mais específico, que seria o de tornar a vida das pessoas melhor?", e "como você imaginava que cuidar das pessoas tinha a ver com quem você é?". Esses exemplos mostram como eu, terapeuta, e P. negociamos nomes e entendimentos para seus valores, construindo-os, naquele momento, no tempo curto, como uma realidade compartilhada entre nós. Chegamos, então, na nomeação explícita de três valores como centrais: vida, qualidade de vida e cuidado.

Passo 2: Criando representações

Uma vez nomeados os valores, o segundo passo do nosso recurso consiste em ajudar o cliente a produzir uma representação estética de como esses valores participam de sua vida. Essa representação busca oferecer uma possibilidade de construir sentidos sobre a temática de forma visual e material. Assim, usando post-its, pedimos ao cliente que escreva, em cada um, o nome de um valor identificado no passo anterior. Além disso, em um dos post-its, o cliente escreve seu próprio nome. Buscamos, com isso, externalizar os valores de maneira positiva (Carlson & Haire, 2014), para que o cliente possa visualizar suas influências sobre sua vida. Em seguida, a orientação que guia o exercício é: "eu gostaria que você criasse uma representação de como esses valores estão presentes em sua vida hoje". Dois pontos são fundamentais em sua construção: espaço e marco temporal.

Na representação, o espaço, ou seja, a distância entre cada valor e a pessoa, representa quão presente (ou não) ele está em sua vida. Quanto mais próximo, mais presente e bem cuidado aquele valor está. Quanto mais distante, menos presente e pior cuidado. Isso permite a cliente e terapeuta construírem juntos entendimentos sobre como aquela representação e orientação dos valores se tornou possível em sua vida. Já o marco temporal significa que a representação tem uma data marcada, construindo também, junto ao cliente, a ideia de que os valores e suas formas de presença na vida não são estáveis e imutáveis, mas se transformam. Isso abre a possibilidade de criar outras representações, considerando diferentes momentos da vida, a depender da conversa em andamento. Neste passo, portanto, a conversa sobre valores se amplia em direção à busca de entendimentos sobre elementos concretos da vida - trabalho, relacionamentos, lazer etc. - por meio dos quais esses valores se manifestam no cotidiano do cliente. A partir dessa noção, abrimos a possibilidade de conversar com o cliente sobre quais são os diferentes elementos em sua vida que lhe permitem cuidar desses valores e, em contraste, que outros aspectos tornam isso mais difícil.

Ilustração do passo 2: criando uma representação com P.

Agora que sabíamos que valores orientaram P. em sua escolha por ser médico alguns anos antes, podíamos refletir sobre como esses valores estavam contemplados em sua vida atual no internato. Escrevemos seu nome em um post-it e o posicionamos no centro de minha mesa. Em outros três post-its, pedi a ele que escrevesse os valores que havíamos nomeado: vida, qualidade de vida e cuidado. Então, solicitei que ele criasse uma representação de como, naquele momento (marco temporal), aqueles valores estavam presentes em sua vida. Quanto mais próximo do seu nome, mais presente e bem cuidado um valor estaria (espaço). A representação foi feita assim:

 

 

Começamos a conversar, então, sobre seus critérios para essa distribuição. Ele me explicou que a qualidade de vida parecia estar bem distante naquele momento, porque ele mesmo se sentia mal, cansado e frustrado. Como poderia oferecer qualidade de vida aos outros, quando não tinha isso nem para si? A vida também estava distante, porque, naquele ponto, P. sentia que a morte era o mais presente: estava muito assustado com toda a dor, sofrimento e perdas que vivia junto aos pacientes em seu cotidiano, e isso estava afetando-o de forma muito negativa. O cuidado era o valor mais próximo dos três, já que P. reconhecia que, mesmo diante das dificuldades, exercer sua função produzia efeitos nas pessoas. Porém, naquele momento exato, ele estava passando por uma parte do internato em que seus superiores estavam mais interessados na técnica médica do que no cuidado ao paciente, e isso era muito frustrante.

Contei para P., então, que me parecia bem coerente que ele estivesse se sentindo tão mal naquele momento. Afinal, todos os valores mais caros que o orientaram para estar naquela profissão estavam distantes dele. Ele viveu como um alívio perceber que sua falta de sentido, de fato, fazia sentido!

Passo 3: Visualizando futuros possíveis

O último passo da conversa sobre valores tem como objetivo ajudar o cliente a visualizar futuros possíveis para si mesmo, nos quais esses valores estejam presentes de diferentes formas. As perguntas que guiam este passo são: "Se você trouxesse algum desses valores para mais perto de sua vida nesse momento, por onde começaria? Qual seria o primeiro passo"? Essa pergunta é inspirada pelo modo como Shazer (1985), na terapia focada na solução, busca construir caminhos de mudanças mínimas com o cliente a partir das conversas de exceção.

O ponto central é construir com o cliente diferentes cenários nos quais esses valores se distribuam de múltiplas formas. Há aqui uma intencional construção de nuances na conversa terapêutica. Partimos da premissa básica que orienta esse passo da conversa de que é possível cuidar de um mesmo valor de diferentes formas. Além disso, nos orientamos também pela premissa de que, em um dado momento, nem sempre será possível ter presente todos os valores ao mesmo tempo. Assim, também é possível criar conversas que busquem contemplar sentidos temporais datados, que dizem respeito a escolhas importantes para o cliente: "se não for possível cuidar de todos esses valores em determinado momento, qual deles se torna mais importante ou imprescindível de ser cuidado? Quais são os sentidos e razões para essa escolha?".

Auxiliamos o cliente, assim, a imaginar caminhos de quais futuros são possíveis para si, dentro desses limites e possibilidades. Saindo de uma conversa sobre o sentido da vida e das escolhas que tipicamente parecem implicar em "tudo ou nada", nos direcionamos, alternativamente, a uma conversa sobre como diferentes futuros poderiam privilegiar alguns valores em detrimento de outros e quais seriam suas consequências para o modo como o cliente leva sua vida. Procuramos, assim, formas de cuidar desses valores, para além daquela que vinha sendo vista como a única possibilidade.

Utilizamos também uma variação deste passo quando a conversa com o cliente está centrada em torno de alguma decisão que precisa tomar, na qual estão em jogo valores conflitantes para si. Nesses casos, ao invés do nome do cliente, colocamos no centro as opções que ele enxerga e sobre as quais está em conflito naquele momento. Por exemplo, se a decisão é ficar em seu emprego atual ou mudar de emprego. Fazemos a conversa sobre valores em torno dessas duas opções. Como cada uma delas ajuda o cliente a cuidar de alguns valores? Quais outros ficam de fora? Isso tem sido bastante útil, na medida em que, novamente, construímos com o cliente a possibilidade de cuidar desses valores de forma matizada, sem ter que abrir mão completamente de nenhum deles devido a alguma tomada de decisão.

Ilustração do passo 3: visualizando um futuro possível com P.

Na terapia com P., então, nosso passo seguinte era construir diferentes formas de trazer seus valores para mais próximo em sua vida. Essa tarefa consistiria em entender: "que formato vida, qualidade de vida e cuidado com as pessoas pode ter para você hoje"? Foi proposital que a pergunta tenha sido feita em termos amplos. Afinal, minha intenção era nos afastar de uma conversa sobre sair ou ficar no curso e, alternativamente, refletir sobre como, independentemente de sair ou de ficar, P. pode cuidar de seus valores, que são mais importantes do que a decisão em si. Dedicamos algum tempo a essa conversa, na qual resumidamente concluímos:

• Aproximar-se do valor da vida, naquele momento, significaria para P. uma mudança de olhar para sua prática. Como estava assustado e cansado com o hospital, ele vinha focando na morte como o aspecto central. Contudo, quando olhada de outra maneira, P. descreveu que sua prática tinha também muito de vida: de todas as pessoas que passavam por ali e só tinham a chance de sobreviver devido às intervenções em saúde que recebiam; de todas as esperanças dos pacientes e suas famílias e amigos que ocorriam quando as coisas davam certo etc. Havia, sim, faltas e mortes, mas P. foi capaz de balancear isso com seu compromisso médico com a vida.

• Aproximar-se do cuidado, naquele momento, significaria estar com os pacientes e com todos os seus colegas da saúde - na medida de seu limite como interno subordinado a outras autoridades - da forma mais legítima e atenciosa que pudesse. Não importava que seu superior imediato daquele momento estivesse mais interessado na técnica do que no paciente: P. se interessava pelo cuidado e o dedicaria ao melhor de sua capacidade em todos os momentos que pudesse.

• Aproximar-se da qualidade de vida tomou dois caminhos surpreendentemente simples, mas muito importantes para ele. Juntos, compreendemos que qualidade de vida, naquele momento, significaria conseguir comer melhor e dormir melhor. Isso poderia ser cuidado com alguns expedientes simples: preparar sua comida da semana, para que, quando estivesse de plantão, não precisasse depender de pedir comidas gordurosas como pizzas ou sanduíches, como era o hábito de seus colegas; voltar a andar de bicicleta, um hábito que lhe fazia muito bem, mas que estava perdido em meio à rotina; desligar-se do contexto do hospital e dedicar-se mais a outras áreas de sua vida quando não estivesse no trabalho.

 

 

Essas reflexões permitiram a P. reconstruir a imagem de seus valores de uma nova maneira, na qual seu dilema anterior - "faz sentido ser médico?" - se transformou em "do que preciso cuidar para ser médico fazer sentido"? Na figura, vemos que não é uma questão de todos os valores estarem completamente próximos. Porém, tendo sido reconhecidos, e podendo utilizá-los como orientadores, P. voltou a ver sentido em sua escolha profissional, quando guiada por esses valores.

Adicionalmente, alguns meses depois, esses mesmos valores puderam ser utilizados como guias para P. tomar uma decisão muito importante: qual especialidade seguir na residência? A partir desses orientadores, ele pôde avaliar como cada especialidade favoreceria a sua aproximação ou o seu afastamento desses valores e tomar uma decisão que, a curto e longo prazo em sua carreira, lhe permitisse não se afastar deles.

 

POSSÍVEIS EFEITOS DA CONVERSA SOBRE VALORES

O caso apresentado ilustrou uma forma possível de como a conversa sobre valores pode orientar uma sessão terapêutica. Contudo, este exercício pode ser feito de diferentes formas, sendo importante apenas que se mantenha a orientação epistemológica (McNamee & Gergen, 1992). A seguir, apresentamos alguns efeitos da conversa sobre valores notados em nossa prática.

Produzir um senso de orientação para além do problema

Shotter (2012) argumenta que existem dois tipos de dificuldades que enfrentamos na vida: do intelecto e de orientação. Dificuldades do intelecto seriam aqueles problemas passíveis de resolução a partir da aplicação de métodos específicos e pelo raciocínio. Porém, para o autor, a maioria dos dilemas que enfrentamos na vida é de outro tipo: dificuldades de orientação. Elas se caracterizam por uma busca de maneiras de nos relacionarmos com nossos arredores: formas de nos sentirmos orientados sobre "onde" estamos em relação às outras pessoas, às nossas histórias, às nossas culturas e ao nosso ambiente. Para termos um senso de orientação em meio a algum dilema, precisamos agir de maneira exploratória, sentindo um caminho possível adiante, passo a passo, em relação aos nossos arredores. Quando uma pessoa chega à terapia vivendo um dilema, seja ele existencial - buscando compreender o sentido da vida - seja ele prático - buscando tomar alguma decisão em que as opções imediatamente disponíveis não parecem contemplá-la -, entendemos esse dilema como decorrente da perda de orientação, no sentido exposto por Shotter (2012). Em outras palavras, a construção original de sentidos sobre o dilema deixa o cliente sem parâmetros sobre como seguir em frente. Assim, um efeito ao explorar os "arredores" é a criação de nuances que tiram o foco da resolução do problema relatado. Com esse caminho de conversa, o problema se dissolve a partir da noção de que há diferentes coisas a serem cuidadas naquelas circunstâncias.

Pensemos no caso de P. como exemplo. Ele era aluno de um curso que gostava e no qual sempre viu sentido. Mas, a partir de sua inserção em um novo ambiente, vivendo relações diferentes e experimentando a Medicina de formas inéditas, esses sentidos para seu curso e sua profissão se transformaram, deixando-o sem saber como proceder. Assim, compreendemos que a conversa sobre valores ofereceu a possibilidade de construir novos sentidos a respeito de seu dilema, de modo que os valores, primeiro nomeados e, em seguida, representados nos post-its, se tornaram guias a partir dos quais P. pôde orientar suas ações, utilizando-se de parâmetros mais coerentes com o que considera importante para si. Com isso, criou-se um senso de orientação para o cliente e, como consequência desse processo, a dissolução de seu dilema.

Caminhar de forma visual e corporificada

Outro efeito importante da conversa sobre valores é a possibilidade de oferecer ao cliente algo visual que lhe permita enxergar e lidar com seu problema de maneiras inéditas. Conversas de externalização geralmente constroem metáforas que indicam ações possíveis em relação ao problema (White, 2012). Consideramos que os post-its funcionam como uma metáfora - a construção de um vocabulário alusivo compartilhado entre terapeuta e cliente - que utilizamos para conversar sobre a experiência vivida pelo cliente (Paschoal & Grandesso, 2014). Dessa forma, a nomeação e a representação visual dos valores possibilitam uma importante ampliação de repertório conversacional na prática, de forma que os clientes consigam explicar de outras maneiras o que estão vivendo e, assim, novos sentidos e ações possam emergir.

Essa também pode ser descrita como uma das influências da externalização, em que as representações materiais conferem a possibilidade de, discursivamente, separar a pessoa de seus valores, conferindo a eles um caráter próprio de entidade com o qual o cliente pode se relacionar (Carlson & Haire, 2014). No caso da conversa sobre valores, a representação visual com os post-its oferece a transposição de significado, incluindo dois marcadores, o espaço e o marco temporal, que conferem um senso de materialidade e concretude a conversas que antes poderiam ser tidas como abstratas. Dessa forma, mais do que refletir racionalmente sobre a questão, a conversa sobre futuros possíveis com o cliente permite que ele experimente, de forma corporificada e sensível, como determinados modos de organização de seus valores o impactam e, portanto, de que maneiras gostaria de se sentir enquanto toma suas decisões (Shotter, 2012).

Esse caráter corporificado da conversa sobre valores é algo que nos chama muita atenção na prática. É muito comum que, enquanto movimentamos os post-its experimentando possibilidades de arranjos de seus valores, os clientes nos descrevam sensações corporais que experimentam responsivamente àqueles movimentos. Assim como Shotter (2012), acreditamos que essas sensações são importantes componentes na construção de sentidos sobre o dilema que permitem ao cliente caminhar de maneiras mais coerentes com a vida que deseja para si.

Dessa ideia decorre também outro possível efeito da conversa sobre valores: a não totalização das angústias e sofrimentos (White, 2009). Ao conversar sobre a presença dos valores em diferentes experiências, é possível reconhecer o caráter situacional de algumas destas vivências. No caso de P., isso pôde ser reconhecido quando uma angústia que parecia ser enorme e totalizante (questionamento de uma escolha importante de sua vida) se amenizou ao enquadrá-la como algo situado e manejável (cuidar desta escolha).

Refletir sobre identidade

Enquanto agimos no mundo, em contexto de nossas relações, construímos também sensos de identidade (Pearce, 2007). Quando a conversa sobre valores enquadra as questões sobre o sentido da vida e sobre as decisões importantes para o cliente em um contexto mais amplo, traz para a terapia uma dimensão ética do constituir-se humano para o centro da discussão. Mais do que decisões práticas sobre caminhos a seguir, os dilemas de terapia são carregados de questões identitárias (Shotter, 2012). A conversa sobre valores possibilita construirmos, junto ao cliente, respostas para uma pergunta importante que atravessa esse contexto de produção sentidos: quem o cliente se torna conforme se orienta com relação aos seus próprios valores?

Essa é uma consideração importante que ajuda a nos mantermos conectados com as razões pelas quais a busca por sentido na vida e a tomada de decisões importantes não são atividades banais. Na medida em que compreendemos que elas estão atreladas à participação dos clientes em mundos morais, nos quais constroem a si mesmos de determinadas maneiras com relação ao que consideram importante a partir de sua inserção no mundo, podemos apreciar mais a importância de nos afastarmos do pragmatismo puro de buscar respostas e resoluções, e contemplarmos as diferentes dimensões do que está em jogo, em termos de identidade e de importâncias para aquela pessoa.

Tomemos a história de P. novamente como exemplo. Apesar de parecer que seu questionamento acerca de seu futuro na profissão como médico tivesse uma questão pragmática muito clara - continuar ou não no curso -, muito mais estava em negociação diante daquela pergunta. Em termos de identidade, qualquer uma dessas decisões carregava implicações morais para o senso de P. acerca de si mesmo. Se ele continuasse no curso, o que isso dizia sobre P.? Que ele era alguém esforçado e capaz de superar barreiras? Ou, então, que ele era fraco por não ser capaz de desistir de seu status quo, tão valorizado socialmente? Mas, ao contrário, se ele desistisse do curso, quem então ele se tornaria? Entendemos que perguntas como essas, ainda que não sejam sempre feitas de forma explícita, invariavelmente perpassam o processo de construção de sentidos e conferem a ele força social ainda mais importante. Sem o enquadre oferecido pela conversa de valores, P. não conseguia, por si mesmo, responder a elas. A partir do momento em que ele pôde orientar sua decisão a partir de seus valores - tal como construídos em sessão - também seu senso moral sobre quem se tornava diante daquela decisão se transformou.

 

EM CONCLUSÃO

Buscamos demonstrar, neste artigo, um recurso terapêutico que utilizamos em nossa prática clínica. Especificamente, recorremos a ele diante de situações e problemas que, inicialmente, nos convidam para conversas pouco promissoras por investigar questões ou muito abstratas ou muito focadas em resolução. A conversa sobre valores se afasta destes caminhos. Ao explorar os "arredores" do problema, proporciona a construção de nuances que enquadram as questões de outras maneiras, tornando-as mais próximas da experiência vivida. Como efeitos centrais do uso desse recurso, destacamos: a construção de um senso de orientação diante do problema; a possibilidade de caminhar de maneira visual diante do que é importante para o cliente, considerando sua proximidade espacial em determinado marco temporal; e reflexão sobre quem nos tornamos conforme orientamos nossas decisões a partir do que consideramos importante.

Esperamos que a conversa sobre valores possa funcionar como um recurso terapêutico para profissionais envolvidos na prática clínica. Ficamos curiosos por ouvir sobre seus variados usos e efeitos conforme praticados nos contextos específicos de cada relação terapêutica. Nossa esperança é que o artigo funcione como inspiração para conversas que facilitem a construção de sentidos, importâncias e caminhos.

 

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Recebido em 10/07/2020
Aprovado em 12/02/2021

 

 

1 As interlocuções são contextos de conversa em que dois dos autores deste artigo participam, juntamente com outras três terapeutas. Eles diferem de um modelo tradicional de supervisão de casos clínicos, pois são entendidos como um processo colaborativo de construção de possibilidades sobre os casos. Assim, agradecemos às contribuições de Flaviana Naves, Marina Arantes e Lara Martins nas discussões que possibilitaram a construção deste artigo.

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