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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021

 

ECOS

 

Grupos reflexivos de gênero para homens no ambiente virtual: adaptações, desafios metodológicos, potencialidades

 

 

Gabriella MorenaI II

IInstituto NOOS, São Paulo/SP, Brasil
IIInstituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) – Universidade de Lisboa, Portugal

 

 

Fiquei animada para escrever sobre os Ecos deste artigo por três razões que gostaria de compartilhar. A primeira é que já participei de férteis espaços de conversa com os autores, além das que tive internamente com a leitura deste importante texto. Do Pedro Schneider, fundador do MEMOH – um negócio social –, relembrei das rodas de Comunicação Não-Violenta que frequentamos no Rio de Janeiro e do percurso de que fizemos parte, realizado para pessoas que trabalham com grupos, chamado “facilitação do imprevisível”, além dos episódios do podcast do MEMOH que acompanho desde que foram disponibilizados, em 2019. O Alan Bronz foi meu professor no NOOS Rio num módulo do curso de formação em Terapia de Família, de onde ainda colho aprendizados e amizades cinco anos depois. E o Adriano Beiras em duas preciosas conduções para terapeutas e mediadoras/es associadas/os do Instituto NOOS relacionadas aos grupos reflexivos de gênero.

Que prazer “revê-los”, rapazes!

A segunda razão do meu entusiasmo é a oportunidade de compartilhar as conversas internas que tive ao ler este artigo articuladas a um campo que muito me interessa e ao qual tenho me dedicado bastante nos últimos anos: os Estudos de Gênero. E, por fim, gostaria de dividir inquietações que me atravessaram, relembrando de algumas das experiências que tive ao participar de coletivos feministas, LGBTQI e da cultura popular quando nossos espaços de ativismo reproduzem violências estruturais, como o racismo, machismo, LGBTfobia, classismo etc.

Celebrei o trabalho do MEMOH desde que o conheci por acreditar em seu propósito de promover equidade de gênero por meio da criação de contextos de reflexão para homens, assim como também chegava – em 2018 – como algo inédito para mim. Há alguns anos estava pessoalmente acostumada com rodas de conversas, grupos de apoio, estudos e leituras feministas que são frequentados por mulheres quase em sua totalidade. Contudo, quando conheci o MEMOH me dei conta de que não tinha informações a respeito de grupos de homens partilhando sentimentos, vulnerabilidades e, sobretudo, buscando juntos desconstruir padrões machistas que identificam em si mesmos e que reproduzem em suas relações.

Homens participando deste tipo de conversa entre homens era, de fato, uma novidade para mim. É comum mulheres “receberem palestras” de homens sobre questões de gênero e feminismo quando estamos em espaços mistos, contudo, não é frequente vermos homens conversando sobre estes temas entre seus amigos, principalmente quando não há presença de mulheres. Quando me pergunto sobre as razões disso acontecer, acredito que passa, inicialmente, por sequer perceberem que precisam falar sobre suas masculinidades e sobre como este ideal hegemônico de masculinidade estabelecido foi construído a partir de elementos como o machismo e a LGBTfobia (Kimmel, 1998). Ou, ainda, um passo antes, sequer conseguem notar esta construção nociva e seguem percebendo-a como natural.

Com estas reflexões, me recordo de um ditado da cultura chinesa, retomado por Michael Kimmel (1998), que diz que “os peixes são os últimos a descobrir o oceano” (p. 105), metaforizando que aqueles que estão numa posição privilegiada em relação a um grupo frequentemente não percebem esta posição. O autor ainda diz que tanto a relação de poder quanto esta invisibilidade são privilégios luxuosos. Em suas palavras, “é um luxo que somente pessoas brancas em nossa sociedade não pensem sobre raça a cada minuto de suas vidas. É um luxo que somente homens em nossa sociedade façam de conta que o gênero não importa” (p. 106).

Quando, então, vejo homens se organizando para terem conversas que passam por estes temas é deste lugar que celebro, pois, de certa forma, quando conversam sobre suas masculinidades estão vendo e desnaturalizando este padrão hegemônico, além de construírem, entre si, espaços seguros para estas partilhas. Pelo que escreveram os rapazes no artigo (Beiras et al, 2020) e por enfatizarem a perspectiva insterseccional, fico pensando que é possível haver espaço para notarem e conversarem sobre o desequilíbrio entre os gêneros e também problematizarem que esta construção hegemônica não abrange todas as experiências do masculino e empurra para a margem as masculinidades de homens negros, gays, bissexuais, transgêneros etc.

Dito isto, também observo uma “pegadinha” em relação a estes espaços: noto que os homens são supervalorizados socialmente por promoverem ou participarem de conversas como estas. Noto um certo gozo quando performam a desconstrução de que estamos falando na presença de mulheres e são efusivamente aplaudidos – e desejados – ao publicizarem que estão neste processo. Por que infiro isto? Além de observar as respostas sociais a comportamentos geralmente não esperados de homens, como a divisão de tarefas do espaço doméstico e da criação de filhas/os, por exemplo, abro meu coração para dizer que me pego repetindo este padrão como mulher branca falando sobre racismo.

O lugar de privilégio tem tanto luxo que, apenas a tentativa – não necessariamente a ação – de desconstruí-lo pode gerar uma teia que enreda para este lugar do aplauso, do gozo. Fico me questionando com frequência o quanto meus posicionamentos têm me ajudado a descontruir de fato a formação racista que eu – e todas/os nós – recebi e o quanto converso sobre estes temas entre amigas/os brancos, nos espaços que ocupo, quando não há uma pessoa negra por perto para eu “ganhar pontos” ou receber um carimbo no meu “passaporte antirracista” que vai me levar num voo direto para a limpeza da minha consciência e não me manter nesta posição ranhosa e desconfortável, embora necessária, que ocupo desde que passei a perceber o meu lugar social privilegiado neste sentido, ou, em outras palavras, o meu lugar de fala (Ribeiro, 2017).

A partir disto, ainda me atravessam outras inquietações. Quando tratamos de estruturas sociais, os indivíduos se desconstruírem é algo importante e desejável, contudo, as mudanças nas estruturas precisam ser notadas ou, ao menos, almejadas. Neste sentido, os autores percebem estes paradoxos ao apontarem um cenário tanto de crescimento de espaços reflexivos de gênero para homens, quanto, infelizmente, também do aumento da violência doméstica contra mulheres e da sobrecarga destas em relação aos cuidados domésticos, principalmente neste período de pandemia. Notam avanços em relação à igualdade das relações de gênero, ao mesmo tempo que percebem o aumento do conservadorismo e movimentos que estão a serviço da manutenção do status quo e da hegemonia do poder masculino na sociedade. Quais são, então, as mudanças estruturais que almejamos e que serão possíveis percebermos a partir do crescimento de espaços como estes, para além da desconstrução individual dos homens que delas participam?

Partilho como me inspiraram a postura teórico-filosófica e a metodologia alinhada aos processos reflexivos (Andersen, 2002) utilizadas nas conversas. Os trabalhos horizontais, que se propõem a compartilhar a liderança, a convidar todo o grupo para zelar pelo processo, que se importam com a construção conjunta, são espaços férteis de aprendizado para mim e acredito muito nesta forma de aprender junto. Também me pareceu um desafio adaptar a metodologia dos grupos para que um leigo pudesse reproduzi-la, mas se mantendo fiel à postura já citada, e criar uma linguagem que faz sentido para o maior número de pessoas, não sendo academicista e também não deixando de nomear o machismo.

Também me tocou o esforço para cuidar da migração dos encontros, que aconteciam presencialmente, para o espaço on-line. Os autores citam a escolha da plataforma que viabiliza as reuniões virtuais, a atenção à reprodução das desigualdades dentro dos grupos (considerando que nem todos possuem dispositivos e conexão à internet), o manejo do silêncio (que ganhava novas leituras no ambiente virtual) e a atenção à privacidade dos participantes. Ao mesmo tempo que experimentavam estes desafios, notaram que virtualizar os encontros também permitia maior participação, já que os impedimentos relacionados aos deslocamentos foram minimizados, observando maior frequência e permanência dos homens.

Minhas conversas internas seguiram na direção de me perguntar o que teria acontecido se um homem que participava de um dos grupos de que faço parte tivesse acesso a trabalhos como este antes de ter assediado mulheres em diferentes ocasiões e contextos e pudesse reconhecer seus atos machistas e, na companhia de outros homens, rever sua masculinidade e se reparar. Infelizmente, o rapaz foi retirado do grupo, pois o coletivo deixou de ser um espaço seguro para algumas mulheres por causa destas atitudes e também porque temos um regulamento, elaborado em conjunto, que repudia, dentre outros, falas e comportamentos machistas e sexistas. Algumas conversas aconteceram para acolher as vítimas, para tomar esta decisão, para comunicar a ele e a todo o grupo que, atualmente, realiza rodas de conversa sobre o tema.

Vida longa e frutífera a espaços em que homens se reconheçam machistas e tenham apoio e companhia para reconstruírem suas masculinidades a partir de outras referências... até que experimentemos igualdade na relação entre os gêneros.

 

 

REFERÊNCIAS

Andersen, T. (2002). Processos reflexivos (2ª ed.). Rio de Janeiro: Instituto Noos.         [ Links ]

Beiras, A.; Bronz, A.; Schneider, P. (2020). Grupos reflexivos de gênero para homens no ambiente virtual: adaptações, desafios metodológicos, potencialidades. Nova Perspectiva Sistêmica. 68. 61-75.         [ Links ]

Schneider, P. (2019). [podcast] Memoh. Disponível em: http://www.memoh. com.br/podcast/ Acessado em 20 Fev 2021.         [ Links ]

Kimmel, M. (1998). A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 4 (9), 103-117.         [ Links ]

Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, Justificando. 112 p.         [ Links ]

 

 

GABRIELLA MORENA
Psicóloga, especialista em Terapia Sistêmica de famílias, casais e grupos e em Pedagogia da Cooperação e Metodologias Colaborativas e mestranda em Família e Gênero (ISCSP – Universidade de Lisboa). É associada efetiva do Instituto Noos (São Paulo/Brasil), onde integra a equipe clínica. É docente do curso “Aportes filosóficos e conceituais para uma prática dialógica II” e é membro da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar (Portugal). Realiza atendimentos individuais e a famílias, casais e grupos e coconstrói trabalhos que apoiam a população migrante e LGBTI em redes e coletivos.
https://orcid.org/0000-0003-2346-1099
E-mail: gabriella.psi@gmail.com

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