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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021

 

ESTANTE DE LIVROS

 

Psicologia Jurídica nas Varas de Família: que caminho percorre(re)mos?

 

 

Juliana Silveira Di Ninno; Ludimila Regina Rosenthal Caetano de Oliveira

 

 

Gomes, J. D.; Oliveira, I. M. F. F. de; Costa, A. L. F. (2019) Práticas psicológicas nas varas de família. Curitiba, PR: Juruá.

 

O livro Práticas Psicológicas nas Varas de Família é fruto da pesquisa de doutorado realizada por Juliane Dominoni Gomes, orientada por Isabel Maria Faria Fernandes de Oliveira e coorientada por Ana Ludmila Freire Costa. Seu objetivo foi realizar uma análise histórica do contexto em que se desenvolveram as práticas psicológicas nas Varas de Família ao longo de 30 anos. Para tanto, Gomes (2019) realizou extensa pesquisa por meio de documentos técnicos e normativos do Conselho Federal de Psicologia, dos Conselhos Regionais de Psicologia e das Associações de psicólogos que atuam junto aos Tribunais de Justiça; legislações diversas pertinentes ao tema; referencial bibliográfico produzido por profissionais, por pesquisadores e por grupos de pesquisa nacionalmente reconhecidos sobre a atuação dos psicólogos em Varas de Família.

Esse percurso histórico é dividido em três recortes temporais. O primeiro se inicia em 1985, com a realização do primeiro concurso para psicólogos em um Tribunal de Justiça, e se encerra com a promulgação do novo Código de Processo Civil, em 2002. O segundo então diz respeito às mudanças que o novo código trouxe, entre elas o fim da culpa no divórcio e segue até a instituição da Guarda Compartilhada, em 2008. No último recorte histórico, entre 2009 e 2015 – período marcado pelo fenômeno da judicialização da vida1 – foram analisadas as novas legislações que afetam o trabalho do psicólogo nas Varas de Família. No referido período, a Guarda Compartilhada (Lei Nº 13.058/2008-2014) passou a ser a regra, surgiu a polêmica Lei de Alienação Parental (Lei Nº 12.318/2010) e, mais recentemente, a promulgação da Lei de Mediação (Lei Nº 13.140/2015) tornou-a mais difundida no trabalho com famílias.

Com uma sistematização clara e didática, Gomes (2019) nos conduz ao longo do livro por reflexões, diferentes pontos de vista e desafios enfrentados pelos psicólogos alocados nas Varas de Famílias e pelos pesquisadores que estudaram esse fazer. A partir desse livro é possível encontrar referências de renome sobre os diversos assuntos específicos que compõem os temas abordados.

A autora descreve o percurso histórico dos profissionais de Psicologia no sistema de justiça e como, a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, eles foram chamados a compor equipes multiprofissionais nas Varas de Infância e Juventude, alinhados às demandas internacionais pela garantia e pela promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. A partir da Lei do Divórcio (Lei Nº 6.515/1977), esses profissionais também passaram a ser convocados pelos magistrados a realizar avaliações e pareceres em casos de família.

As pontuações históricas e a contextualização que traçam o percurso dos psicólogos no sistema de justiça são permeadas de reflexões críticas da autora quanto à importância dos psicólogos compreenderem como (e o quanto) as questões sociais e emocionais atravessam as demandas jurídicas, para além do que as práticas periciais possam apreender. Além disso, Gomes (2019) pontua como a falta de uma formação específica em Psicologia Jurídica impacta a atuação profissional, fato também colocado por Moreira e Soares (2019, p.132): “A inexistência de uma formação qualificada específica dos professores e pesquisadores também pode dificultar esse exercício fundamental do ensino de “olhar o avesso” (Brito, 2011a, p. 116), culminando na perpetuação de práticas de colonização da Psicologia pelo Direito”.

Inúmeros processos éticos vêm sendo abertos contra psicólogos que têm trabalhado com as demandas jurídicas, muitas vezes, por falta de conhecimento técnico sobre essa área de atuação e suas especificidades. Isso ocorre principalmente no trabalho dos assistentes técnicos ou na produção de laudos por parte de psicólogos clínicos que, posteriormente, são remetidos à justiça.

A obra traz à tona inúmeros questionamentos quanto às diferentes possibilidades de trabalho e como as “armadilhas para a atuação profissional” (Gomes, 2019, p. 59), muitas vezes, são postas aos psicólogos como novas formas e métodos de atuação. A cada dia nas redes sociais e internet multiplicam-se propagandas de cursos preparatórios para psicólogos se tornarem peritos ou assistentes técnicos sem ter nenhuma formação anterior em Psicologia Jurídica. Esses inúmeros anúncios incentivam a prestação de um serviço supostamente novo para o qual haveria muita demanda do mercado, sem atentar para importância do conhecimento técnico adequado para lidar com as questões e com os desdobramentos do campo de atuação.

Tais armadilhas exigem do profissional constante atualização e reflexão crítica sobre a prática: afinal, ao psicólogo cabe o papel de avaliador das relações humanas? Trata-se de um projeto ético a contribuição da psicologia na construção de métricas, padrões e parâmetros para serem utilizados a fim de se considerar um pai mais capaz do que o outro no exercício da parentalidade? Quais exclusões produzimos? Como essas considerações podem impactar, além dos processos, os contextos familiares?

Estas são algumas das reflexões apontadas pela autora e outras suscitadas pela leitura que, ao longo de sua obra, utilizando a metáfora da Alice no país das Maravilhas, nos faz repensar qual o lugar que a Psicologia busca ocupar ao atender de forma acrítica as demandas provenientes de magistrados e de operadores do direito sobre o trabalho da Psicologia. Nessa perspectiva, Gomes (2019), assim como Sampaio (2017), traz o questionamento a respeito de “quem é o cliente” (Gomes, 2019, p. 27) dos psicólogos no sistema de justiça (o juiz ou a família?), como esses profissionais têm respondido ou não a esse cliente e como as mudanças legislativas impactam nos trabalhos realizados.

Se para os profissionais alocados em Varas de Família é uma leitura indispensável, para os psicólogos clínicos é uma bem-vinda reflexão sobre os temas que têm cada vez mais adentrado os consultórios. Com uma escrita fluida e didática, é uma leitura acessível para psicólogos que nunca tiveram qualquer contato com a área jurídica.

Temas como disputas de guarda, guarda compartilhada, acusações de alienação parental, entre outros temas jurídicos têm se popularizado e ganhado repercussão também no dia a dia das pessoas. A judicialização da vida, por exemplo, é um fenômeno que diz respeito não apenas ao aumento no número de processos judiciais e nos temas desses, mas também incide sobre as formas de se relacionar na atualidade. Dessa forma, esse processo se faz presente em diversas questões que chegam ao espaço da clínica.

Assim, psicólogos clínicos cada vez mais são demandados a entrar nessa lógica judicial e, inclusive, produzir documentos para serem utilizados em processos. Um psicólogo clínico infantil, ao ser solicitado por uma mãe ou pai a produzir um laudo, poderá contribuir para um desfecho processual que terá sérios desdobramentos nessa dinâmica familiar, bem como responder eticamente sobre essa produção documental. Por consequência, também para o trabalho no consultório é importante compreender as discussões atuais sobre Psicologia Jurídica e os usos que têm sido feitos dos documentos psicológicos. A Psicologia Jurídica refere-se ao campo de interface com o Sistema de Justiça e, portanto, quando o psicólogo clínico remete um documento ao judiciário insere-se nessa interlocução com o Direito.

Ao abordar as práticas de atuação do psicólogo para além da perícia, Gomes (2019) traz, ainda no primeiro momento histórico abordado por ela, a proposta de Brito (1994) e Ribeiro (1999) de que houvesse, nas varas de família, uma equipe multiprofissional disponível para atender as pessoas que assim desejassem. Essa equipe deveria favorecer o diálogo e os acordos entre o ex-casal, favorecendo o exercício da parentalidade após o fim da conjugalidade.  Embora não tenham sido abordadas pelo livro, transcorridos mais de 20 anos, existem hoje diversas outras práticas nesse sentido, tanto dentro dos tribunais, como as realizadas no CEJUSC do Tribunal de Manaus (THERENSE, 2017) quanto fora deles, como as Práticas Colaborativas, uma metodologia extrajudicial de resolução de conflitos que conta com uma equipe multiprofissional e que vem ganhando espaço no Brasil desde 2011.

Em 2015, com a promulgação da Lei de Mediação, essa prática passou a ser mais difundida e as famílias passaram a ser conduzidas primeiramente à mediação ao adentrarem os tribunais. Embora a mediação não seja considerada uma atribuição específica dos psicólogos lotados nas Varas de Família, muitos profissionais, a partir dessa mudança, se apoiaram na metodologia da mediação para atuarem com base nos princípios de transformação do conflito e construção de alternativas ao modelo litigioso, ainda que só pudessem atuar como mediadores em horários diversos ao de seu trabalho.

Seja uma atuação dentro ou fora do Tribunal, mesmo que não pericial, os alertas e pontos de reflexão propostos por Gomes (2019) continuam válidos para que não se reproduza a lógica pericial tradicional em novas roupagens, desconstruindo a lógica de que os Psicólogos devem – como Alice correndo atrás do Coelho para saber onde ele vai e o que ele quer – atender prontamente às requisições jurídicas dos magistrados. O psicólogo não é simplesmente um auxiliar do profissional do Direito (seja ele o promotor, juiz ou advogado); seu compromisso deve ser com as famílias que está atendendo e não com o processo; e os aspectos centrais a serem trabalhados devem ser os emocionais e sociais.

Assim, como na história de Alice no País das Maravilhas, tão utilizada pela autora em metáforas ao longo de seu livro, cabe mencionar o emblemático encontro da protagonista com o Gato de Cheshire:

[Alice] “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato. “Não me importa muito para onde”, disse Alice. “Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.

Tal qual o bichano provoca Alice, o livro convoca o leitor a pensar, questionar e a refletir que somente após os psicólogos jurídicos avaliarem onde de fato querem chegar com seu trabalho junto às Varas de Família é que é possível escolher um caminho. E é sob essa perspectiva crítica que Gomes (2019) interpela o leitor sobre a importância de compreender as nuances, os emaranhados, as armadilhas e as complexidades que atravessam as Práticas Psicológicas nas Varas de Família e também – em acréscimo – as famílias que chegam aos consultórios clínicos na atualidade.

 

 

REFERÊNCIAS

Brasil, Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm>, acesso 02 mar 2021.

Brasil, Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm>, acesso 02 mar 2021.

Brasil, Lei nº 13.058 de 22 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13058.htm>, acesso 02 mar 2021.

Brasil, Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>, acesso 02 mar 2021.

Carroll, L. (1865/2010). Alice. Trad. Borges, M. L. X. de A. São Paulo, SP: Companhia das letras.

Gomes, J. D. Oliveira, I. M. F. F. de. Costa, A. L. F. (2019) Práticas psicológicas nas varas de família. Curitiba, PR: Juruá.

Moreira. L. E. e Soares, L. C. E. C. (2017). Psicologia Jurídica: Notas sobre um Novo Lobo Mau da Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 39 (2), 125-140.

Oliveira C. F. B. de e Brito, L. M. T. de (2013). Judicialização da Vida na Contemporaneidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 33, 78-89.

Sampaio, C. R. B. (2017). Psicologia e Direito: o que pode a Psicologia? Trilhando caminhos para além da perícia psicológica. In: M. Therense, C. F. B. de Oliveira, A. L. M. das Neves, & M. C. H. Levi. (Org.). Psicologia Jurídica e Direito de Família. Para além da Perícia Psicológica (pp. 17-59). Manaus, AM: UEA Edições.

Therense, M. Oliveira, E. da (2017). A Atuação do Psicólogo no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc): Relato de Experiência em Manaus. In: M. Therense, C. F. B. de Oliveira, A. L. M. das Neves, & M. C. H. Levi. (Org.). Psicologia Jurídica e Direito de Família. Para além da Perícia Psicológica (pp. 252-272). Manaus, AM: UEA Edições.

Web, S. G. Ousky, R. D. (2017). O Caminho Colaborativo para o divórcio. São Paulo, SP: Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas.

 

 

1 Fenômeno que Oliveira e Brito (2013) definem como “o movimento de regulação normativa e legal do viver, do qual os sujeitos se apropriam para a resolução dos conflitos” (p. 78); um dos desdobramentos é o aumento da busca pelo judiciário para a resolução de demandas pessoais.

 

 

JULIANA SILVEIRA DI NINNO
Psicóloga graduada pela UFMG, capacitada em Práticas Colaborativas.
https://orcid.org/0000-0003-0338-8242
E-mail: juliana.ninno@gmail.com

LUDIMILA REGINA ROSENTHAL CAETANO DE OLIVEIRA
Psicóloga graduada pela UFMG, Pós Graduação em Psicologia Jurídica, Mediadora de Conflitos, Capacitada em Práticas Colaborativas.
https://orcid.org/0000-0002-2197-394X
E-mail: ludimilaoliveira.psi@gmail.com

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