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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v30i70.647 

10.38034/nps.v30i70.647 FRONTEIRAS

 

Utilização de instrumentos reflexivos na formação de terapia familiar: "cadernos de viagem" e equipe reflexiva

 

Use of reflective instruments in family therapy training: "travel copybook" and reflective team

 

Uso de instrumentos reflexivos en la formación de terapia familiar: "cuadernos de viaje" y equipo reflexivo

 

 

Vania Curi Yazbek

Fundadora e docente do Familae - SP e do Instituto Mediativa

 

 


RESUMO

A formação do terapeuta familiar sistêmico levanta interessantes questões que nos levaram a introduzir modificações no contexto de aprendizagem e a desenvolver instrumentos reflexivos que nos têm sido úteis e eficientes. Este artigo comenta algumas dessas modificações introduzidas no contexto de formação e descreve o instrumento, por nós denominado "caderno de viagem", como facilitador de uma postura reflexiva no contexto de aprendizagem.

Palavras-chave: instrumentos, terapia familiar, reflexão, formação.


ABSTRACT

The training of the sistemic family therapist brings up interesting questions that lead us to introduce changes in the context of learning and to develop reflexive instruments that have been useful and efficient. This article comments on some of these changes introduced in the context of Family Therapy training and describes the instrument, named "travel copybook" (caderno de viagem), to improve the conditions of a reflexive stance in the context of learning.

Keywords: instruments, family therapy, reflection, training.


RESUMEN

La formación del terapeuta familiar sistémico plantea interesantes interrogantes que nos han llevado a introducir cambios en el contexto de aprendizaje y a desarrollar instrumentos reflexivos que nos han resultado útiles y eficientes. Este artículo comenta algunas de estas modificaciones introducidas en el contexto de formación y describe el instrumento que llamamos "cuaderno de viaje" como facilitador de una postura reflexiva en el contexto de aprendizaje.

Palabras clave: instrumentos, terapia familiar, reflexión, formación.


 

 

A formação do terapeuta familiar sistêmico é um processo complexo, resultante do entrelaçamento contínuo e recursivo entre o conhecimento de teorias e práticas, a vivência desse conhecer e a construção de um estilo próprio de atuar como terapeuta.

Da experiência com a formação surgiram interessantes questões que nos levaram a modificar o contexto e o modo como nele operamos, e a desenvolver e utilizar instrumentos reflexivos que nos têm sido úteis e eficientes.

Nossa postura teórica propõe as primeiras questões. O corpo docente do Familae faz parte dos terapeutas sistêmicos que adotaram uma postura co-construtivista e construcionista social. Essa postura caracteriza-se pela crença no observador participante na construção da realidade, no papel construtivo do conhecimento e da linguagem, e na auto-referência e reflexividade presentes na construção do conhecimento.

Dessa crença na construção social da realidade decorre a adoção da conversação dialógica como metáfora central da terapia. E a perspectiva terapêutica adota características de multiverso e transparência, revisa a noção de autoridade e de interação instrutiva; torna-se um espaço interessado na criatividade, na emergência de novas possibilidades narrativas e no desenvolvimento de recursos, abandonando a linguagem do déficit (Schnitman & Fuks, 1994).

A adoção dessa postura no contexto terapêutico nos coloca frente a interessantes questionamentos quando trabalhamos no campo da formação do terapeuta:

• Como operar na transmissão do saber se o profissional no lugar de docente é ao mesmo tempo participante desse conhecer?

• Que postura ética e de responsabilidade se faz necessária nesse processo?

• Como se constrói um sistema de interação de ensino-aprendizagem onde a curiosidade se mantenha e onde o professor ocupe o mesmo lugar de "não saber" do terapeuta?

• Como pensar ensino-aprendizagem abandonando a noção de "interação instrutiva"?

• A partir da opção do corpo docente por uma postura determinada, como oferecer um panorama multiverso da terapia familiar constituído pelos diferentes modelos baseados em outras bifurcações teóricas do campo?

Outras questões emergem da interação com as teorias que embasam o nosso objeto de estudo. A terapia familiar surge das mudanças dos sistemas de crenças científicas e políticas da modernidade, surge da revolução paradigmática produzida pela introdução de conceitos sistêmicos e cibernéticos no campo das ciências sociais (Schnitman & Fuks, 1994).

Conhecê-la, implica em passar por um processo de mudança de paradigma, exige a elaboração das consequências pessoais desse impacto?

Outras questões são levantadas frente à interação com os diferentes modelos da prática clínica que surgiram da evolução da terapia familiar. O campo da terapia familiar coevolui com a metáfora teórica cibernética que a instituiu, participa deste processo de evolução através do desenvolvimento de uma prática de ação social que se organiza ao mesmo tempo que questiona o paradigma.

A adoção dessa linguagem cibernética levou o campo da terapia familiar a desenvolver um estilo transdisciplinar: a busca incessante de respostas em diferentes campos do saber, a partir de questionamentos levantados pela implementação prática de seus modelos.

Em algum momento deste processo de busca e incorporação de contribuições teóricas provenientes de outros campos do saber, houve uma bifurcação que levou um grupo de terapeutas familiares sistêmicos a substituir a metáfora da cibernética pela hermenêutica. Substituindo os circuitos de retroalimentação dos sistemas cibernéticos por circuitos-intersubjetivos do diálogo, desenvolveu práticas terapêuticas baseadas na interpretação narrativa e textual.

Consequentemente a identidade da terapeuta familiar se estrutura, se nutre e se desenvolve através da mudança, gerando múltiplos modelos práticos de intervenção terapêutica a partir desse processo recursivo. O conhecimento desses diferentes modelos tem despertado sensações de descontinuidade e de desencontros naqueles cuja prática se organiza segundo outros aportes teóricos.

• Como operar nesse processo de mudança onde concorrem novas e velhas formas de pensar e atuar?

• Que condições favorecem a complexidade e que condições levam a reduzir e empobrecer a prática adquirida e conhecida?

As implicações multidimensionais do contexto de formação, por coerência teórica, exigem os mesmos organizadores complexos do contexto terapêutico. Embora terapia e formação sejam processos distintos, são campos extremamente entrelaçados, na medida em que são práticas sociais ligadas a mudança.

A adoção da postura coconstrutivista e construcionista social como marco teórico-prático para o contexto terapêutico nos obrigou a revisar o contexto em que operamos como formadores de terapeutas. Como construtores das realidades que vivemos, reconstruímos nossas metáforas do ensino-aprendizagem e nossos instrumentos para ensino-aprendizagem da mudança.

Como organizadores teóricos, buscamos o conceito de reflexão e as reflexões de Tom Andersen (1994), e o conceito da ecologia da ação na epistemologia da complexidade de Edgard Morin (1994).

Como instrumentos buscamos a equipe reflexiva de Tom Andersen (1994) e o diário de bordo de Dora Schnitman e Saul Fuks (1993).

A nossa interpretação desses conceitos e instrumentos possibilitou uma leitura teórica e gerou a construção de um desenho específico para o nosso contexto de formação: um contexto colaborativo, cuja metáfora central é a conversação dialógica, um diálogo de diálogos, um diálogo externo de diálogos internos.

Diálogo de diálogos refere-se ao tipo de conversação entre duas pessoas onde três conversas paralelas acontecem ao mesmo tempo: duas falas internas e uma externa. Diálogos internos se referem a uma postura reflexiva do indivíduo sobre o que acontece consigo próprio frente a uma situação e sobre sua participação na interação com o outro (Andersen, 1994).

Tom Andersen (1994) define reflexão como: "pensar, depois ouvir, antes de falar". Segundo essa definição, uma postura reflexiva é o ato de perguntar-se sobre pensamentos, sentimentos, emoções, sensações corporais que surgem em si próprio frente ao outro ou frente à fala narrada ou escrita do outro. É ainda uma exploração de como participa da interação, de qual domínio da existência (pensar, sentir, agir) organiza a experiência e ordena as descrições construídas da realidade.

É, além disso, o ato de perguntar-se sobre o modo narrativo que se usa para descrever, sobre os efeitos ou tipos de realidade resultantes. O que na realidade construo quando descrevo desta maneira? E quando descrevo de outra maneira?

Uma postura reflexiva permite a revisão da resposta automática, espontânea, geralmente centrada na certeza. Este processo de investigação gera um movimento intrasubjetivo que possibilita a emergência de novas construções da realidade.

Como instrumento facilitador desse posicionamento reflexivo desenvolvemos o uso do "caderno de viagem". Apresentamos esta metáfora de "caderno de viagem" pedindo aos alunos que registrem, ao longo do curso, suas reflexões frente aos textos lidos, ouvidos e falados. E que registrem as reflexões que possam surgir da interação grupal com os colegas, com os professores e com os pacientes.

Em alguns momentos do curso, propomos um espaço conversacional para intercambio desses registros. Nesse processo participam os alunos e os professores. Utilizamos o formato de equipe reflexiva, onde os alunos, divididos em grupos, compartilham suas reflexões na presença de professores. Num segundo momento, os professores conversam entre si, na frente dos alunos, levantando perguntas a partir do que ouviram. Estas perguntas desconstrutivas/construtivas ajudam na exploração de perspectivas alternativas e de outras possibilidades de construções narrativas.

A cada ano do curso, organizamos esses encontros em torno de temas centrais do processo: mudança de paradigma, interação com os diferentes modelos clínicos e a construção do próprio estilo terapêutico.

A prática do "caderno de viagem" desenvolve a postura reflexiva na medida em que dirige a atenção de cada um para o próprio processo de ensino-aprendizagem; oferece uma oportunidade de utilizá-la em contexto grupal, uma vez que o ato de compartilhar os registros exige uma decisão sobre o que pertence a um domínio privado, útil apenas para si próprio, e o que deseja verbalizar socialmente para poder também ajudar o outro; e cria um contexto conversacional dialógico que possibilita a transformação do campo de trabalho em um contexto aberto ao operar na incerteza e na dúvida, passível de mudanças individuais e grupais.

Nossa proposta busca desenvolver um espaço de interação na formação que propicie a convivência organizada segundo os mesmos princípios de interação do espaço terapêutico: o conforto e o desenvolvimento de recursos.

O conforto é resultante de um processo de construção social a partir das diferenças, constrói -se e mantem-se por marcos de contexto que possibilitem uma postura de curiosidade frente ao exterior, uma postura aberta à diferença: oscila numa faixa entre os limites do demasiado familiar (que não faria diferença) e do demasiado inusual (que levaria a respostas de fechamento).

O "caderno de viagem", em termos grupais, é um instrumento facilitador de conforto à medida em que organiza as pautas de interação possíveis entre alunos e professores, e os encaixes (fit) possíveis entre os sistemas de crenças pessoais e o conhecimento de novos sistemas de crenças e teorias propostos pelo objeto de estudo.

Quanto ao desenvolvimento de recursos, a postura reflexiva leva à exploração do funcionamento interacional entre os diferentes domínios da existência, resultando em um trabalho com a própria epistemologia. Permite também perceber-se como participante das descrições de realidade e da maneira como são construídas as explicações. Essas investigações pessoais produzem um movimento interno que tem a potencialidade de abrir perspectivas diferentes sobre temas que parecem ter só uma leitura possível. É um processo de exploração que permite reconstruir os centros organizadores de experiência e, consequentemente, a emergência de novos recursos.

A utilização desse formato possibilita o engajamento dos elementos do sistema (alunos e professores) na construção das condições das próprias realidades existenciais na direção do conforto e do desenvolvimento de recursos. E tem facilitado a elaboração pessoal das vivências, às vezes perturbadoras, que emergem nos processos de mudança.

Esse contexto de diálogo externo de diálogos internos requer uma política de ação complexa, não reducionista. Edgar Morin (1994, p. 26) define o princípio de ecologia da ação desta maneira: "a ação escapa à vontade do ator político para entrar no jogo das inter-retroações e retroações recíprocas do conjunto da sociedade".

Como consequência, temos os problemas da eficácia e da imprevisibilidade da ação. Essa postura epistemológica coloca a política no lugar de quem navega e não no lugar de quem governa o timão, utilizando o sentido cibernético (Morin, 1994). Sob esta ótica, o processo de formação se orienta por estratégias ao invés de programas.

Ainda segundo Morin, um programa é um conjunto de projeções abstratas, de atos decididos a priori e que devem funcionar um depois do outro. Programa funciona muito bem em contextos que não sofrem perturbações ou mudanças nas condições que os circundam. Ao contrário, a estratégia é um cenário de ação que pode se modificar em função das informações, dos acontecimentos que aparecem no curso de ação. Nesse sentido, estratégia é a arte de trabalhar com a incerteza, a arte de pensar e de atuar na incerteza (Morin, 1994).

Essa política de ação complexa transforma o contexto da formação num diálogo de diálogos e organiza algumas das atividades que compõem o nosso curso. No início do curso, a construção do sistema de professores e alunos obedece a um processo de seleção de duas vidas, a qual é realizada num espaço conversacional e é resultante do encontro de ofertas e expectativas dos profissionais do corpo docente e do corpo de alunos. Nesse encontro selecionam-se mutuamente os participantes, construindo-se o sistema inicial para a interação de ensino-aprendizagem. Inicial porque acreditamos que essa seleção se prolongue durante todo o curso, à medida em que se intensifica a interação.

O programa do curso é estruturado em torno de temas estrategicamente armados, podendo ser modificado pelo processo de coconstrução. O caminho teórico pode sofrer alterações de inclusão ou exclusão de temas e exercícios, segundo as necessidades sentidas pelos elementos participantes (professores e alunos). Construímos e reconstruímos esse caminho através dos diálogos realizados nos encontros de "caderno de viagem" e nos momentos de avaliação semestral.

Os encontros que chamamos habitualmente de aulas, são organizados pela leitura prévia de textos segundo um roteiro constituído de perguntas que orientam a discussão. Desses momentos, participam uma dupla de professores e os alunos, com o objetivo de enriquecer a interação e a multivisão.

Procuramos contextualizar as teorias e modelos clínicos, apresentando-os como construções narrativas de autores. Buscamos tratá-los não como abstrações flutuantes, mas como obras de pessoas que viveram num tempo e num lugar específicos, de uma determinada maneira, sob certo universo de pensamento. Lembramos que atrás de textos teóricos estão pessoas e suas mentes.

Intercalamos o estudo de textos teóricos com uma série de exercícios de epistemologia do terapeuta com o objetivo de ajudar o desenvolvimento da postura reflexiva necessária para constituição desse contexto dialógico.

Os atendimentos com supervisão ao vivo são realizados por uma dupla de terapeutas, oferecendo a oportunidade de experimentar, de maneira mais sutil e focalizada, o coordenar as diferenças, o conviver a partir das diferenças. Utilizamos equipe reflexiva nessa atividade, buscando ampliar o universo para um multiverso.

Realizamos as avaliações semestrais segundo um formato específico de reflexão em equipe: os alunos conversam entre si, com a ajuda de um professor, sobre algumas perguntas que orientam esse conversar; num segundo momento, os professores trocam entre si, na presença dos alunos, as reflexões a partir do que ouviram; num terceiro momento, os alunos terminam com suas reflexões. Esse formato tem sido de importância fundamental, pois funciona como elemento orientador para a organização das estratégias que darão sequência ao curso. Essa forma específica de diálogo tem gerado um contexto de respeito e liberdade frente aos encaixes (fit) possíveis, através da transparência mútua.

A apresentação desse formato de curso de formação não pretende ser uma proposta modelo, é o relato da experiência de uma equipe de formadores, cujo "padrão que une" é a reflexão. Essa é uma das leituras teóricas possíveis desse processo: a minha reflexão a partir dessas vivências.

 

REFERÊNCIAS

Andersen, T. (1994). Dialogues and dialogues about the dialogue. Borgmann.         [ Links ]

Morin, E. (1994). La epistemologia de la complejidad. In D. F. Schnitman (org.). Nuevos paradigmas cultura y subjetividad (pp. 421-453). Paidós.         [ Links ]

Schnitman, D. F. & Fuks, S. (1993). A epistemologia do terapeuta (áudio-visual). Familae.         [ Links ]

Schnitman, D. F. & Fuks, S. (1994). Metáforas del cambio: terapia y processo. In D. F. Schnitman (org.). Nuevos paradigmas cultura y subjetividad (pp. 377-391). Paidós.         [ Links ]

 

 

VANIA CURI YAZBEK, Psicóloga, Terapeuta individual e familiar com especialização em clínica, mediadora e capacitadora em Mediação Transformativa de Conflitos, facilitadora e capacitadora em práticas de Justiça Restaurativa, rigorosa consigo, extremamente cuidadosa com sua família, colegas e todos que atendeu nas diferentes práticas em que se especializou; integrou a equipe Justiça em Círculo, foi co-fundadora do Instituto Familiae de formação de terapeutas familiares, sócia fundadora do Mediativa - Instituto de Mediação Transformativa, ambos em São Paulo, capacitadora licenciada pelo ILAPR/IIRP - Instituto Latino Americano de Prácticas Restaurativas / International Institute for Restorative Practices em processos circulares por Kay Pranis; certificada pelo Diplomado Internacional em Práticas Dialógicas, membro da Red de Trajo para Diálogos Productivos e docente dos cursos Diplomado em Perspectiva y Prática Profesional Generativa de la Fundación Interfas de Buenos Aires. Deixou-nos cedo, sentimos muito a sua falta nos contextos formativos de terapia familiar e mediação familiar.

Esse artigo foi publicado pela NPS n. 8, em maio de 1996, no Rio de Janeiro, com o título original "Utilização de instrumentos reflexivos na formação "cadernos de viagem" e equipe reflexiva, O texto nos mostra a adesão aos processos reflexivos assim que chegaram ao nosso conhecimento na América Latina, os quais deram o tom colaborativo à formação do Instituto Familae. Em homenagem à autora, in memoriam, e na comemoração de 30 anos da NPS, trazemos novamente para nossos leitores e leitoras.

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