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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v30i70.599 

10.38034/nps.v30i70.599 ARTIGO

 

Produção de conhecimento sobre fenômenos psicossociais em tempos de COVID-19

 

Production of knowledge about psychosocial phenomena in COVID-19 times

 

Producción de conocimiento sobre fenómenos psicosociales en tiempos de COVID-19

 

 

Danilo Conceição de Carvalho; Maricelly Gómez Vargas; Mônica Lima de Jesus

Universidade Federal da Bahia, Salvador/BA, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma aproximação com o movimento do construcionismo social, seus princípios e especificidade na área da psicologia social na sua articulação com o fenômeno psicossocial da pandemia da COVID-19. Destaca-se a prática discursiva e a produção de sentidos como abordagem para nortear as pesquisas psicológicas interessadas em questionar o saber e o conhecimento de fenômenos naturalizados nos discursos tanto na academia quanto na vida cotidiana. A diversidade teórico-metodológica da psicologia e as mudanças da sociedade têm exigido dos/as pesquisadores/as formas de pensar e proceder que valorizem a multiplicidade de sentidos para além da unificação de discursos generalizados e hegemônicos que precisam de críticas e reflexões permanentes, visando posturas politizadas das pessoas e grupos favorecendo a transformação social.

Palavras-chave: construcionismo social, psicologia social, práticas discursivas, Covid-19.


ABSTRACT

The article presents an approximation with the movement of social constructionism, its principles and specificity in the area of social psychology in its articulation with the pandemic psychosocial phenomenon of COVID-19. The discursive practice and the production of meanings stand out as an approach to guide psychological research interested in questioning the knowledge and knowledge of naturalized phenomena in the speeches both in academia and in everyday life. The theoretical and methodological diversity of psychology and the changes in society have demanded from researchers ways of thinking and proceeding that value the multiplicity of meanings beyond the unification of generalized and hegemonic discourses that need permanent criticism and reflection aiming at politicized attitudes of individuals and groups favoring social transformation.

Keywords: social constructionism, social psychology, discursive practices, Covid-19.


RESUMEN

El artículo presenta una aproximación al movimiento del construccionismo social, sus principios y especificidad en el área de la psicología social en su articulación con el fenómeno psicosocial de la pandemia por la Covid-19. Se destaca la práctica discursiva y la producción de sentidos como abordaje para orientar las investigaciones psicológicas interesadas en cuestionar el saber y el conocimiento de fenómenos naturalizados en los discursos de la academia y la vida cotidiana. La diversidad teórica y metodológica de la psicología y los cambios de la sociedad han exigido de los/as investigadores/ as formas de pensar y proceder que valoren la multiplicidad de sentidos más allá de la unificación de discursos generalizados y hegemónicos que requieren de críticas y reflexiones permanentes con miras a actitudes politizadas de las personas y grupos favoreciendo la transformación social.

Palabras clave: construccionismo social, psicología social, práctica discursiva, pandemia de la covid-19.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta as reflexões dos/as autores/as sobre as perspectivas teórica e metodológica concernentes aos princípios do movimento do construcio-nismo social aplicadas às suas pesquisas realizadas no campo da psicologia social, as quais estão contextualizadas na pandemia da COVID-19. O interesse pelo tema nasce em paralelo ao desenvolvimento de dois, entre alguns outros, estudos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPG-Ps/UFBA), no Laboratório de Estudos do Vínculo em Saúde Mental (LEV/UFBA) da Universidade Federal da Bahia. Estes projetos são independentes e de níveis diferentes, um desenvolvido por uma doutoranda colombiana e outro por um mestrando brasileiro. Como estes estudos já estavam em andamento e não era previsto em seus objetivos e método a problemática da pandemia da COVID-19, sua eclosão se mostrou imperiosa para repensar e contextualizar as pesquisas. Algumas das inquietações podem ser formuladas assim: como esse contexto de pandemia afeta os/as profissionais de saúde de mental no Brasil e a formação e prática dos/as psicólogos/as na Colômbia, e quais efeitos produzem no conhecimento que buscamos expressar com estes estudos? Essa mudança de contexto será considerada em nossas pesquisas no contato com essas pessoas? Quais desafios temos para produzir dados em tempos de distanciamento social? Usando equipamentos de proteção individual (EPI) em situações presenciais e/ou adotando meios digitais para produção de informações? Quais os impactos de tais procedimentos para a qualidade da produção de conhecimento?

Nesse ínterim, vamos apresentar os elementos sublinhados pelo movimento do construcionismo social, reconhecendo que os seus princípios antiessencialimo, antirrealismo, questionamento de verdades geralmente aceitas, determinação cultural e historicidade do conhecimento, linguagem como condição de possibilidade, conhecimento como prática social, construção social (Íñiguez-Rueda, 2003) visam destacar a importância de avaliar criticamente as práticas de pesquisa, formas de escrever, de questionar, de apresentar comunicações orais, etc.; pois manter as mesmas práticas, implica em reificar os mesmos discursos, sobre um fenômeno de impacto global, representado na pandemia da COVID-19, que impõe várias mudanças no campo das pesquisas em psicologia social e outras áreas. Embora o objetivo deste artigo não comporte aprofundamento no pós-construcionismo, destacamos que este grupo de pesquisa também tem estado atento às críticas, limites e potencialidades concernentes ao impacto que o movimento construcio-nismo social tem implicado diferentemente nas variadas abordagens das ciências sociais, e de suas possibilidades de superação, quando mantemos a postura da psicologia social crítica (Íñiguez-Rueda, 2003). Em suas próprias palavras:

Una psicología social crítica es entonces la consecuencia de un continuo cuestionamiento y problematización de las prácticas de producción de conocimiento y por tanto tiende a recoger la mayor parte de las características que he anunciado, es decir, la historicidad del llamado talante construccionista, la reflexividade del conocimiento, las aportaciones de la epistemología feminista y del conocimiento situado, la eclosión de los estudios sociales de la ciencia y la tecnología, la performatividad, etc. (Íñiguez-Rueda, 2003, p.33)

Vamos considerar os contextos pandémicos no Brasil e na Colômbia, os princípios teóricos e metodológicos do construcionismo social e, especialmente, a vertente das práticas discursivas e da produção de sentido, de Mary Jane Spink e colaboradores/as. Em seguida são descritas as possibilidades metodológicas de investigação, exemplificando, dentro dos limites de um artigo, algumas alternativas para produzir e analisar dados em pesquisas construcionistas, levando em conta esses pressupostos na sua relação com os nossos objetivos de pesquisa e oportunidades atuais de produção e análise de informações no contexto da COVID-19.

 

O CONTEXTO PANDÉMICO DA COVID-19

A pandemia da COVID-19 iniciou a partir de dezembro de 2019. No dia 12 de fevereiro de 2020, foi comunicado à Organização Mundial da Saúde (OMS) a transmissão entre humanos de um vírus que cumpria com as seguintes características: velocidade na propagação, gravidade dos casos e impacto negativo na vida social e econômica dos países, como historiciza Mary Jane Spink (2020a). As informações atualizadas no site da OMS, em fevereiro de 2021, indicam mais de 106,6 milhões de casos positivos e mais de 2 milhões de mortes no mundo, sendo as Américas o continente com a maioria dos casos. Os casos confirmados no Brasil eram mais de 9 milhões e na Colômbia mais de 2 milhões.

No caso do Brasil, à crise sanitária acrescentou-se a crise política no momento das medidas de isolamento e distanciamento sociais, provocando dificuldades ainda mais graves para o sistema de saúde, concluem Norma Molina Prendes e Maria Luz Mejias Herrera (2020). Nesse sentido, a pandemia é sinal de uma crise na democracia, pois faz distinção de cor, etnia, classe social e gênero, segundo as estatísticas da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (2020), em uma matéria em seu portal intitulada Desigualdade racial: por que os negros morrem mais que brancos na pandemia?. A população negra, por exemplo, corresponde no Brasil a 75% da população considerada pobre, daí resulta que ela seja a principal vítima da doença em uma proporção de uma morte para cada três pessoas, enquanto a proporção de brancos é de 1 a cada 4,4.

Assim como no contexto brasileiro, a desigualdade social na Colômbia, acentuada pela pandemia, tem revelado as formas sócio-históricas de discriminação derivadas da colonização e neocolonização, além dos efeitos negativos na sociedade provocados pelo sistema capitalista que tem potencializado a extração dos recursos naturais, acabado com os direitos laborais mediante a flexibilização do trabalho, e reduzido o investimento público para o acesso a serviços gratuitos de água, luz, educação e saúde, conforme adverte Andrea Lisset Pérez (2020). Sendo evidente a problemática social no contexto latino-americano, chama a atenção as informações recorrentes sobre as consequências na saúde mental da população, nos dois países, depois de medidas de prevenção, tais como o distanciamento social. Destacase, por exemplo, a prevalência de sintomas de ansiedade e depressão, uso e abuso de drogas e álcool, violência intrafamiliar, de gênero e estresse em pessoas de todas as faixas etárias, como expressam os estudos de Ramírez-Ortiz, Castro-Quintero, Lerma-Córdoba, Yela-Ceballos e Escobar-Córdoba (2020) e Hengrid Silva, Luís Eduardo dos Santos e Ana Karla de Oliveira (2020).

Sublinhando esse contexto pandêmico, mas particularizado aos cenários brasileiro e colombiano, justifica-se a necessidade de uma reflexão no âmbito das pesquisas na psicologia social construcionista e as suas possibilidades para os/as pesquisado-res/as interessados na compreensão desses fenômenos sociais e, assim, contribuir com alternativas de solução.

 

CONSTRUCIONISMO E PÓS-CONSTRUCIONISMO SOCIAIS: ALGUNS PRINCÍPIOS, POTENCIALIDADES E LIMITES

A perspectiva construcionista se apresenta não como uma teoria formulada com seus conceitos e construtos a serem testados e aplicados para comprovação de hipóteses, mas sim como um modo de conceber a produção e compartilhamento do conhecimento em diferentes coletivos sociais, conforme as especificidades de cada contexto. Por isso, alguns/mas autores/as que desenvolvem pesquisas dentro dessa ótica sugerem utilizar o termo postura construcionista para se referir àquelas pesquisas que partem de uma visão não naturalizante e não essencializada dos fenômenos sociais e humanos sobre os quais se debruçam, conforme sinalizam Ricardo Mello, Alyne Silva, Maria Lima e Angela Di Paolo (2007) e Mary Jane Spink, Jackeline Brigagão, Vanda Nascimento e Mariana Cordeiro (2014).

Segundo Mello, Silva, Lima e Di Paolo (2007), no campo da psicologia social, o construcionismo tem despertado uma diversidade de reflexões teóricas e metodológicas com o foco na linguagem, compreendida como práticas discursivas. Esse conceito foi proposto por Michel Foucault (1971/1996, citado por Mello et al., 2007) e expressa o caráter pragmático da linguagem como instrumento de intercâmbio social, cujas implicações metodológicas vêm sendo utilizadas, sobretudo, para compreender os processos pelos quais certos fenômenos são essencializados. No construcionismo, a linguagem passa a ser considerada como um processo capaz de criar acontecimentos e estados de coisas no mundo. É tomada numa perspectiva da prática cotidiana, como ação, que implica em negociações e agenciamentos gerados nas interações sociais entre humanos e não humanos, segundo os pressupostos, por exemplo, da Teoria Ator Rede (TAR) No que se refere à afiliação da TAR, Lupicinio Íñiguez-Rueda (2008) destaca:

En el nuevo panorama post-construccionista la ANT [TAR] nos descubre las implicaciones que el dualismo natural-social tiene y nos abre un campo nuevo de posibilidades de conceptualización de agentes, sujetos u objetos. Entre otras, nos permite equilibrar el balance entre natural-social recolocando lo material y creando una nueva hibridación conceptual alejada de esencialismos culturistas o materialistas (p. 24-25).

Contudo, os posicionamentos epistemológicos dentro do movimento constru-cionista nas ciências humanas e sociais são diversos e por vezes divergentes, tendo como característica comum o caráter questionador de duas tradições estabelecidas na ciência psicológica: uma exogênica para a qual o conhecimento é uma representação mental do mundo externo/ real/ material; e outra endogênica que compreende o conhecimento através de processos situados no interior dos indivíduos, em seus organismos, por vezes considerados inatos, adverte-nos Kenneth Gergen (1985/ 2009). Dessa maneira, o construcionismo situa o conhecimento e sua produção na fronteira, no entre, na relação, no espaço de trocas de indivíduos em relação com o mundo.

O construcionismo social, segundo Tomás Ibañez (2001) e Íñiguez-Rueda (2008), entende um objeto, seja ele físico, biológico, psicológico ou social, como dependente das definições que dele fazemos e segundo as regras consensuais que legitimam os procedimentos para a elaboração de quaisquer tipos de conhecimentos. No entanto, não se quer negar a materialidade dos objetos, mas se quer enfatizar a diferença entre realidade e conhecimento da realidade, este último é produto de processos de interpretação das pessoas que coletiva e relacionalmente o produzem num contexto histórico e social específicos.

Para a abordagem construcionista, essa construção dialógica e relacional do conhecimento vai exigir do/a cientista e do/a pesquisador/a um rigor para explicitar o contexto onde ele/a se posiciona, indicando: a) como os interesses e necessidades do/a pesquisador/a incidem sobre as escolhas teórico-metodológicas e interpretações (reflexividade pessoal); b) a avaliação da posição ocupada pelo/a pesquisador/a na comunidade (científica, universitária, profissional) e sua influência sobre as informações construídas na pesquisa (reflexividade funcional) (Spink & Menegon, 2013).

Na mesma linha de raciocínio do princípio antiessencialista, o construcionismo é antirrepresentacionista, ou seja, ele não acha que os objetos sejam uma realidade independente de quem pesquisa. Por exemplo, o conhecimento do/a cientista não é uma representação mental que copia os elementos de um objeto que fica lá fora. Essa posição tenta se afastar dos seguintes problemas: a) dicotomias que separam linguagem/mundo, mundo/conhecimento e sujeito/objeto; b) a falácia da suposta correspondência entre a representação "mental" com a realidade. Com isso se entende que o conhecimento é resultado da interação entre pessoas concretas em contextos concretos, para nosso caso: grupos de pesquisa, autores/as, orientadores/ as das nossas teses e dissertações, colegas, avaliadores/as, participantes das pesquisas, leitores/as etc., comunidades cientificas que constroem as formas aceitas de se produzir conhecimento válido, resultante de interesses e normatividades próprias a um contexto social e histórico. Além disso, temos as coisas, os documentos e os elementos heterogêneos que constituem uma rede ampla de interação cujos efeitos são considerados ou não por nós pesquisadores/as. Somos cientes do contexto atual onde nós produzimos conhecimento? Qual nossa posição crítica diante desses consensos discursivos nas nossas comunidades acadêmicas?

Entender que fazer ciência é uma prática social, exige que o/a cientista reflita sobre os critérios éticos e pragmáticos e sobre as implicações que o conhecimento produzido tem para a sociedade onde ele/a está inscrito/a. Esse conhecimento é um conjunto de enunciados linguísticos, entendidos como ações e práticas que provocam efeitos produzindo também outras práticas. Por isso a questão: quais discursos heteronormativos, desracializados e classistas nós ainda reproduzimos na nossa prática cotidiana como pesquisadores/as e profissionais? O construcionismo social tem insistido que a linguagem é usada para fins pragmáticos no cotidiano: quem fala num determinado contexto pode criar, destruir ou manter, silenciar ou dar voz. A ênfase não está colocada na funcionalidade, senão no uso em ação da linguagem e seus efeitos nas práticas sociais (conhecido como caráter performativo), por isso o chamamento do construcionismo para que nós, pesquisadores/as cidadãos/ ãs, tenhamos também um compromisso ético-político. Por exemplo, o/a pesquisa-dor/a durante o processo de produção de informações pode promover a comunicação entre as pessoas para que falem de si e de seu entorno, viabilizando, às vezes sem que seja um objetivo apenas autointencional do/a pesquisador/a, reconfigura-ções do seu lugar perante os discursos sociais institucionais e institucionalizados. No caso do pós-construcionismo, o chamamento se dá de modo ainda mais radical em relação à compreensão da desigualdade e uso do poder na produção de conhecimento e a necessidade de extrapolar para a transformação social. Íñiguez-Rueda (2008) recorre à epistemologia feminista de Judith Butler e à sua noção de perfor-matividade, enfatizando que "la performatividad no es sólo una acción lingüística, un acto de habla intencional del sujeto, sino una forma de poder (p. 31).

Kenneth Gergen (2009), ao situar o construcionismo social no campo da psicologia social, afirma que a principal preocupação das pesquisas construcionistas é compreender os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam e se situam no mundo em que vivem. Se levarmos essa preocupação à radicalidade, não nos resta outra saída que não seja a contrapartida relacional, oferecendo aos nossos lei-tores/as os caminhos que seguimos no estudo, ou seja, como construímos as narrativas e interpretações sobre o que eles/as compartilharam conosco. Nessa direção, Emilly Gomes e Mônica Lima (2020, p. 1640) fazem uma intensificação do apelo construcionista para "defesa da sinalização das modificações, dos ajustes e das superações realizadas ao longo de um estudo, não como representativos de um deslize ou de uma fragilidade, mas como um potencial argumentativo singular do rigor da produção de conhecimento".

Gergen (2009) pontua quatro premissas fundamentais que norteiam tais estudos, a saber: desafiar as bases objetivas do conhecimento convencional; considerar as origens sociais das concepções teóricas; passar de uma epistemologia experimental para uma social; e considerar que as explicações sobre o mundo são formas de ação social. Para melhor compreender essas quatro premissas, podemos recorrer a outros estudos do referido autor (Gergen, 2001), quando discute a ciência psicológica em um contexto pós-moderno. O significado de desafiar as bases objetivas do conhecimento, tal como vem sendo realizado por uma tradição cientifica estabelecida, consiste em romper com uma concepção modernista dualista entre o mundo da mente e o mundo externo/material. Essa concepção, grosso modo, considera que os processos mentais, situados no indivíduo, estão disponíveis para estudo objetivo e possuem relação causal com o meio ambiente externo, gerando consequências no comportamento, reverberando na eleição do método experimental como superior aos demais para compreender tais relações causais.

Dentro desta cosmovisão modernista, o mundo, seja ele mental ou material, está simplesmente disponível para observação. Já numa visão pós-moderna, essa distinção entre um mundo lá fora cognoscível objetivamente para um aqui dentro individual, são compreendidas como abstrações construídas no sistema de linguagem, ou seja, um determinado gênero textual próprio de uma comunidade específica, que compartilha determinada tradição científica. Portanto, tal concepção teórica se trata de uma construção linguística (Gergen, 2001). Nesse sentido, Mary Jane Spink (2010) afirma que adotar uma postura construcionista é, antes de tudo, considerar que o conhecimento é sempre feito por um coletivo de modo compartilhado, não é algo que se aprende do mundo, mas sim construído através das práticas sociais. A autora, baseada nas reflexões de Ibáñez (1994), propõe que a postura constru-cionista pressupõe uma desfamiliarização, a começar pela suspeição da dicotomia sujeito-objeto, uma vez que ambos são considerados construções sociais. Na noção de desfamiliarização atenta-se para a presença cotidiana de espaços criadouros de novas construções que dão sentido ao mundo, um movimento contínuo que possibilita a convivência entre o antigo e o novo. Mary Jane Spink e Mary Rose Frezza (2013) definem a desfamiliarização como a "ressignificação contínua e inacabada de teorias que já caíram em desuso" (p. 10). As autoras consideram que "dificilmente 'desconstruímos' o que foi construído" (p. 10). Em Sem abdicar, transgredir e assim reinventar, Mary Jane Spink (2020b), fazendo ressonâncias ao texto de Murilo Moscheta e Rodrigo Ferreira (2020), Falha, fratura, queda eperdição: pesquisas com métodos vulneráveis, deixa sua posição ainda mais explícita sobre as exigências contemporâneas da produção do conhecimento entre o antigo e o novo. Em contraponto à leitura que fez dos autores, da noção de descolonização, cujo entendimento não compartilhamos, em suas próprias palavras, a autora defende:

Repertorios estão também inscritos em nossos processos de socialização, incluindo aí nossa formação como pesquisadores mais ou menos comprometidos com métodos protocolados. Circulam, além disso, por meio da dinâmica dos tempos do aqui-e-agora no qual se tornam bagunçados, passíveis de reconfigurações que só não acontecem quando nossa capacidade de invenção for amordaçada. Ou seja, se ficarmos reféns de autoridades epistêmicas cujo poder é tão sutil, que nem sempre percebemos que estamos a elas algemados, ou, quando percebemos, acreditamos que teremos recompensas irrecusáveis (Spink, 2020b, p. 40-41).

Outro fator preponderante dentro da cosmovisão modernista contraposta pela postura construcionista é o da linguagem como portadora da verdade. O modernismo sugere que uma vez que a mente individual adquire um conhecimento do mundo e esse conhecimento é transmitido através da linguagem, esta seria, portanto, a portadora da verdade. Na perspectiva construcionista, a linguagem deixa de ser compreendida como produto da mente para significar uma prática, um processo cultural, e as descrições produzidas através dela não são espelhos do mundo, senão descrições e explicações negociadas em nossos relacionamentos uns com os/ as outros/as e com o mundo no seu uso em ação. Nessa direção, o conhecimento científico e as verdades que postula são significativas para sustentar suas tradições, porém devem ser consideradas no seu sentido e limites locais e não como universais (Gergen, 2001). No caso de uma tendência da psicologia social crítica como um caminho para psicologia social na encruzilhada construcioinista/pós-construcio-nista, como problematiza Íñiguez-Rueda (2003), nas palavras de Alejandro Moreno (1993, citado por Íñiguez-Rueda, 2008): "en la actualidad, seguramente, ya no es problema de la verdad el que se planta (...) sino el de la responsabilidad" (p. 34). Segundo o raciocinio de Iñiguez-Rueda, essa tendência é também encontrada nos escritos feministas de Judith Butler, fazendo eco ao apelo crítico de uma postura mais ético-política da produção de conhecimento, percebendo seu limite como capaz de transformação social por si só.

Na esfera dos estudos psicológicos construcionistas, Gergen (2009) sugere a necessidade de desnaturalizar os conceitos e as formas de compreensão com que a investigação psicológica tradicional tem tratado determinados fenômenos. Desse modo, conceitos como emoções, saúde mental, motivação e si mesmo, geralmente considerados fatos psicológicos situados na cabeça dos indivíduos, são colocados em suspenso e passam a ser compreendidos como parte dos processos sociais de interações entre pessoas e o mundo (onde devem ser incluídos o mundo material e imaterial, para fazer jus aos apelos pós-construcionistas). Assim, toda teorização psicológica, seus conceitos e constructos, passam a ser problematizados e se tornam passíveis de interesse crítico analítico. Logo, as explicações dos processos psicológicos se deslocam do interior da mente humana para os processos de interação humana e não humana, para exemplificar com a noção de actantes: "son seres e cosas que participam en un processo de cualquier modo", conforme proposto pela TAR (Íñiguez-Rueda, 2008, p. 23).

 

PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS

Uma vez que a perspectiva construcionista considera que a realidade é uma construção de práticas cotidianas, pode-se considerar a linguagem como condição fundamental para essa construção. A linguagem é uma prática que provoca efeitos, mudanças e manutenções que perpassam as relações sociais e ao mesmo tempo em que produz efeitos também se desenvolve articulando práticas (Mello et al., 2007).

No Brasil, o Núcleo de Pesquisas em Psicologia Social e Saúde, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, vem desenvolvendo uma série de pesquisas construcionistas nesta perspectiva da linguagem em ação, dando ênfase às produções discursivas e produções de sentido no cotidiano. O foco das pesquisas é na linguagem como está sendo usada, linguagem nos processos de interação social, sendo assim considerada como prática social e, por isso, tanto os aspectos perfor-mativos quanto as condições de produção da linguagem passam a ser fenômeno de interesse desses estudos. Os aspectos performativos relacionam-se ao quando, com que intenção e de que modos a linguagem está sendo utilizada, já as condições de produção de sentido correspondem ao contexto social e interacional nos quais essa produção ocorre (Spink, 2010).

Spink (2010) explica que a adoção do termo práticas discursivas, em vez de discurso, diz respeito à preservação deste último termo para designar o uso já institucionalizado da linguagem e de determinados sistemas linguísticos. Desse modo, enquanto a práticas discursivas se referem ao uso da linguagem cotidianamente pelas pessoas para se posicionarem e produzirem sentidos nos seus contextos sociais, o uso da linguagem institucionalizada (discurso) diz respeito a quando falamos com formas próprias de certos discursos hegemônicos do saber, como o médico e o psicológico, por exemplo.

A linguagem, nessa vertente, acaba ganhando contornos que vão além do espaço entre as pessoas e o mundo, ela faz parte das pessoas e faz também parte do mundo, assim o mundo e os objetos dotados de materialidade são mais que meros cons-trutos linguísticos. Por isso, não se trata de negar a materialidade das coisas, mas sim de não se ater a buscar a sua natureza intrínseca, senão de investigar os modos como tais coisas operam num determinado campo de relações (Mello et al., 2007).

Mello et al. (2007) explicitam que nos estudos construcionistas é considerada a condição de possibilidade da linguagem, significando que, ao mesmo tempo em que se aceita o seu potencial para produzir continuidades, manutenções, estabili--dades e maneiras de ser em um contexto social, ela também possibilita processos de ruptura, resistência e mudança. Nesse sentido, a relevância não está no signifi--cado das palavras, mas no contexto no qual são enunciadas, na força que possuem e no efeito que geram, assumindo o sentido foucaultiano de que toda prática discursiva é regulada por relações de poder. Spink (2010) explicita que trabalhar com práticas discursivas não significa procurar estruturas ou formas usuais de associar determinados conteúdos, mas pressupor que os conteúdos se associam de diferentes formas em diversos contextos, portanto os sentidos são contextuais e fluidos e os repertórios são colocados em movimento nos processos dialógicos.

Para Sérgio Aragaki, Pedro Piani e Mary Spink (2014), os repertórios, mais bem definidos como repertórios linguísticos, ganham relevância nas pesquisas construcionistas, pois se referem à circulação e construção de práticas discursivas e colaboram na construção de sentidos sobre determinados assuntos. São repertórios linguísticos os termos, as descrições e as figuras de linguagem que circulam

nos diversos contextos de comunicação de um extrato específico da sociedade, portanto peculiares a esse grupo, estando associado ao conceito bakhtiniano de linguagens sociais. Nesse sentido, os autores sugerem o uso de repertórios linguísticos para: compreender as múltiplas maneiras de falar sobre um determinado tema e as tradições das quais se originam; possibilitar acesso a palavras-chave a serem utilizadas na busca de artigos e documentos; pesquisar a trajetória de um conceito e sua migração para diferentes áreas do saber; compreender o uso de determinados repertórios para construção de fatos e de múltiplas versões da realidade; e compreender os posicionamentos e relações de poder acerca de um tema ou campo específico, seja ele cientifico ou não. Um exemplo que damos, muito simples e útil, é a mudança que a destruição das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2012 (S11), causou no mundo e que é expresso em uma variação de um ditado popular, ao menos no Brasil, porque nos Estados Unidos o contexto social não permitiria. Até aquele momento, o ditado era "errar é humano", logo após a materialização da tragédia começamos a dizer uma nova expressão: "errar é humano, acertar é muçulmano e persistir no erro é americano". Os efeitos causados a partir desse S11, é bom destacar, repercutem até hoje, 2021, e não parecem ter freios que os parem.

As práticas discursivas como linguagem em ação, seguindo os pressupostos do construcionismo social, propõem algumas orientações metodológicas para se ajustar a seus objetivos de produção de conhecimento contextual e socialmente compartilhado sobre um fenômeno social em particular. Portanto, cabe aqui apresentar quais os tipos de fenômenos suscetíveis de ser pesquisados sob a perspectiva das práticas discursivas, quais os objetivos a propor nessas pesquisas e quais os métodos de produção de informação e de análise para a posterior exposição e publicação dos resultados.

A questão do fenômeno a ser pesquisado, sob a proposta das práticas discursivas baseada no construcionismo, permite uma delimitação daquilo a se estudar, reconhecendo os seus limites e possibilidades. Spink (2010) assinala que as pesquisas construcionistas têm uma ênfase crítico-política, pois o objetivo é libertar qualquer fenômeno social que foi produto de um processo essencializador. Assim, o problema ou situação privilegiada pelas pesquisas construcionistas é aquela que "não precisaria ter existido ou ser como é; não é determinado pela natureza das coisas; não é inevitável" (Spink, 2010, p. 14). Isso quer dizer que são objetos de estudo todos os fenômenos sociais naturalizados e instituídos pelos discursos representacionistas? Qual a diferença de uma pesquisa psicológica ou de uma de cunho sociológico, ambas baseadas nos pressupostos do construcionismo, na sua escolha do objeto ou fenômeno a pesquisar?

Para delimitar o foco da pesquisa no âmbito da psicologia social, Spink (2010) propõe o termo práticas discursivas, pois ele sublinha o papel da linguagem na interação social, foco de interesse dos/as psicólogos/as sociais, porém interesse também de outras disciplinas das ciências sociais e humanas. A resposta dessas questões está na mesma base do construcionismo, pois a crítica ao instituído leva em consideração uma crítica aos limites radicais e naturalizados daquilo que se conhece como psicologia e da divisão sujeito-objeto característica das ciências em geral, para responder à exigência epistemológica, paradoxalmente, no campo da Filosofia. Embora seja essa uma discussão para um outro ensaio, poder-se-ia dizer que o interesse da psicologia social, ou de qualquer outra ciência que compartilhe os mesmos princípios do construcionismo na sua perspectiva das práticas discursivas, está focado nas interações sociais visando a transformação social, transformação que pode ter os seguintes seis graus de compromisso, conforme Ian Hacking, que inspira Mary Jane Spink (2010):

1. Histórico: para evidenciar que a história de um fenômeno X foi social e historicamente construído.

2. Irônico: reconhecer que um fenômeno X foi contingente e que po-deria ter sido diferente.

3. Reformista: aceitar a existência de um fenômeno ruim, mas busca-se alterar alguns dos seus elementos para diminuir os seus efeitos negativos na sociedade.

4. Desmascarador: o objetivo é expor as funções extra-teóricas de X fenômeno.

5. Rebelde: opõe-se à postura reformista e assume que esse fenômeno X não deve existir.

6. Revolucionário: busca mudar ativamente o fenômeno X considerado ruim.

Com base nessa classificação é possível localizar objetivos diversos segundo os interesses dos/as pesquisadores/as; daí que para a pesquisa construcionista qualquer fenômeno social estudado vai diferenciar-se, a respeito dos seus objetivos, na sua escolha pelo tipo de compromisso com a transformação social conforme os diferentes graus sugeridos por Hacking.

Até aqui pode-se dizer que tanto a delimitação do fenômeno a estudar quanto os objetivos da pesquisa na formulação de um projeto, seja ele de mestrado, doutorado ou outro, exigem manter uma postura relativista e crítica diante de seus objeto e questão de pesquisa, aceitando o papel da linguagem. Nessa direção, trata-se de uma situação que obriga a assumir uma atitude de reflexão ética permanente, pois essa simultaneidade do relativismo e do reducionismo lembram que as práticas discursivas sempre têm efeitos na interação social, mas que eles precisam ser identificados e denunciados (Spink, 2010). Dessa maneira, responde-se às objeções ao construcionismo social como relativistas e deterministas. Talvez não seja uma resposta satisfatória na sua totalidade e que, afinal de contas, fala de seus próprios limites em relação aos alcances que podem ter outras perspectivas ontológicas e epistemológicas da ciência, por isso é preciso descrever suas caraterísticas metodológicas e sua coerência com os pressupostos já apresentados.

A diversidade de autores/as e posturas no interior do movimento construcionista é refletida nas propostas metodológicas, as quais vão depender das perguntas que pretendem responder nas suas investigações. No caso das nossas pesquisas sobre formação e práticas de psicólogas nos níveis de assistência à saúde no Brasil e na Colômbia, elas inicialmente trazem como propostas teórico-metodológicas o uso de oficinas e/ou entrevistas como estratégias éticas e políticas de coleta de dados; procedimento esse que seria melhor classificado como produção de informações, para ser mais coerente com a ênfase na interanimação simbólica ou negociação de sentidos, tanto dos/as participantes como dos/as pesquisadores/as, como destacam Mary Jane Spink, Vera Menegon, & Bendito Medrado (2014) e Spink (2010), assim como com as coisas que têm também incidência nas práticas sociais (Cordeiro, Curado, & Pedrosa, 2014).

Segundo Spink, Menegon e Medrado (2014), as oficinas facilitam um espaço de coconstrução de sentidos que articula elementos do grupo focal, das dinâmicas do grupo e das rodas de conversa. As oficinas vão se diferenciar do grupo focal porque elas não são realizadas com o objetivo de buscar tendências ou consensos nas falas dos/as participantes, pois levam em consideração tanto as produções de sentidos singulares quanto as grupais, nas suas tensões e contrastes. Em relação às dinâmicas de grupo, as oficinas deixam de lado a produção psicodinâmica e resgatam a criatividade das atividades para o trabalho grupal, enfatizando sua plasticidade. Finalmente, podemos destacar o caráter político e transformador gerado na ação grupal como um ponto em comum entre as oficinas e as rodas de conversa.

Reconhecer o papel ético e político das oficinas significa aceitar que, além de registrar e produzir material para a pesquisa, elas criam um espaço de trocas simbólicas onde os/as participantes possam conviver com sentidos nem sempre harmônicos sobre um tema determinado, o que os mobiliza para o engajamento político de transformação. Essa é apenas uma possibilidade gerada pelas oficinas cujo objetivo inicial está na base da pesquisa, ou seja, é uma possibilidade a mais da pesquisa e um efeito concreto das práticas discursivas e sentidos construídos e compartilhados nesse espaço e momento específicos. Porém não é possível afirmar que todas as pesquisas que usam essa estratégia vão obter como resultados engajamentos políticos dos/as seus participantes ou também dos/as próprios/as pesquisadores/as. Nessa direção, nos cabe não cair na armadilha simplória de escolher o construcio-nismo ou pós-construcionismo como uma saída segura e sem percalços, e sim adotar uma postura eminentemente crítica, interdisciplinar e com compromisso ético político. Como se posiciona Spink (2020b):

[n]ão alçamos voos sem ter primeiro experimentado nossas asas e ter certeza de que elas nos sustentarão nesses voos. Por isso, declino o convite a "descolonizar". Não! Temos que inventar a partir do que temos à nossa disposição. Temos que nos abrir a esse novo mundo que nos convida a abandonar muito mais do que nosso afeto pelo método. Temos que reconfigurar nossa inserção no mundo (p.42).

Para exemplificar as oficinas como estratégia de pesquisa, Spink, Menegon e Medrado (2014), as descrevem no contexto de um estudo sobre usos da linguagem de riscos e formas de subjetivação na modernidade. Para eles, a implementação da oficina deve ser planejada segundo os objetivos e o fenômeno social a estudar, mas antes deve-se definir o tipo de participantes do grupo. Nesse caso, foram convidadas

praticantes de esportes radicais, homossexuais, mulheres ativistas políticas, estudantes de pós-graduação e usuários/as de um salão de beleza. Essa diversidade justifica-se no sentido de promover maior dissenso para a produção de sentidos diversos. As oito oficinas realizadas tinham quatro etapas e para cada uma um formulário:

Etapa 1 Apresentação - Formulário 1 Registro de informações dos participantes

Etapa 2 Associação de ideias - Formulário 2 Registro das palavras

Etapa 3 Memórias de situações - Formulário 3 Recolhimento das tiras e registro das situações

Etapa 4 Sentidos da prevenção - Gravação das discussões

A importância dos detalhes do processo no nível técnico para a sistematização e organização das informações facilita a compreensão da fundamentação teórica que depois é posta à prova no processo de análise. Para esse mesmo exemplo apresentado por Spink, Menegon e Medrado (2014), a análise começa com a contextua-lização do desenvolvimento da oficina, o local, a duração, a dinâmica da discussão, os elementos usados, a distribuição das pessoas no espaço do grupo etc.; em geral, consiste numa inscrição situada do/a pesquisador/a, sem esquecer a análise do conjunto de produções tanto do/a participante como do/a pesquisador/a.

No segundo passo são analisadas as associações de ideias identificadas na etapa (2), verificando a diversidade, identificando as diferenças nas produções de sentido e levando a uma tabela a lista das palavras para articular as produções entre grupos. Num terceiro passo, são analisadas as situações evidenciadas na atividade (etapa 3) segundo as classificações do risco propostas durante a oficina (risco na inocência, risco não pensado, risco deliberado), e são reorganizadas para os diferentes grupos. O quarto momento da análise - lembrando que não se trata de uma sequência linear, pois são só uma descrição e uma organização do processo - consiste na transcrição sequencial das falas e na transcrição integral da discussão para se ter uma visão da dinâmica de aparição delas e do seu conteúdo.

A partir da primeira transcrição são identificados os processos de negociação de sentidos sobre o tema. Para tal, a técnica usada são os mapas dialógicos que apresentam trechos das falas que evidenciam as negociações de sentido sobre o tema da pesquisa. Assim, o procedimento geral da análise das informações produzidas numa oficina, na sua relação com o caráter ético-político das pesquisas baseadas no construcionismo e nas práticas discursivas, visa gerar outros jogos de verdade diferentes dos jogos de verdade e de poder adscritos nos discursos institucionalizados e que têm efeito nas subjetividades das pessoas, na sua vida cotidiana (Spink, Menegon, & Medrado, 2014).

Mary Spink e Helena Lima (2013) sublinham a importância do rigor na explicitação do processo de interpretação, pois dela depende a apresentação dos resultados. Essa discussão metodológica introduz uma questão relacionada aos conceitos de objetividade, de evidência e do real na pesquisa construcionista centrada nas práticas discursivas e nas produções de sentido, o que permite delimitar os seus alcances, considerados previamente pelo/a pesquisador/a. Sob essa perspectiva, a objetividade e a intersubjetividade são processos simultâneos de uma dinâmica em espiral que tem sua base na visibilidade do rigor no processo de interpretação, assumido-o como circular e inacabado, numa pesquisa caracterizada por uma dupla dialogia: o encontro da voz do/a pesquisador/a e do/a participante/ator-rede - momento crucial da produção dos sentidos -; e o encontro do/a pesquisador/a com seus pares acadêmicos, produzindo o sentido da interpretação (Spink e Lima, 2013). Nesta direção, assumindo o aporte das práticas discursivas e produção de sentido de Mary Jane Spink e colaboradores/as citados/as e as repercussões desse aporte no nosso próprio grupo de pesquisa LEV/UFBA, estamos de acordo com Gomes e Lima (2020) quando explicitam o aparente paradoxo que essa postura construcionista pode gerar, enfatizando a dimensão de maleabilidade do rigor das pesquisas qualitativas:

O rigor da produção de conhecimento que defendemos não está baseado na busca de rigidez, mas nos alcances da maleabilidade. Com isso, estamos postulando que a boa qualidade da pesquisa qualitativa, em uma das acepções de rigor científico, desafia a opinião consabida de ausência de maleabilidade e de presença de rigidez e dureza. Este aparente paradoxo só faz sentido quando nos demoramos no exercício de dar visibilidade, explicitar os caminhos e as decisões tomadas, quando lhe atribuímos um caráter constitutivo (p. 1640).

Assim, as práticas discursivas e as produções de sentido no cotidiano não diferenciam entre aquele/a que é pesquisado/a e quem é o/a pesquisador/a, mas levam em consideração, no âmbito da ciência e da produção de conhecimento, a importância da relação do/a pesquisador/a não só com os/as participantes, com eles produzindo sentidos, como também com sua comunidade científica e os objetos presentes nessas interações. Dessa forma, resgata-se as ideias pós-construcionistas, como a que sustenta a TAR, a reflexividade como característica da produção do conhecimento, as consequências da epistemologia feminista, performatividade (Íñiguez-Rueda, 2003), que podem ampliar as visões do construcionismo social e das práticas discursivas. Trata-se da produção de interpretações baseadas no conjunto de experiências, conceitos e teorias para se aproximar dos fenômenos estudados e depois compartilhá-los com os colegas e a sociedade. Vale a pena sinalizar essa reflexão para não esquecer a condição humana e subjetiva do/a pesquisador/a na sua constante e dinâmica forma de produção e interpretação de conhecimento promovida pelas interações sociais, sendo sua atividade científica também uma prática cotidiana.

Outro elemento destacável para a análise e interpretação das informações produzidas no trabalho de campo é o lugar das categorias a priori, as quais estão sempre presentes nas revisões bibliográficas e compreensões teóricas ou experienciais do/a pesquisador/a, não determinando, mas favorecendo o confronto com o que emerge durante as falas e/ou expressões não verbais dos encontros com outros/as (seja em oficinas, entrevistas, grupos focais, revisão de documentos públicos ou filmes etc.). Também é preciso levar em consideração os usos feitos dos conteúdos dos sentidos, material que é registrado e analisado nos mapas de associação de ideias, que para o caso das oficinas foram nomeados como mapas dialógicos e que são parecidos no seu objetivo de análise, ou seja, que visam compreender a dialogia e coconstrução das práticas discursivas na sua interanimação dialógica (Spink e Lima, 2013).

Também, Spink e Lima (2013) descrevem como estratégia metodológica para a análise interpretativa, especificamente de entrevistas, as árvores associativas usadas só para determinadas passagens do material, sinalizando alguns fragmentos que permitem entender a construção ou coconstrução do argumento da fala do/a entrevistado/a. A linha narrativa é uma outra estratégia para a interpretação apropriada e esquematizada dos conteúdos das histórias das entrevistas que tentam levar uma linha cronológica da narrativa, nem sempre exata pela complexidade da história, mas que se complementa com as outras estratégias da análise.

Essa ampla possibilidade de propostas para produzir e registrar informação, bem como de procedimentos da análise nas pesquisas de cunho construcionista, pode ser vista como uma dificuldade ou uma vantagem. No primeiro caso, os/as estudantes

ou pesquisadores/as menos experientes poder-se-iam confundir no momento da escolha dos procedimentos para nortear suas pesquisas, mas para isso as ligações com equipes de trabalho se tornam uma solução. Daí a vantagem está principalmente na abrangência de múltiplos fenômenos com características diversas que precisam de determinadas aproximações, previamente analisadas pelo/a pesquisador/a, evidenciando desse modo a importância dos contatos prévios com os/as participantes e da formulação do problema a ser pesquisado, ou seja, a sua implicação.

No atual cenário mundial diante da pandemia da COVID-19, vivencia-se uma série de mudanças no cotidiano das pessoas e das diversas instituições sociais. De um modo geral, junto a adoção de medidas de isolamento, distanciamento social e quarentena, emergem outras recomendações que alteram substancialmente a rotina de toda população, inserindo hábitos como o trabalho em casa (home office) o uso obrigatório de máscaras, adoção de medidas de higiene mais rígidas, recomendações para o mínimo contato físico que repercute nos modos mais usuais de expressar afeto e produzir vínculos. Diante disso, evidenciam-se crises e embates no campo político, econômico e científico, mudanças na produção e circulação da cultura e da arte. Somado a isso, nota-se a maior exposição de populações mais vulneráveis ao adoecimento e intensificação das condições de pobreza e miséria.

Para os/as pesquisadores/as e participantes dos nossos estudos, que são profissionais de saúde, emerge uma diversidade de novas implicações para o direcionamento da produção e análise de informações. Primeiro, porque estão expostos no seu cotidiano ao constante risco de infecção ocupacional, infecção familiar quando voltam à casa, infecção profissional-usuário/a inerente aos seus processos de trabalho. Portanto, novas questões mais urgentes neste cenário podem ganhar maior relevância em detrimento daquelas que já estavam em processo de investigação, por exemplo, o estigma sobre os/as profissionais de saúde nesse momento, as angústias e medos decorrentes da maior exposição à contaminação e as alterações nos seus processos de trabalho.

No momento atual da pandemia pela COVID-19, nossos planejamentos de pesquisa para a produção de informações foram alterados e o que fora feito no encontro presencial exigiu a mediação da virtualidade para reduzir a possibilidade de contágio do vírus. A pesquisa em psicologia social afeita pelo movimento constru-cionista, especialmente a de base pós-construcionista, leva em conta as contribuições da teoria ator-rede, a qual compreende a realidade como uma construção de humanos e não humanos, de elementos naturais e sociais, todos eles/as atores/as de uma rede heterogênea, pois um/a ator/a é qualquer coisa que tenha efeito, ou seja, que modifique um estado de coisas (Cordeiro, Jacy e Pedrosa, 2014).

Desta forma, as ferramentas, como a câmera, as plataformas digitais, a internet e os equipamentos, como notebooks, smartfones e tablets, estão compondo o novo estado de coisas que mediará a produção de informações e se não forem alvo direto de análise nas pesquisas em questão não poderão ser ignoradas. Para Cordeiro, Jacy e Pedrosa (2014), os objetos são os atores não humanos que, associados aos fatores humanos, são passíveis de análise uma vez que fazem parte da complexidade dos fenômenos psicossociais, participam das ações e, como materialidades, produzem desvios, transformações e diferença, portanto também produzem ação

Se um ator age e ao mesmo tempo é alvo da ação dos outros, isso quer dizer que a interação mediada pelo computador, a câmera, a conexão de internet, o local onde o/a participante está sentado ou em pé, são todos atores-redes heterogêneos que interagem no momento constante da produção e da análise das informações das pesquisas. O interesse da pesquisa baseada na TAR é a compreensão da realidade, da natureza e da sociedade como efeitos construídos a partir das práticas entre atores humanos e não humanos. Contudo, como não perceber a relação que hoje a gente tem com o computador, a mesa, a cadeira, o espaço onde nos conectamos? Esse tempo da COVID-19 nos leva à ampliação das propostas teóricas e metodológicas das práticas discursivas além do construcionismo para nos ajustar aos meios digitais e aos efeitos deles nas nossas práticas de pesquisa.

 

PRODUÇÃO E ANÁLISE DE INFORMAÇÕES DA PESQUISA DE MESTRADO

Nesta seção são apresentadas as pesquisas de mestrado e doutorado como exemplos emblemáticos para maior aprofundamento dos argumentos defendidos no artigo. A pesquisa de mestrado atualmente está em fase de análise das informações e tem como objetivo compreender as práticas discursivas de psicólogos/as sobre o apoio matricial na Atenção Básica de uma cidade do interior da Bahia, adotando como estratégia para produção de dados a realização de entrevistas com as quatro profissionais (Tabela 01). Duas entrevistas já haviam sido realizadas no mês de fevereiro de 2020, anterior ao início da pandemia e das recomendações de medidas restritivas, ficando duas entrevistas pendentes. Em se tratando de um procedimento que envolve momentos dialógicos do/a pesquisador/a com cada participante da pesquisa, a tecnologia foi logo pensada como possibilidade para que esses encontros pudessem ocorrer em meios virtuais, porém se levantou os seguintes questionamentos: isso traria implicações para a qualidade dos dados produzidos? Quais procedimentos éticos a serem adotados?

 

 

De início, foram traçadas estratégias pragmáticas como, por exemplo, incluir a gravação da entrevista online no TCLE, dar orientações sobre local para realização das entrevistas, de modo a preservar o sigilo, bem como utilizar plataformas que garantissem maior segurança dos dados online. Outra possibilidade, devido ao baixo número de participantes, seria a realização de entrevistas presenciais observando protocolos de higiene, distanciamento e uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI's). Os/as participantes das duas entrevistas pendentes acabaram se recusando a participar do estudo devido às dificuldades para agendar encontros presenciais e às inseguranças para dialogarem sobre suas atuações em ano eleitoral municipal.

Um ponto que merece destaque são as implicações do pesquisador responsável pela pesquisa em questão, uma vez que se trata de um psicólogo atuante no contexto de saúde pública, portanto imerso em um campo de materialidades e práticas discursivas comuns aos participantes do estudo. O pesquisador realizou o estudo ao mesmo tempo em que estava trabalhando, ameaçado pela exposição ocupacional a COVID-19, pela presencialidade no Serviço de Saúde, tendo suspeita de infecção ao acompanhar usuário com COVID-19, sendo afastado por esse motivo por 14 dias para eliminar o risco de contaminar colegas, até ter certeza que não estava infectado.

Sobre esse aspecto, o exercício reflexivo acerca do processo de produção do conhecimento se mostra fundamental. Segundo Íñiguez-Rueda (2008) a reflexividade, além de explicitar em que medida o pesquisador se relaciona com as pessoas, objetos e contextos envolvidos no seu trabalho investigativo, ela também

permite modificar el conocimiento de los objetos (...) y permite que como investigadores podamos modificarnos e ir cambiando, es decir, tengamos una capacidad de agencia, o lo que es lo mismo, el poder de utilizar otras posiciones y elementos intersubjetivos de definición y acción que movilicen otros discursos (Íñiguez-Rueda, 2008, p. 22).

O caminho teórico-metodológico traçado para o exercício de reflexividade foi a discussão sobre campo-tema, de Peter Spink (2003). O campo é definido como a situação em que determinado assunto se encontra e engloba a trajetória do autor/ pesquisador para definir seu tema de pesquisa e delinear seu estudo. O autor propõe a compreensão do campo para além de sua materialidade, evidenciando as intencionalidades, pressupostos e interesses que levaram o pesquisador a abordar o assunto dessa maneira, sendo o autor parte do campo tema, opondo a noção de "entrada no campo" como o início da pesquisa.

Um fator importante a ser destacado é o cenário desafiador decorrente da Pandemia da Covid-19 para os/as profissionais brasileiros/as que atuam no contexto da saúde pública, sobretudo nos serviços de Atenção Básica e serviços abertos da Atenção Psicossocial cuja atuação está amparada nos pressupostos da Clínica Ampliada. Esta clínica tem como prerrogativa o trabalho no contexto da coletividade, da educação em saúde e do vínculo entre equipes de diferentes serviços com as populações dos seus territórios como propõem Gastão Campos e Márcia Amaral (2007). Esperava-se que pesquisar sobre a atuação dos/as psicólogos/as nesse cenário possivelmente implicaria numa mudança dos objetivos previamente estabelecidos, uma vez que a pandemia, suas exigências e seus desafios participam da histori-cidade de suas práticas discursivas, inserindo novos termos, conceitos e ideias nos repertórios linguísticos dos profissionais. Muito na direção defendida por Emilly Gomes e Mônica Lima (2020), apontamos que:

[ao] explicitar os ajustes dos objetivos (da pesquisa e de análise) durante o processo de produção da informação e ao incluir conceitos novos ou mesmo descobri-los na compreensão do tema do estudo, estamos imprimindo uma marca de maleabilidade no processo de coconstrução. De modo operacional, significa aceitar que há igual importância em explicitar informações sobre o tempo e o local das entrevistas, o tipo de transcrição, os caminhos para a criação e a reformulação das categorias, como aspectos não meramente ilustrativos (p. 1640).

Entretanto, com a desistência das duas participantes, optamos por manter os objetivos iniciais da pesquisa e sua problemática para compreender como as psicólogas vinham realizando matriciamento num cenário de tensionamento político e econômico, como discutido por Túlio Silva (2018). Então, foi utilizado o mesmo material que havia sido produzido antes do início da pandemia. Os diálogos versaram sobre histórias, intervenções e situações referentes ao momento pré-pandemia, cuja crise do financiamento da Atenção Básica e ameaça de extinção das Equipes de Apoio Matricial reverberaram em tensões e pressão para as profissionais. Embora tenhamos que ressaltar que na organização do processo de interpretação e nos referentes teóricos que estão alicerçando a feitura da dissertação, não tivemos como nos esquivar do contexto atual em que vivemos e seus efeitos para a política de atenção básica em saúde, nas equipes dos NASF etc.

As mudanças de cenário influenciaram as decisões do pesquisador durante a produção de informações diante dos diversos fatores que determinaram os rumos da investigação. Para Íñiguez-Rueda (2008), esse exercício "tiene un componente impredecible y creativo, producto de elementos contingentes, indexicados y circunstanciales del contexto en el que la acción ocurre" (p.22).

 

PRODUÇÃO E ANÁLISE DE INFORMAÇÕES DA PESQUISA DE DOUTORADO

Por sua vez, o objetivo geral do projeto de doutorado é compreender as práticas discursivas e a produção de sentidos de professores/as universitários/as de psicologia, supervisores de estagiários de duas universidades colombianas, sobre a formação e a atuação na sua relação com a saúde mental em diferentes áreas aplicadas. Foi proposto o uso de oficinas para a produção de informações com os/as participantes, como proposto por Spink, Menegon e Medrado (2014). No entanto, como elas podem ser feitas no contexto do distanciamento social obrigatório, da restrição presencial nas universidades e do trabalho remoto no domicílio para os/as precep-tores/as dos estágios supervisionados?

Somada à contingência da pandemia está a imprevisibilidade sobre sua duração, gerando incertezas a respeito das possibilidades de execução do projeto tal como foi concebido inicialmente, contudo a escolha foi optar pela mediação virtual. Por isso, a mudança foi pensada mais a respeito do espaço do que da técnica. Para o nosso caso usamos o aplicativo Google Meet como ferramenta para o desenvolvimento das oficinas, pois os/as professores/as já tinham as condições técnicas para o encontro virtual, contudo não sem dificuldades próprias da velocidade da conexão de internet ou do ambiente. Isso obrigou a um ajuste do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido clarificando o uso da virtualidade, porém mantendo as mesmas condições da gravação que seriam adotadas em encontros presenciais, excetuando-se que seriam também gravações de vídeo. Os/as participantes revisaram o TCLE num formulário de Google, cuja assinatura foi feita mediante a introdução do seu e-mail. A novidade foi a forma das trocas verbais e a linguagem não verbal mediadas pela câmara do computador.

Depois de fazer um piloto desse trabalho virtual para avaliar os resultados e procurar todas as informações mediante essa técnica, foi identificada uma ampla possibilidade de produzir informações, incluindo os objetos que apareciam nos locais onde os/as participantes se encontram nos momentos das oficinas. Nessa experiência fazendo oficinas mediante o Google meet, a intimidade dos/as participantes também fez parte das conversas. Os objetos que apareciam durante o vídeo, o uso do audiofone, os livros atrás da pessoa, tudo isso fez parte da rede heterogênea que tem efeitos nos repertórios linguísticos das pessoas, para elas compartilharem suas experiências e saberes sobre a saúde mental, no caso do estudo de doutorado. Por exemplo, numa das quatro oficinas realizadas, um dos participantes estava passeando o seu cachorro, indicando que precisava disso para descansar das atividades virtuais durante a docência, situação espontânea no momento da oficina que permitiu a troca de diferentes formas de enfrentar a pandemia. Em outro encontro, uma professora sinalizou que ela se sentia mais disposta a se expressar com liberdade porque, ao morar sozinha, a pandemia provocou-a compartilhar coisas que no contexto da universidade não iria fazer com seus colegas, e que isso tinha impactado na sua saúde mental. Assim, afirmamos que a materialidade da oficina virtual representada na tela do computador favoreceu múltiplas expressões, além de nos mostrar que não foi preciso nos ater a falar apenas do tema central da pesquisa, mas também das vivências pessoais contextualizadas ao fenômeno social da COVID-19, contudo sem escapar dos objetivos da pesquisa e sim ampliando o conhecimento sobre a temática.

Coerente com os princípios do construcionismo e da perspectiva das práticas discursivas focada nos repertórios linguísticos, os principais desafios metodológicos no cenário das limitações que impôs a pandemia pela COVID-19 não são das técnicas em si, mas sim aqueles apresentados para a criatividade do/a pesquisador/a,

o modo de ele/a se adaptar às circunstâncias e desfamiliarizar o que tem se dito e feito tradicionalmente nos encontros face a face, como meio exclusivo para a produção de informações. As considerações éticas podem ser pautadas no início da troca, seja individual ou grupal, ou antes mediante uma chamada telefônica ou pelo e-mail. Com isso o construcionismo faz com que as possibilidades para continuar as pesquisas sejam fundamentais, seus princípios concordam em manter posições críticas diante daquelas verdades assumidas como absolutas. O fenômeno da COVID-19 nos mostra precisamente a necessidade de aceitar novos sentidos e significados em decorrência da construção coletiva das práticas das pessoas e das coisas que interagem na rede heterogênea produzindo efeitos na vida cotidiana.

 

... CONCLUSÕES?

Embora o principal debate que introduz o construcionismo se baseie na crítica pelo lugar da verdade na sua relação com o poder que a ciência assumiria - no sentido político de produzir efeitos de transformação social - e no modo como esse discurso científico instituído exerce influência nas interações humanas cotidianas, atualmente esse debate ganha maior destaque pela responsabilidade ética e pelo comprometimento social que os/as profissionais das ciências sociais e da saúde precisam ter para acompanhar as pessoas e suas famílias, incluindo os seus territórios em tempos de pandemia da COVID-19.

A necessidade de conduzir a pesquisa nesse contexto implica num primeiro momento em uma posição de duas escolhas no que tange ao método: 1) um interesse na explicação e abordagem dos fenômenos sociais sem contato presencial entre os/as participantes da pesquisa e os/as pesquisadores/as, optando pelos relacionamentos mediados pela internet; 2) promover espaços de interação, cuidando da redução do contato físico em momentos presenciais, sendo que as decisões nesse caso seriam tomadas de forma consensual e fundamentada no conhecimento sanitário científico. Nessa conjuntura emerge também a pergunta sobre o posicionamento das ciências diante uma crise global para dar as orientações no cuidado da saúde mental das pessoas e comunidades. Várias recomendações e orientações tem ganhado visibilidade nas redes sociais, porém muitas delas não levam em consideração as particularidades das desigualdades sociais que a pandemia tem revelado com maior evidência.

O movimento do construcionismo social e a proposta das práticas discursivas e produção de sentidos de Mary Jane Spink e seus colegas é, como qualquer outra postura cientifica, passível de críticas e debates como se espera de fato das comunidades acadêmicas. A análise e a crítica se fundamentam no conhecimento prévio daquilo a ser criticado; assim, a escolha pelo tema pretendeu, do ponto de vista daqueles/as que aqui escrevem, aprofundar os conhecimentos sobre o modelo teórico-metodológico que fundamenta as suas pesquisas, se não para abandonar o projeto incial, mas para ao menos deixar evidente as condições de possibilidade que sustentam a produção do conhecimento. No entanto sem deixar de reconhecer a permanente reflexão e a flexibilidade para enfrentar os desafios que os eventos inesperados como a COVID-19 nos trazem. Manter abertas questões críticas diante do referencial teórico-metodológico das investigações é constantemente exigido em uma postura construcionista, porém essa é uma atitude transversal às práticas científicas. Tais práticas, quando compreendidas como discursivas e cotidianas, vão se delimitar e se definir pelas técnicas de produção, análise e interpretação da informação identificada nas interações entre pesquisadores/as e participantes, ambos assumidos como integrantes de uma sociedade.

Em outras palavras, uma pesquisa construcionista requer tanto o rigor na descrição dos seus procedimentos de produção e interpretação, como a crítica permanente daquilo que vamos analisando nos seus contextos históricos e culturalmente situados. Neste artigo, resgatamos a postura crítica do construcionismo aplicada ao próprio construcionismo na conjuntura virulenta, política e econômica da pandemia da COVID-19, fenômeno inédito na história recente e que possivelmente produzirá muitas mudanças para práticas futuras na psicologia social.

No entanto, cabe sinalizar que, neste trabalho, conseguimos dar mais contribuições teóricas do que metodológicas. Entretanto defendemos que estas últimas têm que ser criadas na interface do antigo com muita abertura para o novo, articuladas aos princípios que os/as pesquisadores/as defendem; elas não estão vocacionadas apenas para os estudos que lidam com o fenômeno da COVID-19 em si, mas sim, principalmente, onde a pandemia é o contexto de produção de conhecimento sobre quaisquer outros fenômenos psicossociais que estejamos investigando. No entanto, isso também não significa que temos a ingenuidade de querer que todos os estudos sejam automaticamente subjugados a esse ditame, sem o compromisso com a refle-xividade que nos é peculiar. O que estamos advogando é que há de se levar sempre em consideração o contexto sócio-histórico, neste caso é pandêmico da COVID-19, que dificilmente não está incidindo sobre tudo que estamos fazendo ou pensando.

 

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Recebido em: 25/09/2020
Aceito em: 28/06/2021

 

 

DANILO CONCEIÇÃO DE CARVALHO
Psicólogo, Mestrando em Psicologia (IPS/UFBA), Especialista em Saúde da Família (ESPBA), Especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde (Ensp/Fiocruz).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5627-9424
E-mail: daniloconceicaoc@gmail.com
MARICELLY GOMEZ VARGAS
Psicóloga, Mestra em Psicologia (Universidade de Antioquia, Colômbia). Bolsista de doutorado PAEC OEA-GCUB. Doutoranda em Psicologia pela UFBA.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2389-7821
E-mail: maricelly.gomez@ufba.br
MÔNICA LIMA DE JESUS
Professora do Instituto de Psicologia (IPS/UFBA), Psicóloga, Mestra e Doutora em Saúde Coletiva (UFBA), Pós-Doutorado em Psicologia Social (UAB). Programa de Pós-Graduação em Psicologia (IPS/UFBA).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2389-7821
E-mail: molije@hotmail.com

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