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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.38034/nps.v30i70.602 

10.38034/nps.v30i70.602 ARTIGO

 

Grupo "diálogos de paz": atuação intersetorial junto a homens autores de violência contra as mulheres

 

Group "dialogues of peace": performance intersectoral with men authors of violence against women

 

Grupo "diálogos de paz": actuación intersectorial con hombres autores de violencia contra la mujeres

 

 

Thais Helena Ramos Queiroz MourãoI; Kevin Samuel Alves BatistaII

IEscola de Saúde Pública do Ceará - ESP/CE, Fortaleza/CE, Brasil
IIFaculdade Princesa do Oeste - FPO/CE, Crateús/CE, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo reflexiona, a partir da experiência do grupo reflexivo "Diálogos de Paz", realizado em São Gonçalo do Amarante - CE, em 2019, as possibilidades e os desafios na atuação grupal junto a homens autores de violência (HAV) contra as mulheres. O texto abrange o histórico de estudos, trabalhos e intervenção nessa temática, e debate dos referenciais teóricos utilizados entre eles. Em uma perspectiva exploratória qualitativa, o artigo versa sobre o grupo sob análise como proposta promotora de espaços problematizadores da relação entre violência e masculinidades. Assim, verifica-se aproximações entre o método adotado na experiência com o aporte construtivista-narrativista com perspectiva de gênero. Constata-se, então, que o espaço produziu abordagem de compreensão integral dos homens participantes, não os limitando a seus atos violentos. Feitas as análises, considera-se fundamental abordar tal temática de forma preventiva, potencializando uma atuação intersetorial que amplie o debate de gênero pelos diversos âmbitos formativos sociais.

Palavras-chave: Grupo reflexivo; Masculinidades; Violência contra as mulheres; Atuação intersetorial; Atuação psicossocial.


ABSTRACT

The article discusses, from the experience of the reflective group "Dialogues of Peace", held in São Gonçalo do Amarante - CE, in 2019, the possibilities and challenges in group action with men who commit violence (HAV) against women. The text covers the history of studies, works and intervention in this theme, and debates the theoretical references used between them. In a qualitative exploratory perspective, it deals with the group under analysis as a proposal to promote spaces that problematize the relationship between violence and masculinities. Thus, there are similarities between the method adopted in the experience with the constructivist-narrative contribution with a gender perspective. It appears, then, that the space produced an approach of integral understanding of the participating men, not limiting them to their violent acts. After the analysis, considerations are fundamental to approach this theme in a preventive way, enhancing an intersectoral action, which broadens the gender debate by the various social training spheres.

Keywords: Reflective group; Masculinities; Violence against women; Intersectoral action; Psychosocial practice.


RESUMEN

El artículo refleja, a partir de la experiencia del grupo de reflexión "Diálogos de paz", realizado en São Gonçalo do Amarante - CE, en 2019, como posibilidades y desafíos en la acción grupal con hombres de violencia (VHA) contra las mujeres. El texto cubre la historia de los estudios, trabajos e intervenciones en este tema, y analiza los referentes teóricos utilizados entre ellos. En una perspectiva exploratoria cualitativa, trata al grupo bajo análisis como una propuesta para promover espacios que problematizan la relación entre violencia y masculinidades. Así, existen similitudes entre el método adoptado en la experiencia con el aporte narrativo constructivista con perspectiva de género. Parece, entonces, que el espacio produjo un acercamiento de comprensión integral de los hombres participantes, no los limitando a sus actos violentos. Luego del análisis, las consideraciones son fundamentales para abordar este tema de manera preventiva, potenciando una acción intersectorial, que amplíe el debate de género por los distintos ámbitos de la formación social.

Palabras-claves: Grupo reflexivo; Masculinidades; La violencia contra las mujeres; Acción intersectorial; Práctica psicosocial.


 

 

INTRODUÇÃO

A categoria "gênero" tem sido amplamente estudada e difundida nas últimas décadas, devido a sua importância em analisar como os papéis de gênero, definições associadas às feminilidades e masculinidades, são socialmente construídos com interesses de perpetuar relações de poder hegemônicas e historicamente impostas. Scott (1995), Saffioti (2001) e outras autoras abordam a importância dos movimentos feministas, no fim da década de 1960, na luta pelos direitos das mulheres e o questionamento do modelo patriarcal de sociedade, o qual sustenta a dominação masculina. Nesse modelo, os homens se constituem como detentores privilegiados de poder, já as mulheres são subjugadas ao lugar de submissão e dependência, em diversos âmbitos. Beauvoir (1949/2009) problematiza o "ser mulher", ora designada culturalmente pelo termo "fêmea", sendo minimizada aos aspectos biológicos e reprodutivos; ora reduzida a padrões de feminilidade sob um ideal de "mulher". Ambas as perspectivas, constituíram-se como determinantes no processo de definição de papéis, funções e representações sociais das mulheres, assim como embasaram os mecanismos de opressão, submissão e controle do corpo feminino ao longo da história.

Nesses termos a construção da sociedade ocidental teve como base uma visão androcêntrica, tendência essa que supervaloriza as experiências e perspectivas masculinas, considerando a humanidade a partir de tais posicionamentos, tornando-os a norma vigente. Desse modo, o androcentrismo configura-se como um tipo de misoginia, estigmatizando e tratando de forma aversiva e coercitiva tudo que se vincule ao feminino e que remonte à feminilidade, gerando assim desigualdade de gênero, objetificação sexual ou outras modalidades de violência contra as mulheres (Magalhães, 2019; Welzer-Lang, 2001).

A partir da vivência da residência em saúde da família, pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE) junto à equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) do município de São Gonçalo do Amarante-CE, em 2019, foi possível perceber os percalços em acessar a população masculina, pois essa geralmente buscava os serviços da Unidade Básica de Saúde (UBS) apenas em casos de agravos na saúde mental ou quando compunha os grupos de pessoas com comorbidades (hipertensos, diabéticos, entre outros). Essa percepção também foi verificada em outras pesquisas acerca da mesma temática (Lemos et al., 2017; Silva & Duvale, 2018). No entanto o público feminino, maior parcela da população a acessar a UBS, durante a prestação de acompanhamento psicológico apresentou quadros sintomáticos ansiosos e depressivos, associados, em grande maioria, a um contexto de relacionamento abusivo. Dados esses que se verificam recorrentemente em estudos sobre notificação da violência contra a mulher em serviços de saúde, nos quais se identifica o despreparo em serviços da rede de saúde, tanto pela ausência de protocolos apropriados quanto de espaços formativos para os profissionais, para identificar a correlação entre o adoecimento psíquico e o contexto de violência contra as mulheres, gerando uma subnotificação de casos e intervindo apenas no quadro sintomático apresentado, sem uma perspectiva integral do panorama (Alcantara et. al., 2016; Medeiros & Zanello, 2018).

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) (2020), catalogados no Atlas da Violência (IPEA, 2020), evidenciam que entre 2008 e 2018 ocorreram em média 628 mil homicídios no Brasil. Desse quantitativo, 91,8% das vítimas são homens, com ocorrência maior entre os mais jovens, com pico aos 21 anos; e no tocante ao perfil étnico constata-se maior incidência entre homens negros, chegando a 74,0%. Esses dados revelam que a violência é uma ferramenta prioritária utilizada nas relações de gênero e construção das masculinidades, que vitima mulheres, mas também se destaca na relação entre homens, demarcando desigualdades sociais, étnicas e econômicas. Desse modo, a violência, seja simbólica ou em ato, associa-se às noções de masculinidade e de virilidade, portanto não se fundamenta apenas a partir do subjetivo, em seu caráter ontológico, mas deriva de estruturas de dominação construídas historicamente (Bourdieu, 1998/2019).

Consequentemente, a manifestação da violência, principalmente contra as mulheres, não ocorre de forma homogênea, pois assim como as masculinidades se apresentam de formas díspares - devido aos atravessamentos de classe social, grau de instrução, raça, etnia, sexualidade - as mesmas variantes também operam na produção das desigualdades e opressões perpetradas sobre diferentes mulheres e com diferentes intensidades. Como aponta o Atlas da violência (IPEA, 2020), as mulheres mais vitimadas são mulheres negras. Entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios entre as mulheres negras aumentou 12,4%, o número de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%. Além disso, em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Esses dados precisam de atenção para uma avaliação equitativa acerca das várias mulheres sobre as quais incide essa violência, bem como quais são as modalidades de violência predominantes e as intervenções necessárias em cada contexto.

Dessa forma, usar o termo violência contra a mulher, adotando o termo "mulher" no singular, como um grupo uniforme, poderia generalizar esse conceito e descartar os determinantes sociais da violência, igualando assim complexidades e perpetuando novos modelos desiguais de atenção a essa problemática (Batista & Lima, 2017). Neste estudo, optou-se pelo uso do termo violência contra as mulheres, usando o termo mulher no plural, como forma de delimitar e enfatizar a pluralidade das mulheres alvo da violência perpetrada por homens.

No panorama nacional, a Lei N° 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, destacou-se como um marco em prol da luta contra a violência sofrida pelas mulheres, estabelecendo medidas protetivas de urgência, rede de apoio e acolhimento, abrangendo diferentes modalidades de violência (psicológica, moral, física, sexual e patrimonial) e propondo intervenções mais efetivas em relação ao autor da violência (Lei n. 11.340, 2006). Recentemente, houve a promulgação da Lei N° 13.984, de 03 de abril de 2020, que alterou o art. 22 da Lei Maria da Penha, para estabelecer como medidas protetivas de urgência a frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e o seu acompanhamento psicossocial (Lei n. 13.984, 2020). Essa mudança reforça a importância de um trabalho psicoeducativo e reflexivo com os Homens Autores de Violência (HAV), reconhecendo que o ato violento emerge em meio a uma construção patriarcal de masculinidade e de relação afetiva associada à posse, as quais precisam ser questionadas e ressignificadas por esse público, caso contrário, o ciclo da violência perdurará nas demais relações estabelecidas por esse HAV (Sousa, Lopes, & Silva, 2018).

Considerando a conjuntura apresentada, a recente pesquisa se justifica por abordar temáticas importantes a serem debatidas, como: as implicações sociais dos cons-trutos de sexo e gênero; os conceitos arraigados acerca da masculinidade hegemônica e patriarcado; a relação entre esses paradigmas e os índices crescentes de casos de violência contra as mulheres; assim como as estratégias de como lidar com os HAV, muitas vezes vistos apenas sob a perspectiva punitiva.

Dessa forma, o objetivo primordial desta pesquisa é compreender as possibilidades e limites da atuação psicossocial e intersetorial em grupos de homens autores de violência contra as mulheres. Para tal, procedeu-se: o estudo das experiências, bases metodológicas e principais resultados de grupos reflexivos com homens autores de violência contra as mulheres no contexto brasileiro; a discussão da experiência do grupo "Diálogos de Paz", realizado no município de São Gonçalo do Amarante -CE, a partir de um diálogo com os levantamentos teórico-metodológicos realizados anteriormente; e, de forma ampla, análise dos aspectos relacionados às temáticas envolvidas nos processos grupais, tais como relações afetivas, papéis de gênero e masculinidades, violência de gênero e outras que emergiram nas análises.

 

METODOLOGIA

Este estudo apresenta caráter exploratório com uma abordagem qualitativa. A escolha pela abordagem de pesquisa qualitativa deve-se à possibilidade de compreender as prerrogativas, os constructos e os embasamentos teóricos que vêm sendo verificados na condução de grupos com HAV contra as mulheres, assim como de abordar a experiência complexa vivenciada na facilitação de um grupo reflexivo sobre essa temática enquanto pelo programa da Residência Integrada em Saúde, da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), no ano de 2019.

Segundo Minayo (2014), as pesquisas qualitativas trabalham com os significados, as motivações, as implicações, as perspectivas e as ideologias, correspondendo ao âmbito mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, que não podem ser reduzidos ao campo das variáveis e do quantificável unicamente. Assim, no caminho percorrido, optou-se por aprofundar o conhecimento sobre o tema e questionar como o fenômeno vem se desenvolvendo no contexto em estudo a partir de procedimentos de observação participante, nos passos da observação descritiva, comprometendo-se com análise dos dados produzidos (Flick, 2013).

Por tratar-se de um relato de experiência, o método utilizado para compreender e compartilhar questões acerca do grupo "Diálogos de Paz" foi o de sistematização das experiências (Holliday, 2006), que objetiva apropriar-se da experiência viven-ciada e apresentá-la de forma crítica e didática, a fim de que se compartilhe com os outros o aprendido. Seguindo essa prerrogativa, se preconiza a importância de estruturar a experiência com base em cinco aspectos: o ponto de partida; as perguntas iniciais; a recuperação do processo vivido; a reflexão de fundo; e os pontos de chegada. Dessa forma, permite-se compreender as diferentes etapas, os elementos constantes e ocasionais, as linhas de trabalho, as coerências e as contradições existentes ao longo da vivência. Assim, como dados para a sistematização, foram utilizados os registros de diário de campo e das observações realizadas que continham descrições sobre o aporte teórico e metodológico do grupo, assim como os direcionamentos temáticos dos encontros realizados e apreensões geradas durante a realização o processo grupal.

O grupo reflexivo, denominado "Diálogos de Paz", para homens autores de violência (HAV), cujo planejamento e embasamento teórico-metodológico serão detalhados nesta pesquisa, ocorreu no município de São Gonçalo do Amarante-CE, no período de abril a julho de 2019. O grupo foi facilitado por psicólogas da rede assistencial e psicossocial do município. Em relação aos participantes, o grupo foi composto por dez homens encaminhados judicialmente por responderem a processos criminais associados a violações da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Eles eram encaminhados ao grupo por meio de medida inicial a ser cumprida de forma concomitante às medidas protetivas de urgência, estas direcionadas às mulheres que foram vítimas de violência. Como pré-requisito para participar do grupo, a juíza da Comarca de São Gonçalo do Amarante - CE considerava se o HAV era réu primário e se o ato pelo qual foi indiciado não era um crime hediondo, estes delimitados pela Lei 8.072/90. Caso cumprisse ambos os critérios, os homens eram direcionados à participação no grupo. Nesse processo, foram realizados doze encontros, dois dos quais ocorreram individualmente, os outros dez de forma coletiva. Ressalta-se que esta pesquisa se encontra em consonância com as resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), as quais delimitam diretrizes e regulamentam os aspectos éticos a serem considerados em pesquisas envolvendo seres humanos.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção apresentaremos os resultados deste estudo, assim como as discussões que advieram enquanto desdobramentos dos dados coletados. Nesse intuito, primeiramente foram abordadas algumas experiências com grupos de homens, associadas ao debate de gênero, que ficaram em maior evidência e potencializaram o debate acerca da masculinidade. Posteriormente, discorremos sobre as metodologias utilizadas em alguns grupos com HAV, assim como as correlações entre os métodos e a conceituação de masculinidade desenvolvidos por essas vivências grupais.

Ademais, abordamos a experiência do grupo reflexivo "Diálogos de Paz", supracitado ao longo da metodologia, relatando acerca das ações realizadas durante os encontros, da metodologia utilizada e dos referencias teóricos correlacionados às intervenções propostas ao longo da efetivação do grupo. Por fim, foram trazidas reflexões decorrentes do relato da experiência, no âmbito da análise do grupo, de forma pontual, por tratar-se de uma ação pioneira no território, assim como, do contexto macro, de compreensão da importância do debate das temáticas de masculinidade, gênero e violência contra as mulheres para a construção de políticas públicas efetivas nessa temática.

Masculinidade em pauta: histórico de experiências grupais com homens e debate de gênero

A compreensão da necessidade de se atuar junto a homens para trabalhar temáticas associadas a masculinidades, gênero e violência - principalmente quando esta última ocorre contra as mulheres - levou a iniciativas que começaram a ser pensadas e aplicadas, de forma ampla e com maior projeção, a partir da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994. De forma paralela, um trabalho pioneiro que também se destacou foi desenvolvido em Manágua, na Nicarágua, pelo Centro de Comunicación y Educación Popular (CANTERA, 2001), uma associação não governamental com fins humanitários que, desde 1988, atua no fortalecimento do protagonismo de mulheres em caráter comunitário. Nesse intuito, ao iniciar suas ações com o público feminino, pautando temáticas como papéis de gênero e empoderamento, utilizando como instrumento a educação popular, surgiram inquietações acerca da necessidade de transformar o perfil de masculinidade verificado socialmente, já que o aumento da autonomia das mulheres se contrapunha aos padrões estabelecidos culturalmente, gerando conflitos familiares. Nesse contexto, Cantera realizou, em 1994, o primeiro encontro nacional de intercâmbio e reflexão sobre a masculinidade entre homens e, a partir de 1995, foram desenvolvidos sistematicamente cursos sobre masculinidade e educação popular.

No contexto brasileiro, destacam-se algumas instituições que vêm se engajando na promoção do debate de gênero, de violência contra mulheres e de masculinidades: o instituto PAPAI, vinculado à Universidade Federal de Pernambuco, associando o estudo de gênero, a saúde e a educação; a organização ECOS (Comunicação em Sexualidade), ONG direcionada aos estudos na área da sexualidade, do direito e da educação (Aguayo, Casals, & Píriz, 2015); e o Instituto NOOS, atualmente localizado em São Paulo, que também atua desde o fim dos anos 1990 com intervenções relacionadas à violência intrafamiliar e de gênero, por meio de campanhas, ações de sensibilização e facilitação de grupos reflexivos de gênero (Beiras & Bronz, 2016).

Grupos com Homens Autores de Violência (HAV): metodologias e aplicações

Um levantamento de programas de atuação junto a HAV contra as mulheres, realizado em âmbito nacional por Beiras, Nascimento e Incrocci (2019), identificou a existência de 41 grupos distribuídos entre 15 estados brasileiros. Durante a análise dos projetos, foram verificadas concordâncias sobre a necessidade de processos avaliativos do programa e o uso de intervenções grupais prioritariamente; também se constatou que muitos programas são governamentais, possuem vínculos com órgãos judiciais e a participação dos homens nesses projetos, em sua maioria, não é voluntária. No âmbito das divergências encontradas entre os programas, além das relacionadas ao funcionamento, que ocorrem principalmente no tocante à frequência e ao tempo de duração do grupo, há também a diversidade epistemológica que embasa a abordagem utilizada no acompanhamento ao HAV.

Sobre as epistemologias existentes, destacam-se as mais difundidas e utilizadas, como o modelo psicopatológico, embasado na perspectiva biomédica de adoeci-mento, no qual se considera o autor da violência contra as mulheres como um indivíduo que possui um transtorno de conduta ou personalidade, construindo assim uma forma de tratamento clínica e psicoterapêutica. Outra abordagem que também se apropria de uma visão mais direcionada à saúde é a do modelo cognitivo-com-portamental, atribuindo à violência um caráter funcional. Sob essa perspectiva, o tratamento ocorre ao trabalhar os pensamentos e crenças considerados "incorretos", a habilidade de autocontrole e as distorções cognitivas. Há também o modelo pró-feminista, de enfoque psicoeducativo, que a partir de um embasamento sobre violência de gênero e ancorado em valores feministas considera os atos violentos como decorrentes de padrões de comportamento abusivo estruturais. Dessa forma, estabelecem grupos educativos, utilizando-se da metodologia de Paulo Freire para trabalhar tais comportamentos (Antezana, 2012).

Além dos citados anteriormente, há o modelo de enfoque construtivista-narra-tivista com perspectiva de gênero, que apresenta entre seus eixos basilares o cons-trucionismo social; este compreende as apreensões individuais acerca da realidade como sendo mediadas pela linguagem e originadas nas práticas sociais. Dessa forma, as individualidades seriam amparadas por narrativas socialmente reforçadas e potencializadas, em detrimento de versões e perspectivas estigmatizadas. Nesse panorama, a metodologia reflexiva possibilita a construção de narrativas mais críticas e conscientes das divergências e desigualdades existentes (Beiras & Bronz, 2016). Esse aporte teórico se aproxima dos estudos de gênero ao abordar os discursos de poder culturalmente produzidos e reproduzidos, evitando, assim, uma apropriação do discurso de gênero em aplicações práticas de atuação despolitizadas e redu-cionistas, as quais compreendem o debate de forma binária e restrita ao ambiente doméstico. Portanto, utiliza-se como referência a perspectiva pós-estruturalista de desconstrução do feminino e do masculino, na qual Butler (2007), em consonância com Foucault (citado por Butler, 2007), destaca-se ao realizar intersecções entre conceitos como poder, sexualidades e linguagem. Segundo a autora, gênero possui caráter normativo, desenvolvido socialmente e reproduzido a partir de uma perfor-matividade de gênero, que constrói diferenciação de corpos e implica na perpetuação das relações de poder historicamente praticadas.

Diante das várias perspectivas de compreensão e abordagens sobre grupos com homens autores de violência contra as mulheres, faz-se necessário analisar os procedimentos desenvolvidos no grupo "Diálogos de Paz" para, assim, discutir suas bases teórico-metodológicas, seus objetivos, os processos que o orientaram, bem como seus resultados frente a proposta executada.

Grupo Reflexivo "Diálogos de Paz": experiência intersetorial e psicossocial junto a HAV

A proposta do grupo reflexivo "Diálogos de Paz" surgiu por iniciativa da juíza da Comarca de São Gonçalo do Amarante-CE, que havia iniciado um trabalho similar a este no município de Quixadá, onde havia atuado anteriormente, em parceria com o grupo de extensão Violência e Gênero da Unicatólica de Quixadá, projeto este vinculado ao curso de graduação em Psicologia. Durante a experiência anterior, foram realizados grupos reflexivos com homens autores de violência contra as mulheres, sendo esses encaminhados pelo Fórum para cumprimento de medida.

Já na comarca de São Gonçalo do Amarante-CE, houve a proposta da juíza de prosseguir o trabalho junto aos serviços de assistência social, CREAS, e de saúde mental, CAPS e NASF, do município, a fim de fomentar uma parceria entre o âmbito judiciário e as instituições citadas anteriormente. No prosseguimento, houve momentos de organização e planejamento do grupo. Após essas reuniões iniciais, que ocorreram durante os primeiros meses de 2019, foi realizada uma capacitação com a coordenadora do grupo de extensão Violência e Gênero, em abril de 2019, contando com partilha de experiências do grupo iniciado em Quixadá, elucidação sobre seu aporte teórico e metodológico, além dos desdobramentos e resultados percebidos ao longo do processo de implementação do projeto.

No tocante à escolha do ambiente para a realização do grupo, foi pontuado como importante realizar os encontros em um espaço neutro, sem vinculações com as instituições promotoras do grupo, pois estas poderiam representar uma perspectiva punitiva penal, paradigma este do qual a equipe condutora do grupo buscou se distanciar. Assim, o espaço do CREAS foi descartado devido ao fato de já existirem grupos com mulheres que estavam ou estiveram em situação de violência, incluindo muitas que estariam sob medida protetiva, impossibilitando, assim, esse contato entre ambos os grupos. O espaço do CAPS, associado às noções de saúde e adoecimento mental, foi evitado devido à possibilidade de fomentar um olhar patologizante acerca desse grupo, considerando os comportamentos apresentados pelos HAV como de ordem apenas biomédica e psicopatológica, gerando assim uma estigmatização dos componentes do grupo. Por fim, o espaço do Fórum também foi questionado devido à possibilidade de se reforçar um caráter obrigatório e punitivo do projeto, já que, a priori, a participação no grupo era uma medida a ser cumprida como componente do processo judicial no qual eles estavam sendo indiciados. Dessa forma, a escolha por um ambiente dissociado de tais prerrogativas de compartimentação do olhar acerca desse grupo se constituiu como consonante da abordagem conceitual teórica adotada.

Certamente as escolhas realizadas refletiram as emergências junto aos dispositivos públicos arregimentadas para o trabalho em questão. Enfrentou-se um percalço logístico que muito tem a ver com certa incompreensão do trabalho com HAV junto às instâncias públicas e sociais de modo geral (Billand & Molinier, 2017). A discussão não impediu o prosseguimento do grupo, mas aponta que ainda há necessidade de maiores introduções dos trabalhos com HAV nas políticas públicas de Saúde, Assistência Social e Educação nos níveis municipal, estadual e federal.

Como primeira etapa, procedeu-se uma entrevista inicial individual, um espaço de escuta no qual os participantes puderam falar suas perspectivas acerca dos acontecimentos pelos quais foram indiciados; também foram abordadas questões referentes ao contexto familiar, histórico do relacionamento atual e acontecimentos vinculados às diversas formas de violências que pudessem ter sido vivenciados por eles ao longo de suas vidas. Esse momento foi importante, pois após a denúncia realizada contra eles, esse foi o primeiro momento de escuta no qual eles puderam trazer suas perspectivas e versões dos fatos. Nessa ocasião, alguns esclarecimentos foram dados acerca de como se daria o grupo, como o caráter de sua proposta de abordagem reflexiva e não punitiva.

Após esses procedimentos preliminares, o grupo iniciou em abril de 2019, contando com a participação de 10 homens, moradores de São Gonçalo do Amarante, que respondiam processos judiciais referentes à violação da Lei Maria da Penha e foram convocados a participar do grupo reflexivo supracitado. Foram realizados doze (12) encontros, com duração entre 1h30 e 2 horas cada, ao longo de doze (12) semanas, os quais ocorreram majoritariamente no auditório da prefeitura.

O primeiro encontro consistiu em esclarecimentos sobre o propósito do grupo e seus limites com o campo jurídico. Foi exposto que a iniciativa grupal pretendia formar um espaço de narrativas e perspectivas espontâneas dos participantes sem pretensões avaliativas ou sanções por parte das facilitadoras. Foi indicado aos participantes que a lista de frequência do grupo seria a única informação repassada à juíza da comarca, já que a participação no grupo se constituía como medida legal a ser cumprida. No entanto, dados sobre as conversas e discussões geradas não seriam acompanhados de forma direta ou repassados integralmente. Ademais, não seria gerada uma avaliação da participação desses sujeitos, assim como tais informações não comporiam seus processos judiciais.

Seguindo a metodologia proposta, os primeiros encontros foram direcionados a compreender como os participantes se percebiam em relação a gostos, preferências, vínculos familiares, metas e projetos de vida, a constituição destes desde a infância até os dias atuais. O intuito do levantamento destas temáticas era a facilitação de um processo de autoconhecimento acerca de como a rotina, o lazer, o trabalho e os modos de vida atuais foram se construindo e quais os sentimentos associados a esses âmbitos da vida. Foram utilizadas atividades semelhantes ao recurso dos disparadores de conversas, que fomentam o debate acerca da temática proposta, como apontam Beiras & Bronz (2016).

Entre as atividades realizadas nessa etapa, duas geraram bastantes desdobramentos. Na primeira atividade, realizada em um dos encontros, eles deveriam escolher alguma imagem que representasse sua infância, entre as imagens havia locais, esportes, famílias, atividades laborais, entre outras. Nessa ocasião, as imagens relacionadas à família e ao trabalho predominaram, seguidas de relatos sobre como o provimento de renda para a família foi um fator que surgiu desde cedo para muitos, assim como a ausência do pai e a necessidade de dar suporte à mãe, tanto financeiramente como por meio da divisão de responsabilidades, como o cuidado de irmãos mais novos.

Dessa forma, verifica-se a interrupção da infância por uma inserção abrupta em meio à lógica do mundo do trabalho e das responsabilidades familiares e domiciliares, contexto esse naturalizado pela estrutura patriarcal vigente, na qual masculinidade associa-se à necessidade de provisão familiar, em que meninos são vistos apenas em seu aspecto biológico e lhes são atribuídas funções de adultos (Arroyo, Viella, & Silva, 2017).

No encontro seguinte, foi lançada a proposta de uma atividade lúdica, na qual eles deveriam desenhar como, durante a infância/adolescência, eles se viam no futuro, ou seja, rememorar como naquela época eles imaginavam que estariam na vida adulta. Apenas um dos participantes não se sentiu à vontade para realizar a atividade, preferindo apenas falar. Durante a partilha das produções, muitos relataram que se imaginavam trabalhando e com uma família. Na ocasião, foi possível dialogar sobre como eles haviam idealizado esses empregos e famílias, assim como as diferenças e semelhanças com a realidade atual deles, e como havia sido sua participação, seja ativa ou passivamente, para que esse panorama ideal estivesse distante ou próximo. Essa atividade possibilitou que os participantes fizessem uma autoa-valiação sobre suas escolhas ao longo da vida, e concluíssem se (e como) haviam se distanciado daquele quadro idealizado. Nesse aspecto, há uma aproximação com a proposta de grupo reflexivo, apresentada por Beiras & Bronz (2016), que entre seus objetivos se propõe a ser um espaço de problematização e questionamento acerca das realidades vivenciadas individual e coletivamente, permitindo que haja uma rememoração e um resgate dos conhecimentos adquiridos ao longo da história individual de cada participante do grupo, a fim de promover um olhar crítico e reflexivo acerca das vivências que emergem ao longo das atividades e ações propostas.

Nos encontros seguintes, foi abordada a percepção dos participantes sobre os papéis masculinos e femininos que foram sendo constituídos ao longo de seus históricos de vida. A conversa abrangeu os tipos de vínculos paterno, materno e familiar existentes, e as atribuições que entendiam como "funções masculinas" e "funções femininas" nos diversos contextos sociais. Nesse momento, percebe-se como a metodologia utilizada relaciona-se com a proposta de grupo reflexivo de gênero, pois propõe uma reflexão pessoal de seus participantes sobre seu próprio gênero e suas relações de gênero (Beiras & Bronz, 2016).

Entre as atividades geradoras desses questionamentos, houve a "Frases de efeito", na qual foram suscitadas afirmações como: "lugar de mulher é na cozinha", "homem não chora", "mulher minha não trabalha", dentre outras. Cada participante deveria escolher uma dessas frases e discorrer se concordava ou não com ela e por quê. Outra atividade foi a "divisão de atribuições", na qual os participantes deveriam falar o que consideravam serem ações ou características que haviam aprendido serem de mulher ou serem de homem. Durante esses momentos, foi possível refletir sobre como algumas falas construídas historicamente e culturalmente, creditadas como verdadeiras, quando verificadas no cotidiano deles criavam discrepância. Ao falar sobre masculinidades, é preciso afirmar que essas não existem de forma independente, mas sim relacional (Scott, 1995). Assim, percebe-se que ao longo do tempo, com as mudanças na definição de feminilidade, decorrentes de lutas feministas, são gerados questionamentos ao padrão de masculinidade socialmente imposto. A partir dessa prerrogativa, gerar reflexões sobre os papéis de gênero aprendidos permite rearranjos e reconfigurações.

Posteriormente, foram trabalhados os sentimentos e as expressões de emoções aprendidas pelos participantes como sendo coerentes, possíveis e/ou indevidas ao longo de suas vidas. Uma das atividades propostas envolveu um "baralho dos sentimentos", composto por 30 (trinta) cartas, em cada carta havia sentimentos ilustrados (raiva, alegria, medo, tristeza, saudade, amor, entre outros). Todas as cartas foram dispostas viradas para baixo, de forma que a escolha fosse aleatória. Cada participante podia escolher três cartas e posteriormente partilhar situações nas quais eles já houvessem lidado com aquele sentimento. Durante os relatos, alguns trocaram cartas entre si, pois relataram dificuldade em falar sobre certos sentimentos. Nessa ocasião, se percebia uma maior dificuldade em falar sobre lembranças tristes ou de raiva. Mas, no decorrer do encontro, começaram a ficar mais à vontade, conforme percebiam que o grupo, de forma geral, não reagia ao relato de forma vexatória, mas sim de forma respeitosa. Esse ambiente se deu pela conduta das facilitadoras, as quais fomentaram o processo de escuta, sempre assegurando o espaço de fala de cada um, sem interrupções, bem como o acolhimento das opiniões divergentes. Instigaram ainda os participantes a se posicionarem de forma empática às demandas trazidas individualmente, reafirmando a importância da utilização de perguntas enquanto ferramentas promotoras de diálogo grupal (Beiras & Bronz, 2016). De forma geral, nesse encontro, se propôs a desmistificação da afetividade apenas associada à feminilidade. Discutiu-se que a falta de vinculação e expressão das emoções e afetos por parte dos homens gera adoecimentos, principalmente psíquicos, prejudicando os vínculos interpessoais, produzindo insegurança e autodes-valorização, assim como apontam Guimarães & Diniz (2017). Assim, promoveu-se espaço de reflexões acerca de como acessar os sentimentos poderia ser uma via de facilitar vínculos e promover autocuidado.

Os encontros seguintes trabalharam a temática da violência, como esta se constituía na expressão dos sentimentos e se manifestava de diversas formas. Levou-se como atividade "situações-problema" por meio de exemplos e relatos de histórias de mulheres que sofreram violência, coletados em sites e redes sociais. Os participantes deveriam identificar os diversos modos de violências sofridos a partir das modalidades de violência abrangidas pela Lei Maria da Penha (psicológica, social, sexual, agressão física e patrimonial), as quais haviam sido apresentadas anteriormente. Em outra atividade proposta, algumas letras de músicas populares que apresentavam frases associadas a relações abusivas, violências ou objetificação das mulheres foram debatidas pelos participantes. Nessas ocasiões, os participantes puderam refletir sobre a linguagem da violência cotidiana contra as mulheres, reproduzida nem sempre de forma intencional ou consciente. De acordo com Bourdieu (1998/2019), a dominação masculina é operada através da violência simbólica - que é suave, insensível e invisível às vítimas - e constitui-se como carga a ser levada cotidianamente nas relações dos homens com outros homens, de forma competitiva, e contra a feminilidade.

Por fim, nos últimos encontros e durante a conversa individual de feedback final, abordou-se a percepção da construção de futuro, assim como o projeto de vida, a partir do que havia sido partilhado nos encontros. Esse espaço, que se assemelha à proposta de síntese dos encontros (Beiras & Bronz, 2016), possibilitou um momento de análise global e processual acerca das experiências e reflexões geradas ao longo dos encontros grupais. Falas associadas ao desejo de construir outros tipos de relacionamentos, sem violência e com diálogo, foram produzidas. Alguns participantes, nessa ocasião, conseguiram pensar em projeto de vida, em retomar os estudos ou em reduzir o consumo de álcool. Possibilidades essas que afirmam a amplitude de perspectivas proporcionadas por um grupo reflexivo.

Possibilidades, percalços e constructos percebidos no processo grupal

O grupo reflexivo "Diálogos de Paz" foi facilitado por psicólogas dos serviços psicossociais e de assistência social do município de São Gonçalo do Amarante-CE, diferenciando-se de outras experiências grupais com HAV no contexto nacional, que em muitos casos contam com facilitadores homens e com profissionais vinculados a apenas um serviço específico, comumente instituições governamentais associadas ao meio jurídico.

Em relação à facilitação apenas por mulheres, notou-se inicialmente, por meio de relatos dos participantes, receios de fazerem críticas às suas antigas companheiras, já que aquelas poderiam reagir de forma punitiva. Essa impressão que foi sendo desfeita ao longo dos encontros. Ressalta-se também que a facilitação realizada por mulheres permitiu que os participantes se disponibilizassem a escutar e refletir sobre temáticas a partir de outras perspectivas, assim como dialogar e praticar comunicações não violentas, mesmo quando havia discordâncias de opiniões.

Durante a realização do grupo, foi percebida a importância de espaços que gerem reflexões acerca dos papéis de gênero, de masculinidades e de violência, principalmente com a população masculina, que em seus processos de aprendizagem e socialização reproduzem, sem maiores questionamentos, o modelo patriarcal. Kimmel (1998) descreve que essas relações de poder, nas quais há supremacia do masculino em detrimento do feminino, tornam-se invisíveis para os detentores do privilégio. Dessa forma, possibilitar que essas contradições e desigualdades sejam dialogadas com o público masculino, gerando implicação ativa e criticidade sobre o tema, é um meio de torná-las visíveis e desnaturalizadas.

O fato de as facilitadoras do grupo não escolherem o CREAS, o CAPS ou o Fórum para a realização dos encontros ressalta uma dificuldade institucional percebida pelas profissionais, a qual expõe uma compreensão de como as políticas públicas instauradas no panorama atual apresentam uma perspectiva de intervenção ainda muito direcionada, quase que exclusivamente, às vítimas de violência, e atuando em relação ao autor de violência sob análises patologizantes ou punitivas. Dessa forma, pontua-se que a realização de próximos grupos poderia explorar esses outros espaços institucionais de garantia de direitos, ampliando o debate sobre a importância da atuação psicoeducativa e reflexiva junto aos HAV.

Sobre a frequência dos participantes, único dado que era entregue para controle jurídico, havia um acordo com o grupo sobre a possibilidade de até três faltas justificadas. Inicialmente, havia uma preocupação bastante acentuada entre eles sobre esse quesito, pois o consideravam como fator determinante em suas avaliações do processo judicial no qual estavam inseridos. No entanto, ao longo dos encontros, essa foi sendo uma pauta minimizada e percebeu-se uma assiduidade na frequência dos participantes, inclusive alguns solicitaram a continuidade dos encontros. Não houve nenhum participante que se evadiu do grupo.

No tocante à intersetorialidade, ressalta-se a importância da atuação integrada da rede de serviços que acompanham as demandas de violência contra as mulheres, abrangendo saúde, educação, assistência social, justiça, organizações não governamentais, entre outros, pois torna-se possível uma atuação paralela e abrangente, tanto em relação ao fortalecimento da autonomia de mulheres em situação de violência, como também na promoção de espaços reflexivos sobre gênero com os HAV. Ademais, a integração dos serviços auxilia nos encaminhamentos a serem realizados, se necessário, desses homens a outras modalidades de acompanhamento, já que, durante a realização do grupo, é possível despontarem outras demandas a serem trabalhadas individualmente.

Nessa perspectiva, ressalta-se a importância da formação comunitária e a articulação territorial fomentada pela Escola de Saúde Pública do Ceará, que preconiza em seus aspectos teóricos e metodológicos mobilizar o profissional de saúde residente a conciliar a construção de sua práxis nos serviços de saúde com o aporte conceitual que embasa o Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto rede não apenas institucional de equipamentos, mas que se constrói em meio a diversos determinantes sociais (ESP, 2012). Dessa forma, a articulação entre o teórico e a práxis, promovida pelo programa de residência, possibilita compreender a importância de um olhar macro para as problemáticas de saúde verificadas na atenção primária em saúde. Percebe-se, portanto, que a formação em saúde deve levar em consideração a intersetorialidade nas diversas práticas de cuidado e promoção de saúde. Essa condução intersetorial foi percebida também no manejo grupal em questão.

A necessidade de espaços formativos contínuos também foi verificada como um fator essencial, haja vista a fragilidade dos vínculos empregatícios, o que interfere na rotatividade de profissionais na facilitação dos grupos, gerando, assim, a necessidade de capacitações contínuas. Ainda sobre o aspecto da precarização do trabalho, ressalta-se que as facilitadoras do grupo em análise atuavam em outros serviços do município e se disponibilizaram para a realização da atividade de forma voluntária, necessitando articular e redistribuir seus horários na agenda dos seus serviços de origem. Dessa forma, uma potencialidade para a manutenção dos grupos seria a formação de uma equipe direcionada exclusivamente para o acompanhamento a esse público, já que se configura como um encaminhamento proveniente da promulgação da Lei 13.894, que institui a efetivação de ações psicoeducativas direcionadas aos HAV.

Em relação à metodologia utilizada, houve um caráter híbrido entre a experiência em Quixadá e o manejo intersetorial da experiência de São Gonçalo do Amarante, havendo divergências com metodologias grupais consolidadas com HAV. Ademais, percebe-se a necessidade de atualizações nos estudos sobre temáticas de gênero e de masculinidades, as quais podem ampliar as abordagens do grupo "Diálogos de paz". Essas fragilidades também podem ser percebidas de forma ampla entre outros programas de atuação junto aos HAV, visto que essas iniciativas estão em ampliação há menos de 30 anos em âmbito global. Já no contexto nacional, foram potencializadas apenas após a implementação da Lei Maria da Penha, em 2006 (Beiras, Nascimento, & Incrocci, 2019).

 

CONCLUSÃO

A ampliação das iniciativas de grupos direcionados a homens autores de violência contra as mulheres deverá se tornar uma realidade no contexto brasileiro, após a promulgação da Lei 13.894, a qual preconiza a obrigatoriedade de acompanhamento psicossocial e espaços psicoeducativos como medida protetiva de urgência em casos de violação da Lei Maria da Penha. No entanto, no cenário atual não se percebe um número considerável de iniciativas públicas ou privadas direcionadas a essa demanda e que abranjam a amplitude do território brasileiro. Portanto, para garantir o direito das mulheres conquistado em legislação, requer-se a ampliação de atuações como essas na desconstrução do machismo e da ideologia patriarcal de masculinidade hegemônica, rompendo assim com o ciclo da violência contra as mulheres.

Buscou-se, a partir dos assuntos elencados e trabalhados ao longo deste estudo, contribuir na elaboração de metodologias ativas e interventivas para grupos que atuarão junto a homens autores de violência contra as mulheres nas realidades brasileiras. Nessa perspectiva, o modelo de enfoque construtivista-narrativista com perspectiva de gênero foi o aporte teórico-epistemológico que mais se aproximou dos procedimentos adotados pelo grupo "Diálogos de paz", foco deste estudo. Isso ocorreu porque se objetivou construir um grupo reflexivo no qual houvesse o acolhimento dos discursos e apreensões subjetivas, mas compreendendo-as em sua inserção socialmente construída, a qual está vinculada à perspectiva de gênero, que por sua vez debate as estruturas sócio-históricas que fomentam os padrões normativos de masculinidades e feminilidades, questionados durante o processo grupal com HAV.

Enquanto foca-se apenas na atuação junto aos agravos das situações de violência, perpetuam-se os problemas estruturais. No tocante ao debate de gênero, as relações de poder existentes continuam fortalecidas. Remediam-se apenas casos isolados e acumula-se uma demanda reprimida, prejudicando as populações de mulheres oprimidas pela estrutura patriarcal. Esse enfoque nas situações-problema gera uma elevada sobrecarga aos serviços socioassistenciais e jurídicos que recebem os casos agravados e precisam ofertar suporte para remediar os danos causados. Portanto, intervenções, debates, rodas de conversa e ações devem ser implementados na rede comunitária de serviços (escolas, unidades de saúde, centros de convivência), atuando, assim, de modo preventivo no intuito da construção de novas masculinidades, que contemplem o fortalecimento emocional e afetivo, a igualdade de gênero e a promoção de formas de comunicação e vinculação não violentas. Nesse aspecto, a experiência enquanto psicóloga residente foi fomentadora desse olhar ampliado em saúde em um panorama histórico, cultural, social e territorial. Dessa forma, planejar intervenções no enfrentamento à violência contra as mulheres e promover discussões acerca da atenção à saúde da mulher e do homem é compreender tais populações e questões imersas em temporalidade e historicidade. Assim, faz-se necessária uma rede de esforços para que se promova uma discussão ampla das estruturas sociais que precisam ser (des)construídas e (re)pensadas.

 

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Recebido em 29/09/2020
Aceito em 09/06/2021

 

 

THAIS HELENA RAMOS QUEIROZ MOURÃO
Psicóloga graduada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Especialista em Saúde da Família e Comunidade pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE). Atua enquanto psicóloga social junto ao terceiro setor, com famílias em situações de vulnerabilidade e violência urbana. (http://lattes.cnpq.br/4845257616420194)
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3005-4088
E-mail: thais.helena1401@gmail.com
KEVIN SAMUEL ALVES BATISTA
Psicólogo. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua também como psicólogo clínico, social e comunitário e professor universitário. Debate os temas de homens e masculinidades; relações de gênero; relações familiares e Psicologia social e comunitária.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1965-6897
E-mail: kevin.sab@gmail.com

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