SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 issue70Group "dialogues of peace": performance intersectoral with men authors of violence against womenPsicólogas(os) clínicas(os) e as demandas de mães e pais em litígio author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo May/Aug. 2021

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

O colapso da lucidez no filme "meu pai"

 

 

Maria Luiza Bambini Vasconcellos

Instituto NOOS, São Paulo/SP Brasil

 

 

No longa Meu Pai, o diretor Florian Zelller adapta sua própria peça teatral de tal forma que, do lugar de expectadores, escapamos involuntariamente da mera observação do filme, como quem ouve e vê uma história, para uma experimentação do tema em questão, ou seja, a loucura, a demência; assim, parece quase inevitável a referência aos clientes que nos chegam, suas famílias e também nós mesmos nos caminhos de nossa finitude.

Desde Maturana e Varela (2001), com seus estudos sobre nossa estrutura e as interações que ela desenvolverá, passando por Bertalanffy (1975), com a Teoria Geral dos Sistemas, por Watzlavicz, Beavin e Jackson (2007), com a Pragmática da Comunicação Humana, e chegando nos conceitos novo-paradigmáticos de intersubjetividade com Esteves de Vasconcellos (2009), complexidade e instabilidade como fonte de nova ordem, Meu Pai convida a uma revisão, a uma atualização do trabalho terapêutico, a reconstruções de significados.

Numa incrível montagem de roteiro, do próprio Zeller com Christopher Hampton, portas, armários, cadeiras, louças, figurinos, enfim, cenas inteiras compõem a importância de tudo que nos cerca na composição daquilo que nos tornamos, daquilo que somos. Tudo se impõe como objetos de fora que constituem o nosso de dentro, evidenciando os lugares que ocupam nas nossas narrativas, a partir das quais, é como se passassem a ser objetos dotados de subjetividade.

Todos esses elementos, antes periféricos, nesse contexto ganham centralidade, tanto quanto os personagens; eles aparecem e desaparecem, desorganizando o expec-tador de modo devastador, até que este seja tomado pela angústia de não entender o que está acontecendo e desejar retomar o começo do filme (ou seria da vida?).

Nesse desamparo, visitamos breves ilhas de poesia produzidas pelo afeto entre pai e filha que acontecem nos momentos em que são capazes de acessar os repertórios que partilham. Como reter essa possibilidade? Como impedir a descontinuidade?

Tempo e espaço, antes em costumeira e desavisada parceria, parecem se evitar então, e se tornam geradores de desordem, resultando numa fragmentação da experiência humana; se confundem, se sobrepõem, se antecipam, retrocedem e avançam, nos remetendo aos possíveis escaninhos da memória disfuncional que acomete o personagem Anthony - vivido brilhantemente por Anthony Hopkins - por onde começamos a circular, experimentando seus temores, enquanto tentamos compreender e ordenar os acontecimentos.

Essas mudanças (ou seriam distrações?) começam a produzir uma desorientação que nos lança na vivência da loucura. Parece não se tratar de perda de memória, embora essa perda possa estar presente, mas sim de uma desarrumação nos registros. É como se estivéssemos numa sala de armários, com uma infinidade de gavetas e prateleiras de diferentes tamanhos - os armários de nossa vida - onde ladrões, procurando o que roubar, além de subtrair importantes objetos de nossa predileção, misturaram todo o restante que elegemos e arrumamos cuidadosamente durante anos. O legítimo sentimento de estar sendo roubado, demanda então que se esconda os pertences mais queridos, e isso se dá numa tal intensidade, que é possível acabar por ocultá-los de si mesmo.

Logo nos vemos carentes de uma inadiável premência em criar pontos ou cenas de referência que possam nos situar. Esse é o móvel da cozinha onde se passou a cena tal? Essa é a blusa que ela vestia quando chegou das compras? Esse sofá estava nessa posição? Será que essa é mesmo a filha dele? Experimentamos a vulnerabilidade! Vulnerabilidade que coloca em questão o que antes era referência de confiança.

Anthony, assim como nós (ou seríamos nós, assim como ele?) olha pela janela para verificar se ainda mora no mesmo lugar; busca o quadro que pende sobre a lareira para se certificar de que está onde sempre morou... Em que ou em quem se pode confiar? Onde está a alucinação e onde mora a verdade? Emergem as memórias fora de ordem, uma coletânea que, ao invés de situar, lança no vazio, constrange, humilha, convoca o calar-se, instala o colapso. A concha da solidão produz um recuo e surge como proteção, como aconchego.

Essa triste realidade se assemelha a uma folha de papel que já foi plena, onde se escrevia uma história a muitas mãos; hoje, porém, ela parece ter sido dobrada, ter sofrido uma interferência que produziu oposição, e o que está num verso não consegue acessar o registro que vai sendo feito no outro lado. Onde essa conexão? O lado em que a filha escreve sua história não é capaz de olhar o outro lado sem perder o próprio, e este, por sua vez, também está repleto de sofrimento e perdas: está em curso um luto; um luto em vida; o luto da lucidez eterna que se presumiu estar instalada naqueles que nos criaram, que nos precederam, que nos apresentaram o mundo e que amamos justamente por tudo isso.

Constitui-se um momento crítico de inversão e estranhamento; um tempo de resgatar o belo para alimentar a fragilidade desconhecida, mas também um tempo inevitável de se colocar diante do que não foi possível olhar antes desse pôr do sol que se apresenta. Ele nascerá novamente amanhã?

Numa cena fugaz, possível de ser esquecida, a possibilidade da morte como intervenção libertadora desse desaparecimento homeopático do Sujeito amado, daquele que (re)conhecemos, pleno e lúcido, passa quase despercebida, incógnita, assujeitada também. Por outro lado, a morte que não se confirma na cena seguinte nos traz alívio, além de dúvida sobre sua real existência. É como se estivéssemos num emparelhamento com os personagens que, pensando no inominável, sequer puderam se aproximar da hipótese, distanciando-se rapidamente sem sequer poder registrá-la. Uma pérola da linguagem cinematográfica.

Meu pai nos convoca a tudo isso e mais. Há muito mais que ainda está na ordem do indescritível e precisará de tempo - ele novamente! - para achar seu lugar e ganhar nome. O filme carrega a evidência do quão imperioso significa, em alguns desses momentos carregados de dúvida, ter um interlocutor conhecido e confiável por perto. Como expectadores desse mundo que derrete, nos tornamos metáfora encarnada e, nessa experiência, construímos a compreensão da necessidade constante da presença de um diálogo seguro, da proximidade de um alguém para quem se possa indagar se viu ou observou o mesmo que nós: um alguém que acolha, ordene e tranquilize um futuro que parece aterrador!

Antes, numa época que já se pode chamar de antigamente, se dizia que nossos velhinhos estavam caducando. Ouvimos, certamente, várias narrativas desse tipo no âmbito familiar, e as caduquices compunham histórias até de riso, mas não de angústia! Histórias de afeto contadas carinhosamente sem desqualificar ou lamentar o triste destino do referido enlouquecido! Talvez porque esses velhinhos, como eram nomeados os idosos desse antigamente, não tenham sido apartados

do convívio familiar, talvez porque tenham sido acolhidos por quem podia e queria, por terem feito parte da mesa de aniversários e casamentos, ora atentos, ora cochilando, sempre entendendo muito pouco, mas cercados de netos e bisnetos, de histórias conhecidas e outras nem tanto, de cenários já estranhos, mas ainda vagamente reconhecíveis ... Talvez!!

Valeria pensar no nosso universo atual como um período em que há a exigência da juventude eterna? Seria essa a exigência, aliada às incríveis demandas de moradia, de trabalho, de relações, disso, daquilo e de tudo o mais que constrói nossas vidas, o que inviabiliza aos nossos idosos continuarem em partilha conosco?

Novamente um (con)texto que nos convida a pensar sobre o lugar da loucura que vai ganhando nomes e rótulos como demência, senilidade, Alzheimer, déficit. Diagnósticos que, mais do que nos fornecer subsídios de cuidado, chegam para justificar o desagregador apartamento do convívio, o acolhimento em instituições que podem significar o inverso, o absoluto desacolhimento.

Do lugar que ocupo como elemento de nossa humanidade, não pude evitar a associação do (des)acolhimento dos representantes de uma das pontas da nossa Linha do Tempo, moradores do final do Ciclo da Vida a que todos estamos sujeitos, assim como o das crianças, representantes da outra extremidade, com a impossibilidade produtiva dessas camadas da população na sociedade de economia selvagem em que vivemos. Nossos filhos e netos, assim como nossos pais e avós são contingentes que ainda ou não mais geram riquezas. Apenas consomem.

Do lugar de terapeuta de família, sob o conjunto teórico construcionista, essa humanidade que nos agrega convoca reflexões sobre aqueles que nos chegam vi-venciando esse sofrimento. Não é possível olhar a(s) pessoa(s) isoladamente de seu contexto histórico social se acreditarmos que nossa percepção de mundo - e portanto, dos que nele se constituem - é resultado de nossas crenças, processos e construções conjuntas. Consequentemente, olhar o sofrimento de um indivíduo separadamente, o reduz à patologização, além de culpabilizar e desamparar a si e ao seu entorno. Assim, enquanto convidados a tomar parte de novas composições sobre a realidade de nossos clientes e seus sistemas significantes, o trabalho terapêutico se desdobra em resistência e reconstrução dos sentidos que vivencia-mos e nos animam.

Resistir e reconstruir é preciso!!

 

REFERÊNCIAS

Bertalanffy, L. v. (1975). Teoria Geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Esteves de Vasconcellos, M. J. (2009). Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Papirus.         [ Links ]

Maturana, H. & Varela, F. (2001). A árvore do conhecimento. Palas Atena.         [ Links ]

Watzlavicz, P.; Beavin, J. H., & Jackson, D. (2007) Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. Cultrix.         [ Links ]

 

 

MARIA LUIZA BAMBINI VASCONCELLOS
Pedagoga e Terapeuta de Família e Casal formada pelo Instituto Sistemas Humanos, é associada do Instituto Noos e co-fundadora do PertenSer, projeto que pensa na construção de caminhos de pertencimento para as "improdutivas" crianças de nosso tecido social (www.pertenser.com.br).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0868-2598
E-mail: iza.vasconcellos@uol.com.br

Creative Commons License