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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

 

ECOS

 

Psicólogas(os) clínicas(os) e as demandas de mães e pais em litígio

 

 

Denise Custodio Nunes de Araujo; Maria Gabriela Mantaut Leifert

Instituto NOOS, São Paulo/SP Brasil

 

 

Ler e ter o privilégio de ouvir e conversar com o autor é um enorme prazer, é fugir ao óbvio, adicionar mais nuances a nossas interpretações. Foi o que nos aconteceu durante a última reunião do Instituto Noos, em maio, com a presença de Analicia Martins de Sousa, uma das autoras, junto a Fernanda Herminia Oliveira Souza, do artigo intitulado Psicólogas(os) clínicas(os) e as demandas de mães e pais em litígio, publicado na revista Nova Perspectiva Sistêmica n° 69 (abril de 2021).

Com visão critica e foucaultiana, a autora nos conscientizou do que nós, psicólogos e terapeutas de casal e familia, não podemos fazer quando procurados por familias que estão em litigio. Ficou evidente que as armadilhas nesse campo são muitas. É necessário, portanto, tomarmos cuidado para não sermos capturados por ideias fechadas, maniqueistas ou binárias de bem e mal, que reduzem e limitam o discurso, ocasionando prejuizo para as familias. Tais ideias integram um contexto de intensa judicialização e patologização das relações humanas e nos tornam reféns das lides juridicas.

A autora relata como as mudanças no exercicio da parentalidade e a crescente judicialização dos conflitos têm levado casais em litigio a procurar profissionais para elaboração de laudos que os ajudem na sustentação de suas demandas judiciais. Os genitores procuram psicólogos para o acompanhamento da criança, em seguida pedem laudos, para instruir processos judiciais. Muitos são os psicólogos que atuam em consultórios particulares denunciados no CRP por produzirem pareceres, diriamos nós, ingênuos; são levados pelo senso comum e não possuem o conhecimento técnico da psicologia juridica para tanto. Algumas vezes, psicólogos redigem pareceres ouvindo somente o relato de uma das partes, sem sequer conhecer a outra, entendendo como verdade uma narrativa única. Em muitos casos, esses profissionais acolhem como clinica uma demanda que é, na verdade, juridica. Por isso, precisamos ficar atentos às nossas respostas a esse tipo de pedido. Nesses casos, Analicia Sousa e Fernanda Souza reforçam, em seu artigo, que é necessário que o genitor que não pediu o atendimento ou parecer seja chamado e ouvido para que o profissional possa analisar os acontecimentos de uma forma completa e imparcial, apreendendo a complexidade das dinâmicas relacionais.

Outro incremento importante do litigio se dá com a alegação de alienação parental, feita por um dos genitores contra o outro. Nesse argumento fica muito visivel a polarização das partes, na medida em que coloca o genitor alienador como algoz e o alienado como vitima. Se os psicólogos clinicos não têm preparo em psicologia juridica, podem ser facilmente conduzidos a produzir laudos que agravam o conflito e não atendem os interesses dos menores. Um parecer despreparado pode acarretar rótulos e injustiças com consequências incalculáveis. É indispensável um diálogo interdisciplinar entre psicologia clinica e juridica que evite esse quadro. Afinal, como sabemos, a linguagem não é inocente.

Lembramos de um exemplo atendido na clínica. Uma família cuja mãe, diagnosticada com esquizofrenia, mas em plenas condições de exercer a maternidade, teve suas filhas afastadas do convívio familiar após um parecer da psicóloga escolar das crianças que a referia como sendo incapaz de cuidar das mesmas. As meninas chegaram a ser abrigadas e o processo de destituição de guarda trouxe um sofrimento atroz a todos os envolvidos, tanto pais, quanto filhas. Foi necessário um longo trabalho terapêutico junto à família, a sua rede de apoio e à Vara da Infância e Juventude para esclarecer as reais condições daquela situação e reverter os danos causados pelo posicionamento precoce da escola.

A racionalidade jurídica e a psicologia de senso comum, portanto, retiram a complexidade das relações e levam ao incremento da lide judicial, produzindo e aumentando o litígio.

Manter o olhar no cuidado com a criança e na saúde das relações e ter um trabalho delicado, que procure questionar narrativas saturadas de judicialização e as micro práticas de poder, abre espaço para um diálogo e, por isso, é uma busca que deve ser constante em nosso trabalho. As capturas são muitas: podemos nos transformar em agentes punitivos, ou agentes de relações mais saudáveis. Como atuaremos?

O artigo de Analicia Sousa e Fernanda Souza nos ajuda a refletir melhor sobre a pergunta, pois nos coloca diante de um dilema ético. Pensamos que essas atuações não se encerram em um debate individual. Muito mais do que isso, elas fazem parte de um debate político e social: psicólogos são responsáveis por micropolíticas que podem ou não propiciar transformações. Questionar o nosso posicionamento diante de temas tão espinhosos nos ajuda a buscar informação adequada, para não cair de modo desavisado nas demandas do litígio.

Um caminho possível para contornar essas armadilhas é buscar uma atuação mais dialógica. Dar ouvidos à polifonia dos envolvidos e de sua rede de relações, permitindo que as diferentes vozes conversem, não como diagnósticos e rótulos fechados, mas como perspectivas e narrativas constituintes de um todo complexo. Trata-se de convidar pais e mães, juntamente com seus representantes legais, a abrir conversações sobre o melhor caminho a seguir em relação aos melhores interesses da criança e, portanto, da família.

 

 

DENISE CUSTODIO NUNES DE ARAUJO
Advogada, Terapeuta de Casal e Família. Integra a Equipe de Saúde Mental Noos e é assistente no Curso de Introdução às Práticas Dialógicas e à Abordagem do Diálogo Aberto.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1658-3621
E-mail: deniseliesegang@hotmail.com
MARIA GABRIELA MANTAUT LEIFERT
Psicóloga Clínica, Terapeuta Casal e Família, Terapeuta Intercultural, Mediadora e Coordenadora Equipe de Mediação Noos.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6086-2302
E-mail: mgmleifert@gmail.com

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