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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

 

ESTANTE DE LIVROS

 

Torto arado e o encontro com o Brasil profundo

 

 

Leonora Corsini

Instituto NOOS, São Paulo/SP Brasil

 

 

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

São Paulo: Todavia, 1ª edição,2019-262 p

 

"Suas ilusões são uma parte
de você, como seus ossos, carne e memória"
William Faulkner, Absalão, Absalão!

Torto Arado, premiado romance do autor baiano Itamar Vieira Junior e que se tornou um extraordinário fenômeno editorial, é um livro que nos convida a muitas e variadas leituras. Ler esse livro foi, para mim, uma experiência de encontro e uma revelação da dimensão profunda de nosso país-continente, e também do profundo e silenciado de nós mesmos. Como disse o próprio autor em uma conversa da qual tive oportunidade de participar1, escrever Torto Arado foi, para ele, uma maneira de se conectar com uma história negada, com uma história das suas próprias origens que foram se perdendo nos caminhos errantes de seus antepassados.

Gostaria de começar falando um pouquinho mais de Itamar Vieira: ele é geógrafo e antropólogo, obteve seu doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, desenvolvendo pesquisas etnográficas sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro; é também analista do INCRA, órgão responsável pela regularização de terras e assentamentos rurais e pela reforma agrária no Brasil. Torto Arado, que havia começado a escrever ainda jovem, bem antes do doutorado, parece ter sido um exercício de dar voz às histórias e às experiências de pessoas que ele foi encontrando em suas pesquisas etnográficas, especialmente no Recôncavo Baiano e na região da Chapada Diamantina. Arrisco traçar aqui um paralelo entre William Faulkner, que escreveu muitos de seus romances em um cenário imaginário - o Condado de Yoknapatawpha, uma ficção sobre o sul profundo dos Estados Unidos - e a obra de Itamar Vieira, que desenvolve sua ficção em um cenário real e concreto, pano de fundo para histórias de pessoas de carne e osso que ele foi encontrando ao longo de seus estudos de campo e que revelam o nosso Brasil profundo.

As personagens mulheres têm uma presença muito forte em Torto Arado: as irmãs Bibiana e Belonísia, Crispina e Crispiniana e também mulheres como Donana, Salustiana, Maria Cabocla, Miúda, vozes que vão se alternando e trazendo suas histórias de força, determinação, coragem, liberdade e também de violência, violência exercida sobre seus corpos num contexto marcado por uma sociedade patriarcal e hierarquizada. A cena inicial que envolve as duas irmãs Bibiana e Belonísia anuncia o tema-chave que atravessa toda a trama; uma delas não pode mais falar e a outra se encarrega de interpretá-la e ser a sua voz. Voz e Silêncio/O Som e a Fúria2. Por um tempo não sabemos quem é a muda e quem é a falante, só na metade do livro isso é revelado, o que me fez refletir que "avocalidade" não é a mesma coisa que não ter voz - o corpo também fala, se não através da palavra, através do toque, do cuidado, na linguagem do afeto. A irmã que não tem voz em alguns momentos, repetindo um gesto do pai, deita-se na terra e seu silêncio lhe permite escutar os sons do mundo, que se tornam assim a sua voz, confirmando a conhecida máxima de que é impossível não comunicar (Watzlawick, Beavin, & Jackson, 2007).

A relação entre as irmãs - que alterna momentos de complementariedade e rivalidade - se insere em um contexto em que as relações familiares, e também as relações com a comunidade, são essenciais. Aliás, em Água Negra, as relações de parentesco não são apenas de sangue: aqueles que são curados e cuidados pelo guia-espiritual e curador Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, passam a ser também seus filhos, atestando mais uma vez a importância do cuidado e dos laços de solidariedade, elementos vitais para pessoas sem qualquer direito à terra e à moradia. Essas pessoas recebem permissão dos donos de terras e fazendas para ali permanecerem em troca de trabalho, tendo como único pagamento poder construir precárias casas de pau-a-pique que se desfazem com as chuvas (construções de tijolos eram proibidas) e manter um pequeno roçado para se alimentarem. E se isso vale para aquele contexto descrito no romance, vale igualmente para pensarmos no quanto o que descrevemos como "família" vem ganhando ao longo do tempo muitos novos significados que transcendem aquele modelo tradicional da família nuclear como, por exemplo, família é quem cuida de mim3, família é quem vive junto sob o mesmo teto, família é uma comunidade a qual escolhemos para pertencer...

Para grande parte do público leitor de Torto Arado, tudo o que é ali narrado é de certo modo estrangeiro, mas ao mesmo tempo há algo familiar e afetivo, que talvez explique o enorme sucesso do livro que é hoje campeão de vendas no Brasil. O próprio Itamar Vieira Junior sugere, em uma entrevista, que esse interesse pode derivar do fato de a narrativa ser construída com sentimentos que fazem parte da experiência humana, nossa "humanidade compartilhada", como diria o terapeuta e pesquisador das terapias colaborativas e dialógicas Peter Rober.

Outro gancho com a nossa prática com famílias que a leitura de Torto Arado possibilita é pensar em como as histórias de nossos antepassados são, muitas vezes, estrangeiras, literal e metaforicamente falando. Não é raro acontecer, quando construímos o genograma de uma família, surgirem histórias de migrações, exílios, casamentos interétnicos e interculturais, viagens, errâncias, segredos, preconceitos, exclusões. O livro clássico Mudanças do Ciclo de Vida Familiar4, no qual muitas/ os de nós aprendemos a técnica do genograma, já passou por várias atualizações e expansões para contemplar essas contínuas mudanças, até chegar ao trabalho mais recente de Monica McGoldrick (2003), no qual ela inclui os elementos raciais, culturais e de gênero nas construções de significados para "vida familiar", convidando-nos, ao mesmo tempo, a refletir sobre como a prática clínica com famílias é igualmente atravessada e pressionada por desigualdade racial, cultural, sexual e de classe.

E por falar em elementos raciais, Torto Arado também toca na temática do racismo estrutural e histórico no Brasil e das nas consequências do seu silenciamento e invisibilização através do tempo. Os moradores da fazenda Água Negra não se veem como pretos, escravos ou descendentes de escravos; tampouco a palavra "qui-lombola" faz parte de seu vocabulário. Miúda, a velha peregrina, prefere se autode-finir como índia, "porque os pretos não são bem-vistos, tiveram que deixar a terra;

O Som e a Fúria é o título de um dos mais importantes romances de William Faulkner, publicado pela primeira vez em 1929.

Família é quem cuida de mim. Narrativas de identidade de jovens adultos criados em abrigo, livro de Helena Maffei Cruz publicado pela editora do Instituto Noos, em 2008, que traz uma importante contribuição para expandir os significados de família.

A primeira edição do livro de Betty Carter e Monica McGoldrick é de 1980 (a primeira edição brasileira saiu em 1995) e de lá para cá seguiram-se várias atualizações e ampliações do conceito de ciclo de vida familiar (nas edições de 2005, 2011, 2015).

índio não deixa a terra, índio é tolerado" (Vieira, 2019). Para as pessoas retratadas no romance, a abolição da escravidão não fez muita diferença, elas continuavam circulando como nômades pelo território, cruzando desde o Rio São Francisco, passando pela Chapada, até o litoral em busca de um lugar que oferecesse abrigo, trabalho, água, alimento, num regime de servidão. A construção de uma escola, decisão resultante de negociações com os donos de Água Negra, foi um marco nas vidas dos personagens. Como que evocando Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido (1972/2016), a partir do acesso à educação os moradores/trabalhado-res vão tomando consciência da condição de exploração e de exceção em que vivem e da necessidade de lutarem por seus direitos, por justiça e uma vida digna. Quilombo, que é sinônimo de resistência, é também um nome para designar a luta, como confirma Bibiana nas páginas finais: "a nossa história, de sofrimento e luta diz que nós somos quilombolas" (Vieira, 2019).

Outro tema que chama atenção em Torto Arado é o significado particular da experiência da loucura. Na cosmovisão do Jarê, sincretismo religioso que reúne elementos das religiões africanas e indígenas e que constitui praticamente mais um personagem importante na narrativa, a loucura é um rito de passagem. Isso se revela no momento em que Zeca Chapéu Grande, um dos personagens centrais, "vira onça" - virar onça como uma metáfora para a loucura, um trânsito entre mundos como no conto de Guimarães Rosa (1962), Meu tio, o lauretê. Após "desonçar", depois de ser curado por sua mãe, Donana, Zeca se torna o Curador da comunidade, incorporando espíritos, "encantados" ou "encantadas", tratando os enfermos com suas ervas, rezas e plantas.

Toda a narrativa de Torto Arado é lindamente construída por Itamar Vieira Junior, entremeada pela riqueza da nossa cultura, dos nossos mitos de origem, das nossas lendas e dos heróis silenciados. E ele a encerra de maneira primorosa e poética, trazendo a voz da Encantada - aquela que não tem começo nem fim - como a última voz de sua história: "Sobre a terra há de viver sempre o mais forte".

 

REFERÊNCIAS

De Haene, L. & Rober, P. (2016). Looking for a Home: An exploration of Jacques Derrida's notion of hospitality in family therapy practice with refugees. In I. McCarthy & G. Simon (editors) Systemic Therapy as Transformative Practice. Everything is Connected Press. http://eicpress.com/statp.htm.         [ Links ]

Freire, P. (2016) Pedagogia do Oprimido. 60ª edição. Paz e Terra. (A primeira edição brasileira é de 1972)        [ Links ]

McGoldrick, M. (2003) . Novas abordagens da terapia familiar. Raça, cultura e gênero na prática clínica. 1a edição. Editora Roca.         [ Links ]

Rosa, J. G. (1962). Meu tio, o lauretê. Estas Estórias. José Olympio Editora, 1962.         [ Links ]

Watzlawick, P.; Beavin, J.; & Jacson, D. (2007) Pragmática da comunicação humana. Cultrix, 2007.         [ Links ]

 

 

LEONORA CORSINI
É associada ao Instituto Noos, onde coordena a clínica de famílias e integra o Conselho Gestor. Além dos atendimentos e supervisões de atendimento a famílias e casais, é coordenadora e docente no curso Aportes Filosóficos e Conceituais para uma Prática Dialógica que, em sua nova edição, vem discutindo o racismo, as lutas antirracistas e as relações étnico-raciais. Psicóloga e terapeuta de família, é mestre em Psicologia Social e doutora em Serviço Social, com Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI-IBICT/UFRJ). Além da prática clínica, vem se dedicando, desde 2003, à pesquisa que conecta migrações, cidadania e direitos humanos, tendo como atual foco de interesse a interface entre acolhimento e integração de migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados e a prática clínica/ saúde mental a partir de abordagens e práticas colaborativas-dialógicas.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7192-0432
Lattes Id: http://lattes.cnpq.br/2320835399322168
E-mail: corsinileonora@gmail.com

 

 

1 Agradeço a Helion Póvoa e Elisa Cunha, pesquisadores integrantes do NIEM - Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios, por terem organizado sessões de conversa em 15 e 22 de abril de 2021 que criaram a oportunidade de conhecer e conversar com Itamar Vieira Junior.

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