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Acta Comportamentalia

Print version ISSN 0188-8145

Acta comport. vol.20 no.4 Guadalajara  2012

 

ARTIGOS

 

O pensar: comportamento social e práticas culturais1

 

Thinking: Social behavior and cultural practices

 

 

Emmanuel Zagury Tourinho

Universidade Federal do Pará (Brasil)

 

 


RESUMO

O artigo discute o comportamento de pensar, sob a ótica da Análise do Comportamento. Iniciando com a refutação do individualismo epistemológico cartesiano, o artigo sugere que não apenas o dualismo deve ser rejeitado, mas também que os fenômenos cognitivos devem ser reconhecidos como compreendendo relações do indivíduo com seu ambiente. O conceito de eventos privados é introduzido para salientar que tende a desviar a atenção de relações comportamentais, ao mesmo tempo em que pode ser útil para indicar que certas contingências culturais promovem um responder de observabilidade restrita, que pode ser parte das redes de relações que definem as cognições. Tais redes são então discutidas considerando-se a centralidade do comportamento verbal e os possíveis componentes culturais. Aponta-se que os recursos conceituais e metodológicos necessários para a identificação dessas relações ainda encontram-se em desenvolvimento. Apoiando-se nas proposições de Glenn para o estudo da seleção cultural, sugere-se que tais recursos contemplem a consideração de metacontingências, de modo a explicar circunstâncias em que o pensar compreende relações que são o produto da seleção nesse nível.

Palavras-chave: Cognição, pensamento, práticas culturais.


ABSTRACT

The paper discusses the behavior of "thinking", from the standpoint of Behavior Analysis. Begining with the refutation of Cartesian individualistic epistemology, it suggests not only that dualism should be rejected, but also that cognitive phenomena should be acknowledged as comprising relationships between an individual and his/her environment. The concept of private events is introduced to assert that it tends to distract from behavioral relations, while it may also be useful to stress come cultural contingencies that promote responding with reduced observability, which may be part of a network of relationships that define cognitions. Such networks are discussed in the light of the central role played by verbal behavior, and possible cultural components. It is pointed out that the needed conceptual and methodological resources to identify those relations are under development. Based on Glenn's assertions concerning the study of cultural selection, it is suggested that those resources should comprise the approach of metacontingencies, in order to explain the circumstances under which thinking comprises relations that have been selected in that level.

Keywords: Cognition, thinking, cultural practices.


 

 

A presente análise comportamental do pensar parte da crítica de Ryle (1949/1984) à reificação dos processos psicológicos, e das proposições de Skinner (e.g., 1938, 1945, 1953/1965) e de Kantor (e.g., 1923, 1966, 1974) acerca do caráter relacional (ou interacional) de tais fenômenos. No lugar do pensamento (substância), ocupamo-nos do pensar (ação humana em um contexto social, ou simplesmente relação/interação). A indagação sobre as relações/interações humanas que definem o pensar orienta o enfoque pretendido, mas, como é próprio de toda análise que toma como objeto um conceito da linguagem ordinária, remeter às relações comportamentais constitui apenas parte dos esclarecimentos iniciais necessários.

O caráter polissêmico do conceito de pensamento, ou do pensar, em seu uso coloquial e mesmo na literatura psicológica, conduz a fenômenos que compartilham poucas propriedades funcionalmente relevantes (cf. Andery & Sério, 2003). Do ponto de vista psicológico, o conceito remete genericamente às chamadas funções cognitivas, mas mesmo essa referência é precária para demarcar um objeto com respeito ao qual possamos confrontar explicações. Isso torna necessário circunscrever mais acuradamente o objeto da presente análise.

Para não correr o risco de transitar para uma questão de menor importância ou centralidade para a Psicologia e para a cultura de nosso tempo, tomarei como objeto do presente trabalho um problema que faz sentido em diferentes contextos humanos: o pensar como processo de construção e validação de juízos sobre a realidade. Sobre esse problema, tecerei algumas considerações que pretendem sustentar-se no sistema explicativo da Análise do Comportamento, embora compreendam também informações que estão originalmente formuladas em outros contextos (como no interbehaviorismo de Kantor).

Desde já, é necessário dizer que, ao falar em juízos sobre a realidade, a referência à realidade não implica, na presente análise, qualquer apelo realista. Seguindo a lógica comportamental, admite-se que há um universo físico e social que, para qualquer sujeito, é indiferenciado até que processos interacionais produzam a diferenciação de algumas de suas partes ou, mais precisamente, de algumas propriedades de algumas de suas partes (configurando, assim, o ambiente). Portanto, construir juízos sobre a realidade não significa aqui mais do que responder verbalmente sob controle de algumas propriedades de algumas partes do universo físico e/ou social com o qual se interage. No caso do problema específico que interessa à presente análise, trata-se de relações das quais participam um responder verbal que "descreve/explica" os objetos/ eventos sob controle dos quais é emitido.

O ponto central a ser discutido diz respeito à importância de, tendo rejeitado o dualismo mente/corpo, a Análise do Comportamento também afastar-se da dicotomia indivíduo-sociedade e examinar o processo de elaboração e validação de juízos como fenômeno no domínio das relações (verbais) interpessoais e culturais. Em outras palavras, trata-se de examinar algumas implicações de uma análise do pensar enquanto comportamento social e prática cultural.

O artigo procura, desse modo, discutir alguns desafios que essa perspectiva representa, incluindo: a refutação do individualismo epistemológico, o reconhecimento da relevância e limitação da referência ao responder encoberto para explicar o pensar; a demarcação da centralidade dos processos linguísticos e das dimensões sociais desse fenômeno; e a importância de incluir os processos culturo-comportamentais e processos culturais em uma análise compreensiva do pensar enquanto objeto de uma ciência do comportamento.

 

O INDIVIDUALISMO EPISTEMOLÓGICO

Um pilar da cultura ocidental moderna consiste da proposição cartesiana de uma faculdade individual - a razão, que nos torna aptos a submeter a realidade ao inquérito crítico e a formular julgamentos seguros (ou não) sobre suas propriedades. Diferentes versões desse discurso, de viés empirista ou racionalista, positivista ou fenomenológico, filosófico ou psicológico, enraizaram-se na cultura ocidental e instituíram o pensamento como objeto por excelência de uma ciência humana do indivíduo. Não oferecer uma análise consistente do pensamento, nesse contexto, torna-se uma limitação considerável de qualquer sistema que pretenda dar conta do comportamento individual, isto é, de qualquer Psicologia. Por essa razão, dentre outras, gostem ou não os Analistas do Comportamento, o assunto não pode ser negligenciado, algo que Skinner (e.g., 1945) percebeu muito cedo na construção de seu sistema explicativo.

Ainda na tradição do pensamento cartesiano, o interesse na faculdade individual, subjetiva, cognoscitiva do homem converteu-se na proposição da imaterialidade de uma substância humana (alma, espírito, psiquismo, mente etc.) e seus produtos ou objetos de operação (ideias, representações, pensamentos, cognições etc.). Não poderia ser diferente se nos afastamos do processo de interação humana e nos atemos ao que ocorre com o indivíduo. Do ponto de vista do que ocorre com/no indivíduo, nada há de material (ou físico) que possa de imediato ser identificado publicamente com suas ideias, por exemplo. Assim, uma vez que se admita que a competência cognitiva é individual e nenhuma estrutura física/biológica pode ser seguramente com ela identificada, torna-se necessário pressupor que a natureza humana compreende uma dimensão imaterial. Como argumentado em outro contexto (Tourinho, 2009), o dualismo mostra-se uma consequência inevitável do individualismo epistemológico. Não é possível falar da competência humana para julgar a realidade como uma competência que se encerra no próprio indivíduo, sem com isso supor que o homem é constituído por duas substâncias, uma delas imaterial.

O discurso cartesiano é, entre outras coisas, um produto filosófico de uma cultura individualista. No momento em que Descartes alegava que cada um poderia autonomamente reconhecer a verdade, religiosos sustentavam que cada um poderia autonomamente salvar sua alma, economistas postulavam que cada um encerrava em si as capacidades necessárias ao progresso material e assim por diante. É esse ambiente que dá origem às dicotomias psicológicas clássicas, refletindo a preocupação com diferentes problemas com os quais a nova sociedade de mercado se defrontava: as dicotomias físico/mental, objetivo/subjetivo, interno/ externo e público/privado (Tourinho, 2009).

Ao longo dos séculos XIX e XX, a dicotomia que veio a se estabelecer na cultura como maior expressão da tradição dualista cartesiana foi aquela entre corpo e mente, de um modo que integra todas as dicotomias psicológicas clássicas. O mentalismo, como doutrina, propagava essencialmente o domínio interno e imaterial de faculdades subjetivas inobserváveis (inclusive cognoscitivas) e uma fonte interna e imaterial de controle sobre o comportamento humano público (cf. Moore, 2003). Nem toda defesa contemporânea da noção de mente reproduz esse dualismo. Na neurociência contemporânea, por exemplo, há quem defenda o conceito de mente sem pretender propor uma visão dualista do homem (cf. Sperry, 1980). Mas, também, nem todos aqueles que refutam o dualismo abandonam também uma visão individualista quanto à capacidade humana para conhecer e julgar a realidade. Isto é, pode-se pensar que a mente é física, identificando-a com o sistema nervoso central, mas, ainda assim, supor que a capacidade humana de julgar a realidade é uma capacidade individual.

Para uma ciência do comportamento, mentalismo e dualismo conduzem ao mesmo impasse. Se permanecemos no indivíduo obstamos a análise comportamental/interacional. Ou bem o pensar é um fenômeno relacional e, como tal, se presta a uma análise comportamental, ou é uma ocorrência individual, no domínio da neurociência (se concebido por uma ótica monista), ou da metafísica (se concebido pela ótica dualista).

Uma vez que o dualismo e o mentalismo comprometem o projeto de uma ciência natural do comportamento humano, tornou-se indispensável ao projeto de edificação de tal ciência (e de uso de tal ciência para solucionar os problemas humanos) combatê-los e superá-los. Tal compromisso está presente na literatura da psicologia comportamental desde o texto seminal de Watson (1913/1994) e constitui uma das principais marcas do pensamento skinneriano (e.g., Skinner, 1953/1965; 1974/1993). Na mesma direção, o antimentalismo skinneriano associado ao selecionismo como modo causal constitui um dos principais legados da Análise do Comportamento no século XX (Andery, 1997; Andery, Micheleto & Sério, 2002).

Como já apontado, o mentalismo constitui apenas uma faceta do problema instituído na cultura com a dissociação cartesiana entre relações do organismo com o mundo (o domínio das ações mecânicas reflexas) e operações/ocorrências do/no indivíduo (o domínio do pensamento e da cognição). O outro problema, mais fundamental, é essa dissociação entre ação e cognição e a consequente ideia de que é possível analisar a cognição como fenômeno à parte das relações interpessoais. Rejeitar o dualismo é positivo para instituir uma concepção de homem em acordo com os avanços científicos do século XX, mas não implica necessariamente superar o individualismo epistemológico (como, aliás, ilustram algumas proposições da neurociência cognitiva contemporânea). Ainda, o sucesso em afastar o dualismo viabiliza o projeto de uma ciência do comportamento, mas não restabelece necessariamente a cognição como fenômeno no domínio das relações interpessoais.

Transcender o individualismo epistemológico, recolocando no domínio das relações interpessoais as cognições, ou a capacidade humana de elaborar e examinar criticamente juízos sobre a realidade, constitui um passo fundamental para a consolidação de uma ciência do comportamento. Por outro lado, requer categorias analíticas, conceitos e métodos de investigação novos, para além das categorias, conceitos e métodos que orientam a Psicologia (mentalista/cognitivista) tradicional e, possivelmente, para além dos que orientaram as primeiras incursões da Análise do Comportamento nesses temas.

Diversas vertentes teórico-metodológicas da Psicologia contemporânea concordarão com a alegação de que competências cognitivas são competências adquiridas e mantidas em um contexto social. Esse, porém, não é o cerne da questão. O que importa discutir é se a unidade de análise adotada é tal que implica reconhecer a competência cognitiva como uma competência que se realiza na relação de um indivíduo com outros indivíduos.

 

COGNIÇÃO, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS COMPLEXAS

Uma cultura individualista produz um ambiente que pode influenciar também os projetos que dela pretendem ser críticos. Nesse sentido, ao formular uma concepção relacional dos fenômenos psicológicos, como o pensar, é necessário atentar para a possibilidade de trabalhar com supostos que só fazem sentido em um outro sistema de referência.

Um debate recorrente entre Analistas do Comportamento, sem que de cada confronto de ideias resultem avanços substanciais, tem sido sobre a possibilidade/necessidade de uma ciência do comportamento incluir no escopo de seu objeto os chamados eventos privados (e.g., Baum, 2001; Catania, 2011; Flora & Kestner, 1995; Marr, 2011; Overskeid, 1994; Palmer, 2011; Rachlin, 2011; Stemmer, 1995). O que exatamente significa considerar eventos privados, porém, raramente é objeto de uma análise mais aprofundada. Em particular, duas questões por vezes deixam de ser suficientemente trabalhadas: a necessária diferenciação entre o evento privado e uma relação funcional da qual participe; e o contexto. social em que certas relações comportamentais passam a compreender eventos privados

Não raro, a cognição (assim como a emoção) é referida na literatura analítico-comportamental como um evento privado. Anderson, Hawkins e Scotti (1997), por exemplo, ao apresentarem uma análise que visa ressaltar a relevância para uma ciência do comportamento da consideração de eventos privados, apontam que "de modo amplo, eventos privados podem ser vistos como caindo em uma de quatro classes: emoções (afeto, sentimento), pensamentos, percepções (visuais ou outras imagens) e estimulação interoceptiva e proprioceptiva" (p. 161). O que se perde com esse tipo de afirmação é o fato de que emoções, pensamentos etc. não são eventos discretos (públicos ou privados), mas interações mais ou menos complexas entre organismo e ambiente.

Baum (2011) um crítico da referência a eventos privados na Análise do Comportamento opta por considerar tais eventos como ocorrências internas que podem ser ignoradas, isto é, "eventos privados são desnecessários para compreender o comportamento. Eles poderiam ou não existir, mas são irrelevantes" (p. 197). Embora discuta o fato de que uma "resposta privada" é originalmente uma "resposta pública", a análise de Baum preserva a categoria de evento privado como dissociada de qualquer processo social:

O papel dos eventos privados no behaviorismo radical é periférico e não essencial. Eles são colocados em destaque num esforço equivocado para tornar o behaviorismo aceitável para o leigo, sugerindo que oferece uma explicação da vida mental. Não estou dizendo que não existem. Muitos tipos diferentes de eventos privados ocorrem sob a pele: eventos neurais, eventos na retina, eventos no ouvido interno, linguagem subvocal (i.e., pensar), e assim por diante. Todos esses eventos são possivelmente mensuráveis e, assim, possivelmente públicos. O que argumentarei é que eventos privados não são úteis em uma ciência do comportamento e que, longe de ser um aspecto-chave definidor do behaviorismo radical, os eventos privados constituem uma distração desnecessária. Eventos privados são irrelevantes para a compreensão da função do comportamento, isto é, atividades em relação a eventos ambientais. (Baum, 2011, p. 186)

Alternativamente, Baum (2011) defende uma visão molar do comportamento, de acordo com a qual o acesso ao fluxo continuado de interações indivíduo-ambiente é suficiente para prever e explicar seu comportamento sem a necessidade de qualquer informação sobre ocorrências privadas (solução semelhante à postulada por Rachlin - e.g., 2011). Essa abordagem garante um enfoque relacional para todo fenômeno psicológico, porém, ainda preservando a ideia de que há algo pertinente que permanece à parte dessas relações. Até onde essas ocorrências podem ser ignoradas tem sido objeto de controvérsias (cf. Palmer, 2011). Além disso, nem todos os fenômenos comportamentais relevantes compreendem fluxos extensos de interações organismoambiente. Como ilustrado por Palmer, "inventar uma arma e resolver um problema no jogo de xadrez são ações únicas; não são atividades repetidas, portanto não se agrupam enquanto unidades ordenadas a exemplo de fazer panquecas ou tricotar meias" (p. 206).

Em outras palavras, a refutação do dualismo em uma abordagem comportamental/interacional, a exemplo da versão (discutível - cf. Catania, 2011) oferecida por Baum (2011) não é suficiente para levar a uma análise dos fenômenos psicológicos (por exemplo, cognitivos) que remova em definitivo a possível referência a ocorrências no indivíduo. Na visão molar de Baum, tais ocorrências podem existir, mas podem ser ignoradas, ainda que integrem o fluxo interacional com o ambiente. Curiosamente, como aponta Catania (2011), a abordagem de Baum, para evitar a referência a eventos privados, ignora também a história ambiental do organismo.

Sem prejuízo do que venha a ser formulado como uma análise interacional de cognições, é necessário reconhecer que certas respostas (que são eventos discretos funcionalmente relevantes em contextos de interação organismo-ambiente) podem ter limitada observabilidade, ainda que não absoluta (cf. Kantor & Smith, 1975). No lugar da dicotomia observável/inobservável, é possível pensar-se em um continuum de observabilidade de respostas (cf. Donahoe & Palmer, 1994), que varia com o grau de participação do aparelho motor em sua emissão, a familiaridade entre observador e observado, o treino do observador e seus instrumentos de observação (Tourinho, 2006).

Dentre os vários modos de tratar essa questão da (in)observabilidade de respostas, temos sugerido (e.g., Tourinho, 2006) que, no que concerne a eventos que participam de cognições, a emissão da resposta com reduzida participação do aparelho motor (em particular, da musculatura vocal) é o que se destaca quando tratamos do responder individual. Essa dimensão foi tratada por Skinner (1957/1992) na análise da resposta verbal como variando ao longo de uma "ordem decrescente de energia" (p. 438), que vai grito à linguagem subvocal. Mesmo no caso de uma reduzida participação do aparelho motor, uma resposta pode ser observável a depender de outras dimensões do fenômeno (como a familiaridade entre observador e observado, o treino do observador e os seus instrumentos de observação). Não há razão, portanto, para que respostas em diferentes pontos do continuum de observabilidade, tenham um status diferente em uma ciência.

Como já salientado, falar de respostas não é falar de comportamento, visto que ainda nos faltam as variáveis contextuais sob as quais as ações do indivíduo adquirem a função de resposta. Isto é, se o pensar é um fenômeno comportamental que compreende também respostas encobertas, isso não é suficiente para dizer que o pensar é encoberto, nem que os eventuais componentes encobertos (que não são inobserváveis no sentido absoluto) devem ser necessariamente excluídos de sua análise.

Fenômenos dos quais participam respostas encobertas, como cognições, podem ser mais ou menos complexos, compreendendo relações únicas ou múltiplas e inter-relacionadas, função de processos filogenéticos, e/ou ontogenéticos, e/ou culturais (cf. Tourinho, 2006). A dificuldade em lidar com esse grau variável de complexidade não decorre da menor observabilidade de algumas respostas, mas, antes, da ausência de uma referência metodológica para a abordagem desse sistema de relações.

Uma questão importante para a análise de um tal sistema é que respostas com menor observabilidade são próprias de certos contextos socioculturais (cf. Tourinho, Borba, Vichi & Leite, 2011), além de não definirem, por si mesmas, o fenômeno cognitivo.

Skinner em vários momentos (e.g. 1968) salientou a origem aberta e a condição transitória do caráter encoberto de certas respostas. Também chamou atenção para o fato de que a punição (e.g., Skinner, 1957/1992, 1968) da forma aberta é frequentemente importante para reduzir a participação do aparelho motor na emissão de uma resposta. Tais observações são relevantes e podem ser complementadas com uma análise das contingências culturais sob as quais os fenômenos cognitivos vão se configurando com esses componentes.

Em linhas gerais, contingências típicas de economias de mercado levam à emissão de algumas respostas com reduzida participação do aparelho motor e menor observabilidade. Tais contingências compreendem (a) a frequência crescente de consequências individuais que não têm qualquer relevância direta ou aparente para o grupo; (b) o número crescente de contingências concorrentes e exigências de escolhas; (c) conflitos entre consequências imediatas e atrasadas para o indivíduo; e (d) conflitos entre consequências para o indivíduo e para o grupo (cf. Tourinho et. al., 2011).

Não há espaço neste artigo para discutir longamente as contingências culturais associadas à promoção de responder que envolve menor participação do aparelho motor, mas importa destacar que elas expressam mudanças em relação aos processos que levam os membros de um grupo social a construir e validar juízos sobre a realidade. Isto é, a questão do responder "encoberto" importa na medida em que o padrão de comportamento que envolve componentes encobertos indica estarem em operação contingências socioculturais específicas, diferentes das contingências em operação quando o responder encoberto é improvável.

Em sociedades mais simples, o processo de examinar os dados de realidade e de formular juízos sobre suas propriedades é também mais simples, no sentido de que as redes de relações envolvidas são menores, os comportamentos de membros dos grupos tendem a estar sob controle das mesmas variáveis e as consequências produzidas por seus comportamentos (inclusive verbais) tendem a afetar de modo aproximado os vários membros do grupo. Em sociedades mais complexas, como as sociedades de mercado, individualizadas, as redes de relações interpessoais envolvidas são mais extensas e os comportamentos dos membros do grupo tendem a estar sob controle de variáveis diferentes, por vezes concorrentes. Como nessas sociedades mais complexas é mais difícil reconstituir as redes de relações e como o indivíduo tende a responder de modo menos aberto, é mais provável que se tome o pensar (enquanto formulação de juízos sobre a realidade) como uma ocorrência pessoal, interna e privada. Isso decorre da ausência de recursos (conceituais e metodológicos) para a reconstituição das redes de relações envolvidas, não da natureza do fenômeno.

Em suma, o conceito de eventos privados pode ser relevante para que a Análise do Comportamento compreenda as feições particulares que cognições assumem em contextos socioculturais específicos, mas não implica inobservabilidade absoluta de respostas, nem dá conta de todas as dimensões relevantes desses fenômenos. Para além da ideia de que certas respostas têm observabilidade restrita, mostra-se necessário compreender as relações sociais que definem a elaboração e validação de juízos sobre a realidade. Essas relações são sobretudo verbais, mas esse é apenas o ponto de partida para a análise requerida.

 

COGNIÇÃO, COMPORTAMENTO VERBAL E RELAÇÕES ENTRE ESTÍMULOS

Skinner (1979) relata que sua motivação inicial para o estudo do comportamento tinha relação direta com a questão do conhecimento: "Behaviorismo e epistemologia estavam estreitamente relacionados. O behaviorismo era uma teoria do conhecimento e conhecer e pensar eram formas de comportamento" (p.115). O desenvolvimento de uma epistemologia behaviorista radical se deu principalmente com o desenvolvimento de uma abordagem funcional para a linguagem, de tal modo que o operacionismo que influenciara Skinner no início da década de 1930 passou a ser visto como uma questão de análise operante do comportamento verbal científico: "o psicólogo ... deve se voltar ... para as contingências de reforçamento que explicam a relação funcional entre um termo, como uma resposta verbal, e um dado estímulo. Esta é a ‘base operacional' para seu uso de termos" (Skinner, 1945, p.277).

Uma abordagem de viés funcional para a linguagem foi também desenvolvida por outros sistemas de pensamento ao longo do século XX (e.g., Austin, 1962/1990; Wittgenstein, 1953/1988), com extensões aproximadas na explicação do pensar e do conhecimento. Em comum com esses outros sistemas, a proposta de Skinner enfatizou que os determinantes do responder verbal devem ser buscados não em antecedentes mentais, mas nos efeitos produzidos no ambiente social (de modo direto) ou físico (indiretamente), no contexto de interação entre falantes e ouvintes. Transita-se, assim, de uma visão representacional da linguagem (e, portanto, dos juízos sobre a realidade), de acordo com a qual as palavras valem por sua função de representar um estado de coisas, para uma concepção de linguagem como forma de ação humana, explicada por seus efeitos na interação com o mundo.

Olhar para a linguagem como "ato de fala" (Austin, 1962/1990), como "forma de vida" (Wittgenstein, 1953/1988), ou como "comportamento operante" (Skinner, 1957/1992) implica refutar um dos pilares das visões mentalistas da cognição. Afinal, se os juízos (enunciados verbais) que produzimos sobre a realidade se explicam pelas interações que travamos com o ambiente social e com essa mesma realidade, nenhuma ocorrência interna, pessoal ou imaterial (se existente) informa sobre os determinantes desse fenômeno. Mas a sustentação desse ponto de vista requer também uma coleção de dados empíricos que evidencie as relações de dependência funcional entre o responder verbal e mudanças ambientais. O sistema skinneriano, desse ponto de vista, acumulou contribuições únicas e contribuiu para a consolidação de um modelo de interpretação da linguagem que penetrou várias áreas da cultura ao longo do século XX. Ao comentar o pragmatismo de Rorty (e.g., 1982, 1988), por exemplo, Leigland (1999) ressalta as proximidades com o behaviorismo radical e a centralidade da abordagem funcional para a linguagem.

Como o behaviorismo radical, Rorty sustenta que podemos falar da pessoa-no-mundo, ou da interação ambiente-comportamento, mas em nosso comportamento verbal e não verbal nunca podemos escapar ao contexto da linguagem, da cultura ou da história, em um esforço para representar o mundo como realmente é em si mesmo ou de si mesmo. Como no behaviorismo radical, a chave para entender problemas como a relação mente-corpo deve ser encontrada no comportamento verbal. (Leigland, 1999, p. 491)

Uma característica da abordagem de Skinner para o comportamento verbal, essencial no desenvolvimento de seu sistema ao longo do século XX, é a compatibilidade com os instrumentos conceituais e metodológicos da análise do comportamento não verbal, tornando possível não apenas integrar programas de investigação de comportamento verbal e não verbal, mas também deles derivar modelos de intervenção que têm sido bem sucedidos na solução de problemas humanos, a exemplo dos programas amplamente difundidos de trabalho com crianças autistas. Essa característica tem como origem o entendimento de Skinner de que uma fragilidade das teorias da linguagem anteriores à primeira metade do século XX era justamente à falta de conexão a uma teoria (e uma ciência) consistente do comportamento humano em geral (cf. Andery, Micheleto & Sério, 2005; Skinner, 1945). Para além dessa integração, a interpretação funcional para a linguagem define as categorias relevantes para a análise dos fenômenos psicológicos que tradicionalmente conduziram a Psicologia ao mentalismo:

a inclusão do comportamento verbal no programa de pesquisas de Skinner (1957) não é uma mera extensão de seu sistema explicativo. As categorias fundamentais na análise do comportamento operante deveriam ser comportamento verbal e comportamento não verbal. Portanto, na compreensão do comportamento humano, a distinção básica a ser feita é aquela entre comportamento verbal e não verbal (Lee, 1984), em vez da distinção entre pensamento e ação, comportamento privado e comportamento público, e assim por diante. (Andery, Micheleto & Sério, 2005, p. 173)

Uma análise funcional para a linguagem desloca a compreensão da cognição, de uma preocupação com eventos internos ou privados, para o campo das relações interpessoais. O comportamento verbal é necessariamente um comportamento social, o que por si só já implica unidades de análise diferentes, que compreendam o entrelaçamento de contingências comportamentais individuais. Desse ponto de vista, não é possível explicar a elaboração de juízos sobre a realidade olhando para o responder de apenas um indivíduo. É necessário recuperar como o responder de dois ou mais indivíduos e suas variáveis relevantes se entrelaçam.

No comportamento verbal não se encontram alguns condicionantes típicos de relações que definem o comportamento não verbal, a exemplo da dependência mecânica entre resposta e consequência e suas implicações (como a possibilidade de diferentes topografias produzirem um mesmo efeito, ou uma mesma topografia produzir efeitos diversos - cf. Andery, 2010). No comportamento verbal, as relações entre propriedades da resposta e propriedades de seus efeitos dependem das práticas culturais do grupo, que são arbitrárias e podem mudar de momento a momento.

Alguns programas de pesquisa desenvolvidos como parte de uma abordagem funcional para o comportamento verbal têm tido especial relevância para a discussão das cognições, com destaque para os estudos sobre relações entre estímulos (e.g., Sidman, 1994; Hayes, Barnes-Holmes, & Roche, 2001). O que esses estudos têm demonstrado é que processos sociais-verbais levam a que funções de estímulos sejam transferidas de um evento a outro sem a necessidade de condicionamento direto. Desse ponto de vista, a história ambiental que explica as funções de estímulos verbais, ou de estímulos que participam do controle de respostas verbais, é sempre mais complexa e envolve redes geralmente extensas de contingências comportamentais entrelaçadas. É claro que para efeitos práticos pode-se limitar a análise às funções atuais de estímulos verbais e não verbais para o responder de um organismo, mas o quanto tais funções estão prontamente acessíveis sem a reconstituição daquelas redes é no mínimo controverso. Por outro lado, identificar relações entre estímulos, sob uma ótica comportamental, implica situar essas relações no campo das interações organismo-ambiente, algo que tem sido observado na análise experimental do comportamento (em particular, do comportamento simbólico), mas que não é óbvio em algumas afirmações dali derivadas e consideradas fora de um contexto mais amplo de investigação.

A referência às práticas culturais coloca a análise do comportamento operante verbal em um patamar diferente daquele observado quando se toma como objeto o comportamento não verbal, no sentido de que, no comportamento verbal, práticas culturais participam necessariamente do fenômeno e não podem ser ignoradas. Se essa análise estiver correta, então a construção e validação de juízos sobre a realidade também requer uma consideração das práticas culturais envolvidas. Essa questão será retomada adiante.

 

O PENSAR E A COMPLEXIDADE DAS RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS QUE DEFINEM AS COGNIÇÕES

Até aqui, argumentamos que o desafio maior de uma abordagem comportamental da cognição reside em superar o individualismo e situar o fenômeno no contexto das relações organismo-ambiente (sobretudo, ambiente social). Isso requer mais do que o abandono do dualismo, no sentido de que mesmo ocorrências tidas como físicas/materiais no domínio apenas do indivíduo constituem referências insuficientes para a análise. Essa é, essencialmente, a razão pela qual o conceito de eventos privados, ainda que relevante para afastar o dualismo, não é suficiente a uma ciência do comportamento. Também chamamos a atenção para o fato de que é a abordagem funcional para o comportamento verbal que fundamenta a rejeição de uma ontologia dualista e, ao mesmo tempo, conduz às redes de relações comportamentais que definem a cognição. Nesta seção, pretendemos sugerir duas direções para a análise dessas redes, uma que relaciona a complexidade dos fenômenos comportamentais humanos aos níveis de variação e seleção do comportamento, outra que oferece os instrumentos conceituais para a análise comportamental de fenômenos culturais.

De acordo com o modo causal de seleção por consequências (Skinner, 1981), o comportamento humano é o produto conjunto de contingências filogenéticas, contingências ontogenéticas e contingências culturais. Um continuum de complexidade dos fenômenos comportamentais pode ser concebido à luz dessa referência (Tourinho, 2006). Assim, fenômenos comportamentais podem constituir-se de relações únicas ou redes de relações, produzidas pela seleção natural, pela seleção operante e por seleção cultural. No caso de emoções e sentimentos a complexidade variável dos fenômenos é razoavelmente reconstituível.

o medo de uma criança pode limitar-se a um conjunto de respostas fisiológicas (condicionadas); por exemplo, uma taxa mais alta de batimento cardíaco, eliciada pela presença do professor. Na medida em que a criança é exposta a contingências operantes aversivas liberadas pelo professor (e.g., críticas e ameaças contingentes à sua participação nas atividades de sala), ela pode aprender a escapar ou evitar estar na presença do professor (por exemplo, "adoecendo" nos dias de aula, machucando um colega para ser retirada da sala, pedindo aos pais para ser levada para casa etc.). Quando exposta a certas contingências sociais, a criança pode aprender, adicionalmente, a observar seu próprio corpo e a descrever-se como amedrontada. A criança pode ainda aprender, por meio de processos verbais, que pessoas que têm medo dos professores não são inteligentes, ou que é uma vergonha não ser inteligente. Em todas essas circunstâncias, temos ocorrências de medo, mas essas ocorrências são fenômenos que claramente diferem em complexidade. (Tourinho, 2006, p. 27)

Quando passamos à cognição, qualquer julgamento sobre a realidade encontra-se necessariamente na seção do continuum que corresponde à maior complexidade dos fenômenos comportamentais, compreendendo sempre relações filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Ainda assim, há graus variáveis de complexidade, pois as redes de relações envolvidas nos fenômenos mais complexos podem incluir diferenças relevantes do ponto de vista das contingências em operação e de seus produtos. A questão é como podemos reconstituir essas relações. Os recursos conceituais e metodológicos para tal empreitada ainda estão sendo desenvolvidos.

Por exemplo, comparem-se os seguintes juízos: (a) "o meu organismo reage melhor a comidas sem pimenta"; (b) "fazer atividade física é essencial para a boa saúde"; e (c) "o desenvolvimento sustentável implica o progresso econômico, a inclusão social e a proteção ambiental". Nos três casos, podemos considerar que são juízos sobre a realidade com a qual um falante interage. Ainda, a análise de todos eles requer a consideração da interação entre membros de uma comunidade verbal e de processos verbais que podem explicar as funções que a resposta do falante pode ter para um ouvinte (inclusive o próprio falante). As redes de relações envolvidas em cada caso, porém, podem conter diferenças que dependem de uma análise cultural para vir a lume. Em particular, podem incluir (ou não), além das consequências que mantêm o comportamento de cada membro do grupo, consequências para o grupo que são relevantes. Para tornar essas possíveis dimensões inteligíveis, torna-se necessário articular os níveis individual e cultural de análise.

Os recursos conceituais para uma análise comportamental dos processos culturais e sua relação com processos comportamentais têm sido desenvolvidos principalmente por Glenn (e.g., 1988, 1991, 2003, 2004; Glenn & Malott, 2004). Partindo da noção de contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs), sugerida por Skinner (1953/1965) na análise do comportamento social, Glenn propôs a metacontingência como unidade de análise apropriada para o exame da seleção no nível cultural. Metacontingências descrevem relações funcionais entre CCEs mais seus produtos agregados (PAs), e consequências culturais (CCs) que alteram a probabilidade de recorrências das CCEs+PAs. Por exemplo, temos uma metacontingência quando uma equipe de pesquisa desenvolve projetos de modo integrado (CCEs), resultando em artigos científicos (PAs), que são publicados e citados por uma comunidade científica (CC). O comportamento de cada membro da equipe é mantido por consequências operantes (aprovações, bolsas, salários etc.), mas a coordenação dos comportamentos dos membros da equipe é selecionada e mantida por consequências culturais independentes.

Glenn (2004) diferencia três produtos de processos seletivos relacionados ao comportamento humano: linhagens comportamentais (recorrências de respostas operantes, como função de consequências individuais e sua evolução); linhagens culturo-comportamentais (recorrências de linhagens operantes aprendidas socialmente e sua evolução); e linhagens culturais (recorrências de CCEs+PAs e sua evolução).

Linhagens comportamentais e linhagens culturo-comportamentais podem não diferir em topografia (por exemplo, dois membros de um grupo de pesquisa podem operar um instrumento de coleta de dados do mesmo modo), mas diferem quanto à fonte de controle (uma pessoa pode ter aprendido o melhor modo de operar o equipamento testando as várias opções oferecidas; a outra pode simplesmente ter sido instruída). A possibilidade de linhagens culturo-comportamentais garante que as práticas culturais sejam replicadas no repertórios dos vários membros de um grupo e sobrevivam independente dos membros, visto que compreendem a sua transmissão de geração a geração. Elas são também a base para os processos culturais:

A cultura começa com a transmissão de conteúdo comportamental, aprendido por um organismo ao longo de sua vida, para o repertório de outros organismos. Portanto, o lócus dos fenômenos culturais é supraorganísmico. Diferente da aprendizagem, que se localiza em relações temporais repetidas entre as ações de um único organismo e outros eventos empíricos, o lócus das coisas culturais é supraorganísmico porque envolve repetições do comportamento interrelacionado de dois ou mais organismos ... Essa transmissão não requer nenhum traço biológico ou processo comportamental novo, mas ela inicia um novo tipo de linhagem: uma linhagem culturo-comportamental" (Glenn, 2004, p. 139).

Portanto, linhagens culturo-comportamentais são um estágio de transição entre o fenômeno comportamental e o fenômeno cultural. São diferentes das linhagens comportamentais porque o conteúdo comportamental não é função (apenas) da exposição continuada a um dado arranjo de contingências, mas da transmissão por outros membros do grupo (de tal modo que as diferenças nas "curvas de aprendizagem" são evidentes). Por outro lado, ainda dizem respeito ao comportamento individual, não à evolução de sistemas culturais. Já as linhagens culturais rementem-nos à evolução das interrelações dos comportamentos de vários membros de um grupo e aos produtos que as selecionam. Nas linhagens culturais, tem-se mais do que CCEs, tem-se a evolução de CCEs como função de consequências culturais a elas contingentes. Nas linhagens culturais estamos diante não da evolução do comportamento individual, mas da evolução das interrelações entre os comportamentos de vários indivíduos e da transmissão de práticas entre gerações de indivíduos. Provavelmente, há circunstâncias em que esse nível de análise é essencial para explicar juízos sobre a realidade.

Estudos experimentais (e.g. Vichi, Andery & Glenn, 2009) têm produzido evidências de seleção de CCEs+PAs por consequências culturais. Assim, a noção de metacontingência não constitui apenas uma referência conceitual para a análise da seleção cultural, mas sustenta-se em dados empíricos. Essa constatação sugere que certas realizações humanas, além de compreenderem o comportamento social, podem ser instâncias de fenômenos mais complexos, culturais que merecem ser analisados como uma unidade mais complexa. Provavelmente, muitos dos nossos juízos sobre a realidade são fenômenos dessa ordem.

Voltando aos exemplos referidos anteriormente, os processos envolvidos no juízo (a) provavelmente compreendem processos comportamentais; os do juízo (b) comportamentais e culturo-comportamentais; e os do juízo (c) comportamentais, culturo-comportamentais e culturais. Vejamos mais detalhadamente cada caso.

Voltando às asserções ou juízos sugeridos anteriormente, o juízo (a) "o meu organismo reage melhor a comidas sem pimenta" consiste de um responder verbal possivelmente sob controle de contingências sociais em combinação com eventos que dizem respeito à história pessoal de vida (e.g., reações alérgicas a comidas com pimenta; problemas digestivos após o consumo de comidas apimentadas etc.). As relações aqui envolvidas podem ser reconstituídas considerando-se o ambiente físico (incluindo o próprio corpo) do falante e o ambiente social com o qual o indivíduo particular tem interagido.

A resposta (juízo) (b) "fazer atividade física é essencial para a boa saúde" já decorre de uma história ambiental possivelmente mais dissociada do ambiente físico pessoal do falante e mais sob controle de um ambiente físico e de um ambiente social compartilhados. A resposta é replicada no repertório de vários membros de um grupo basicamente por transmissão de um membro para o outro, e de forma independente da história de cada um com a prática de atividade física e com o monitoramento de seus resultados na saúde. A rede de relações comportamentais aqui presentes pode ter evoluído apenas como função de consequências individuais, em um contexto de interação sócio-verbal.

Já o enunciado (c) "o desenvolvimento sustentável implica o progresso econômico, a inclusão social e a proteção ambiental" possivelmente envolve mais do que o responder individual de membros de um grupo, em que todos compartilham um mesmo ambiente que mantém seus comportamentos individuais. As relações aqui envolvidas possivelmente integram um sistema amplo de interações, incluindo o responder verbal e não verbal (e.g., práticas de proteção ambiental, consumo sustentável etc.) com consequências (e.g., menor produção de CO2, ambientes naturais conservados) que afetam o grupo do qual o indivíduo que emite o juízo participa e selecionam esse padrão de interação.

Nos exemplos acima, os juízos diferem quanto às histórias de interação que estão na sua origem, em suas variáveis de controle e, muito provavelmente, nas funções que adquirem enquanto antecedentes de respostas verbais e não verbais dos indivíduos e de entrelaçamentos de contingências comportamentais nos grupos dos quais participam. Tal diferenciação pode ser essencial ao refinamento de nossas análises da cognição humana. As possíveis fontes de controle dos três tipos de juízos foram consideradas em um exercício meramente especulativo, com o intuito de sugerir que os conceitos que vêm sendo formulados para a análise comportamental de processos culturais podem ser relevantes para um exame das práticas envolvidas no pensar enquanto comportamento social. A utilidade dessa referência para a análise do processo de elaboração e validação de juízos sobre a realidade, em diferentes contextos socioculturais, ainda aguarda um programa de pesquisas para ser aferida. Mas uma vez reconhecida sua relevância, isso significará que a investigação comportamental do "pensar" precisará de novos instrumentos conceituais e metodológicos, que compreendam processos no nível cultural de determinação do comportamento.

A rigor, não são as topografias dos enunciados (a), (b) e (c) que definem os processos de determinação envolvidos, ou as redes de relações que são constitutivas do pensar em cada caso. Por essa razão, afirmamos que "possivelmente" em cada exemplo umas ou outras variáveis estariam envolvidas. Como usual na investigação comportamental, apenas uma análise de contingências poderia ser elucidativa a respeito. Por outro lado, o exercício de análise pode ser útil para sugerir direções para tal investigação.

A análise cultural é especialmente relevante para a identificação de práticas que vão se instituindo nas sociedades e circunscrevendo os tipos e a extensão das relações que definem os juízos sobre a realidade. Ela pode ser útil, por exemplo, para compreender a importância que foi sendo atribuída a respostas encobertas nesses processos ao longo do avanço da individualização. Pode ser útil, também, para elucidar mudanças em curso nos processos sociais contemporâneos.

Considere-se, a esse respeito, a conformação particular que a elaboração e validação de juízos vem assumindo no contexto contemporâneo das mídias sociais, na internet. Novas práticas culturais emergiram nesse ambiente, com um impacto considerável sobre os indivíduos e sociedades. Linhagens culturo-comportamentais evoluem em uma escala inédita; projetos colaborativos, CCEs com produtos agregados originais, em rápida evolução (e.g., dicionários, bancos de dados etc.) tornaram-se possíveis e têm sido selecionados por consequências culturais antes muito menos prováveis (e.g., propagação da informação em escala mundial, mudanças em políticas governamentais etc.). Certas contingências culturais que definem o ambiente social da internet, por outro lado, são exatamente o oposto daquelas que favorecem a emissão de respostas com menor observabilidade (a exemplo da concorrência entre consequências para o indivíduo e consequências para o grupo, que em algumas circunstâncias pode ser menos frequente nas redes sociais eletrônicas). Certamente, a evolução dessas práticas é tema relevante para qualquer Psicologia interessada na cognição, mas os instrumentos conceituais e metodológicos para investigá-las ainda precisam ser desenvolvidos.

Práticas culturais e sistemas de interação (CCEs), como comportamentos operantes, evoluem como resultado de processos de variação e seleção. Se são relevantes para a explicação do pensar nas sociedades contemporâneas, e se reconhecemos que ao considerá-los permanecemos no terreno das relações organismoambiente, as estratégias metodológicas para a investigação serão análogas àquelas da análise comportamental: visarão à identificação de relações de dependência funcional entre os "blocos" culturais e suas consequências para o grupo. A unidade de análise sugerida pelo conceito de metacontingência (e.g., Glenn, 2004) tem se mostrado o melhor caminho nessa direção.

 

CONCLUSÃO

Do ponto de vista da análise aqui desenvolvida, uma explicação comportamental do pensar enquanto elaboração e validação de juízos sobre a realidade e, possivelmente, de qualquer fenômeno cognitivo, requer a integração de três programas de pesquisa contemporâneos, ativos e produtivos, que focalizam: o comportamento verbal, relações entre estímulos e seleção cultural. Skinner (e.g., 1957/1992) ofereceu a primeira e mais importante dessas referências, ao promover uma concepção funcional de linguagem, definir uma taxonomia dos operantes verbais e desenvolver os métodos para o estudo do comportamento individual. Sem entrar no mérito das divergências envolvidas, Sidman (e.g., 1994) e Hayes et. al. (2001) estenderam o escopo do programa de pesquisas skinneriano para abarcar funções de estímulo que são o produto de uma aprendizagem indireta. E Glenn (e.g., 2004) desenvolveu os conceitos necessários à análise da seleção no nível cultural de determinação do comportamento humano. Cada uma dessas realizações representou um avanço em direção à complexidade dos fenômenos comportamentais cognitivos.

Por uma questão cultural, e também porque o "pensar" de fato tem características específicas nas sociedades individualizadas, é muito provável que seja atribuída maior importância às ocorrências individuais (como respostas encobertas), ou a relações comportamentais específicas, quando analisamos qualquer fenômeno cognitivo. Tendemos a considerar que se nos afastamos desse nível de análise, deixamos o domínio da ciência do comportamento, ou da Psicologia. Mas isso não é necessariamente verdade. Compreender a dimensão cultural dos fenômenos cognitivos não é tarefa para outra ciência, se tais dimensões são também consideradas comportamentais e abordadas com os conceitos e princípios da ciência do comportamento. Os programas de pesquisa de processos comportamentais culturais (e.g. Glenn, 2004) ilustram a possível integração dos diferentes níveis de análise e podem ser heurísticos para a abordagem fenômenos comportamentais complexos como a cognição.

É difícil dizer que um programa de investigações sobre cognições pode ignorar o tema dos eventos privados, não porque a questão dos graus de observabilidade seja relevante para definir o pensar, mas porque variações nessa dimensão do responder individual guardam uma relação importante com contingências culturais que explicam certas práticas contemporâneas de elaboração de juízos sobre a realidade. Desse ponto de vista, propostas de simplesmente ignorar o assunto (e.g., Baum, 2011) podem funcionar para manter a Análise do Comportamento mais distante de uma explicação consistente dos fenômenos cognitivos.

Por fim, na medida em que estamos tratando de fenômenos que são função também de contingências culturais, é essencial observar que mudanças importantes podem estar ocorrendo nesse domínio. Do mesmo modo que a elaboração e validação de juízos em sociedades mais simples compreende relações bastante diversas daquelas encontradas nas sociedades modernas, individualizadas, é muito provável que a mudança na sociabilidade produzida pelos novos ambientes criados com a internet esteja dando origem a relações originais, que ainda precisamos identificar e descrever.

 

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(Invited article)

 

 

1 Trabalho parcialmente financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil (Processo 304783/2010-2). E-mail: eztourinho@gmail.com