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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

EDITORIAL À CONVITE

 

José Martins Canelas Neto1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

Em nossas sociedades de tradição predominantemente anglo-saxônica, este número da Revista Brasileira de Psicanálise marca um momento significativo de uma história relativamente recente de nossas relações com a psicanálise francesa, ao publicar textos de autores brasileiros e franceses em torno do tema do 66º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), realizado em Lisboa em maio de 2006: Modelo da Pulsão e Relações de Objeto.

O CPLF é o mais importante congresso organizado pelas duas sociedades francesas afiliadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA): Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e Associação Psicanalítica da França (APF). Ocorre anualmente, alternando o local, sendo um ano em Paris e no ano seguinte numa das cidades que têm grupos de estudo de psicanálise. Ao longo de 67 anos, os analistas mais renomados dessas sociedades já apresentaram “relatórios” nesses encontros. Trata-se de um congresso diferente, pois é centrado em dois relatórios sobre um tema escolhido previamente, os quais são preparados e divulgados com bastante antecedência entre os grupos de estudo que se formam de modo espontâneo nos diferentes países. Durante vários meses, esses grupos se dedicam à discussão dos relatórios, produzindo pequenos comentários por escrito que também são divulgados antes do congresso. O CPLF é organizado em grandes sessões plenárias nas quais os participantes podem discutir durante um tempo bastante longo com os relatores e com analistas convidados, que redigem antes um comentário sobre os relatórios. Esse modo de organização permite que todos os participantes “mergulhem” profundamente no tema antes do congresso e estejam bastante mobilizados quando chegam ao evento.

Por razões de espaço, infelizmente não foi possível publicar os dois relatórios, “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?”, de Bernard Brusset, e “Clínica da relação de objeto e do registro pulsional na psicanálise da criança”, de Gérard Lucas.2 No entanto, os artigos de Magda Guimarães Khouri e de Ana Maria Brias Silveira fazem um excelente apanhado do relatório de Brusset.

No decorrer dos anos, o número de grupos de estudo se ampliou e atualmente temos grupos nas seguintes cidades: Aix-en-Provence, Atenas, Besançon, Beirute, Bilbao, Bordeaux, Bruxelas, Chalon-sur-Saône, Corbeil-Essonnes, Genebra, Jerusalém e Tel-Aviv, Lille, Lisboa, Madri, Lyon, Montreal, Nantes, Paris, Pádua, Porto, Rennes, Rio de Janeiro, Roma, Rouen, São Paulo, Porto Alegre e Toulouse.

Graças aos esforços do atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Luís Carlos Menezes, que buscou nossa aproximação com os colegas franceses das duas sociedades afiliadas à IPA (SPP e APF), nós, brasileiros, passamos pela primeira vez a participar oficialmente do CPLF. Formamos três grupos de estudo oficiais do congresso: em São Paulo, coordenado por Luís Carlos Menezes e por mim; no Rio de Janeiro, coordenado por Admar Horn e Miguel Calmon, e em Porto Alegre, coordenado por Luciane Falcão .

Também é preciso lembrar que uma longa história de contatos e relações com a psicanálise francesa contribuiu para que chegássemos a essa importante participação de nossas sociedades no 66º CPLF. Começou em meados dos anos 1960, quando José e Lúcia Lins de Almeida, psicanalistas do Recife, foram a Paris fazer sua análise pessoal e entrar em contato com a psicanálise na França, que naquela época já se encontrava em uma fase particularmente fecunda. No final dos anos 1960 e nos anos 1970, Lins estimulou e apoiou uma geração de jovens analistas pernambucanos a ir a Paris fazer a sua formação. Os que não se radicaram em Paris, como Paulo Siqueira e Eliezer Hollanda, voltaram para o Rio de Janeiro. Entre eles, lembramos Fernando Rocha, Carlos Niçéas, Fernando Coutinho, Zélia Villar, Jurandir Costa, Yvone Lins, Carmem Da Poian, entre vários outros. Além desse grupo de analistas pernambucanos, no mesmo período também fizeram a análise e a formação em Paris o médico gaúcho Luís Carlos Menezes e Anna Maria Amaral, de São Paulo. Essa primeira leva de analistas retornou ao Brasil nos início dos anos 1980, quando uma segunda geração iniciava sua formação: eu e o carioca Admar Horn na SPP e o também carioca Marcelo Marques na APF. Admar e eu voltamos ao Brasil nos anos 1990.

Com a volta de Menezes para São Paulo, iniciou-se uma longa colaboração com alguns analistas franceses, sobretudo com Pierre Fédida, que esteve várias vezes nessa cidade. Permanecia durante semanas trabalhando intensivamente com grupos de analistas em seminários teórico-clínicos. A partir daí, outros colegas brasileiros tomaram contato e aprofundaram o conhecimento da psicanálise francesa contemporânea, até chegarmos a essa importante participação oficial em 2006, na qual o grupo de brasileiros compareceu em número bastante significativo (cerca de quarenta analistas), principalmente de São Paulo, mas também do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, Ribeirão Preto e Brasília. Nesse breve lembrete histórico, mencionamos apenas colegas que nos são mais próximos, sabendo que assim omitimos a menção a alguns analistas de orientação lacaniana que aqui aportaram depois dos anos 1980.

Depois dessa demarcação histórica, falemos um pouco do conteúdo do 66º CPLF e deste número da Revista Brasileira de Psicanálise. Como o próprio título do congresso mostra – Modelo da Pulsão e Relações de Objeto –, foi posta em discussão a questão das relações entre o modelo da pulsão e as relações de objeto. Bernard Brusset, partindo dos desafios apresentados pela clínica psicanalítica contemporânea (casos difíceis, pacientes borderline, clínica do vazio e do irrepresentável etc.), faz uma revisão dos principais autores da psicanálise, desde Freud até Melanie Klein, D. W. Winnicott, Bion, André Green, Jacques Lacan, Jean Laplanche, César Botella e outros. E propõe de maneira interrogativa a hipótese de uma grande síntese, traduzida pelo título de seu relatório – “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?” –, no qual trata de estabelecer uma “terceira tópica” fundamentada numa “metapsicologia dos vínculos”.

Para entrar no cerne dessas reflexões de Brusset e diante da impossibilidade material de publicar neste número da revista os dois relatórios na íntegra, convidamos duas pessoas para escrever artigos que tentassem passar as principais contribuições de Brusset: Ana Maria Brias Silveira e Magda Khoury, que haviam realizado um bom trabalho de síntese no grupo de São Paulo. O leitor poderá encontrar nos textos uma boa introdução ao relatório do congresso.

Durante o CPLF, vários debatedores questionaram a necessidade de fazer uma grande síntese das diferentes teorias, com a criação de uma “terceira tópica”. Havia o temor de que essa síntese pudesse ser redutora e que nela se perdesse a riqueza e a singularidade de algumas das obras pós-freudianas mais importantes. No final, a meu ver, o que ficou das discussões foram mais contribuições teóricas à clínica desses casos difíceis – como a idéia de um “funcionamento na exterioridade” –, reflexões originais sobre a projeção em sua relação com o espaço psíquico, e menos o projeto de Brusset de juntar as diferentes teorias numa terceira tópica.

Quatro autores brasileiros discutem as idéias de Brusset neste número da revista. Eles se posicionam na hipótese de uma terceira tópica, aproximando o debate de nossa cultura psicanalítica.

Ana Maria Andrade de Azevedo, num texto de muita clareza, procura realçar a idéia de uma terceira tópica, examinando sobretudo a questão do espaço psíquico, de sua extensão ao espaço externo, conforme a noção de “funcionamento em exterioridade” descrita por Brusset. A dialética do interno/externo é reexaminada pela autora, que vai propor uma terceira tópica concebida como tópica da clivagem. Por fim, Ana Maria discute as aplicações dessas idéias a uma clínica contemporânea.

Já no artigo de Josette Czerny a hipótese da necessidade de uma terceira tópica é contestada, e essa autora nos oferece suas reflexões a partir da clínica de pacientes borderline. Ela se mantém numa perspectiva metapsicológica freudiana, propondo a idéia de “deficiência primária narcísica”, com conseqüente desmoronamento do pré-consciente e de suas funções. Parece-nos interessante sua idéia de que esses pacientes se mantêm numa linha tênue entre funcionamento não-psicótico e funcionamento psicótico.

Luciane Falcão, de Porto Alegre, nos brinda com um artigo rigoroso do ponto de vista metapsicológico, no qual retoma em profundidade o conceito freudiano de Bindung (vínculo, ligação), com as noções de energia livre e energia ligada. Desenvolve também de maneira sutil o papel do objeto na instauração dos processos de ligação e nos movimentos identificatórios. Luciane sustenta que a hipótese de uma terceira tópica, de uma metapsicologia dos vínculos, é dispensável, uma vez que a noção de ligação, vínculo, permeia toda a metapsicologia freudiana de forma a nos instrumentar adequadamente para abordar a clínica de pacientes não-neuróticos. Apoiando-se em idéias de André Green, a autora vai mostrar o interesse em um aprofundamento da noção de narcisismo primário como “investimento originário do eu não-unificado e sem referência à unidade”. Esse ponto de vista enfatiza a questão da orientação e da qualidade dos investimentos na origem desse narcisismo primitivo.

Finalmente, Admar Horn aproxima algumas idéias de Brusset dos conceitos desenvolvidos pelos psicanalistas da Escola Psicossomática de Paris, na qual fez longa formação. Admar nos mostra como a questão da somatização pode ser compreendida a partir da expansão de certos conceitos freudianos, em especial a noção de pré-consciente, que teria uma dimensão interpsíquica na psicoterapia desses pacientes. O autor também desenvolve de maneira original o que chama de função maternal do psicoterapeuta psicossomático, embasada numa clínica da sensorialidade psíquica.

O artigo de André Green completa a série de artigos relativos ao relatório de Brusset. O autor levanta várias questões que ainda devem ser aprofundadas, retoma o conceito freudiano de ligação e acompanha sua evolução em Melanie Klein, Bion e Winnicott, para terminar com uma análise minuciosa da posição de Brusset quanto a uma metapsicologia dos vínculos.

O diálogo teórico e clínico de autores brasileiros com colegas de língua francesa da França, Suíça, Bélgica e do Canadá, assim como com outros de línguas românicas – espanhóis, portugueses e italianos –, encontra-se agora em novo patamar, com a nossa participação regular no 66º CPLF. A amostra representada pelos trabalhos deste número da revista parece-me promissora: são novas possibilidades de desenvolvimento que encontros como esse oferecem para o pensamento psicanalítico no Brasil.

J. M. C. N.
São Paulo, abril de 2007.

 

 

Endereço para coorespondência
José Martins Canelas Neto
Rua Baltazar da Veiga, 24 – Vila Nova Conceição
04510-000 – São Paulo – SP
E-mail: josecanelas@uol.com.br

 

 

1 Membro efetivo da SBPSP.
2 Publicados na Revue Française de Psychanalyse, 5/6, 2007.

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