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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

ENTREVISTA

 

César Botella

 

 

Endereço para correspondência

 

 

César Botella, membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris, desde 1982, tem realizado juntamente com sua esposa Sara uma série de trabalhos psicanalíticos que permitem o acesso a novas perspectivas teóricas. A partir do trabalho clínico com neuróticos, borderlines e crianças, busca desenvolver uma concepção ampliada e original do funcionamento psíquico, particularmente das deficiências dos sistemas representacionais. É autor, entre outros, do livro La figurabilité psychique (2001), com edições em francês, inglês e espanhol.1

 

RBP O interesse pelas suas obras, que surgiu no Brasil com o grupo de Porto Alegre, desenvolveu-se em São Paulo a partir de uma resenha de La figurabilidad psíquica, publicada na Revista Brasileira de Psicanálise há dois ou três anos.2 Alguns grupos se constituíram para estudar suas idéias, e gostaríamos aqui de falar um pouco sobre elas. Poderíamos, talvez, começar nossa conversa com uma pequena introdução ao seu trabalho.

Botella Bem, sou de origem espanhola, me formei em Paris. Fui de Madri para Paris e minha formação psicanalítica é inteiramente francesa. O interesse pela figurabilidade veio a partir do atendimento de um menino por minha mulher, Sara. Aliás, escrevemos sempre juntos. Sara estava com grande dificuldade com essa criança psicótica: nenhuma interpretação era eficaz no momento da separação – nem freudiana, nem kleiniana, nem bioniana, nem winnicottiana. Nada dava certo, e isso se repetia a cada sessão. Um dia, já desesperada, Sara teve a figurabilidade de um lobo e lhe ocorreu dizer, imitando-o: “E minha mãe? O que foi, você tem medo do lobo?”. O menino ficou aterrorizado, pálido, e a separação foi muito difícil. Na sessão seguinte, a mesma situação se repetiu e Sara, já menos inquieta, brincava, ria e dizia: “O que foi, você tem medo do lobo?”. Ele se maravilhou, saiu correndo do consultório da Sara, foi até a sala de espera, onde estava a mãe e disse: “Uh, uh, o lobo, o lobo”. Foi um momento de mudança, de uma interiorização de toda a sua destrutividade, de toda a sua agressividade, de todos os seus medos. Ele pôde pôr em palavras a figura do lobo, e podemos pensar que a partir daquele momento o ego dele já não estava mais submergido pelos terrores psicóticos e teve a liberdade de servir-se de uma imagem sugerida pela analista, que funcionou como uma arma absoluta contra a psicose. A partir daquele momento, era ele quem podia ser o lobo e os terrores psicóticos desapareceram. Creio que esse foi o primeiro artigo que escrevemos, e depois tentamos dizer a mesma coisa, apenas de forma mais complexa. Mas mantivemos a idéia do uso da figurabilidade como um recurso do analista para superar terrores do paciente e poder entrar em relação com as partes profundamente atemorizadas dele, seja ele criança ou adulto. No caso de analisandos adultos, existem inúmeras sutilezas, mas o fundamento tem sido o mesmo.

RBP Gostaríamos de saber como veio essa figuração do lobo para Sara. O senhor disse que foi assim, de forma simples, o que é surpreendente. E, se isso passa a ser uma técnica psicanalítica, só podemos ter a esperança de que venha, porque pode não vir, não é?

Botella Se não vem, não vem e não existe muita razão para isso. E é um problema no tratamento dos pacientes borderline quando os analistas não podem fazer uma regressão no sentido da figuração e não chegam a encontrar essa ligação com as angústias profundas do paciente. Não sei, não sabemos por que essa figuração do lobo veio à Sara. Não sei se há lobos no Brasil.

RBP O mais forte é a figura do lobo…

Botella Sara é de origem húngara e na Hungria há muitos lobos. Na Espanha também. É o imaginário de todo mundo que a fez pensar nisso. Ela não sabe por que pensou no lobo, não saberia racionalizar isso. Em algum momento, algo lhe veio para sair da preocupação, da angústia de não poder ajudar aquele menino. Pode-se chegar a uma boa figuração, mas isso depende de um grande investimento no paciente. Não é com qualquer paciente que se chega a isso. Com esses pacientes talvez haja algo em comum na estrutura, na história, algo que possa fazer com que o analista não diria se identifique, porque o analista está mais além disso, mas algo que lhe permita vibrar emocionalmente com o paciente. Mas, infelizmente, isso não ocorre ao analista tanto quanto deveria.

RBP Em São Paulo, temos uma formação principalmente kleiniana, que se baseia muito nos mecanismos de identificação projetiva. Creio que seu enfoque é diferente. O senhor poderia falar desta diferença de enfoques: a figurabilidade versus a contratransferência?

Botella Comecei a ler Bion antes de Freud, conhecia bem Bion e estava feliz, até o momento em que, não sei por que, não me bastava mais. Então comecei a ler Freud. Comecei a ler de forma muito sistemática, por ordem cronológica, e foi ao final de uma leitura de Freud com um grupo de colegas que comecei a compreender melhor Bion – ao menos, a situá-lo em uma linha e a ver que não havia nenhuma incompatibilidade com Freud e que eu poderia usar Bion para compreender melhor certas coisas em Freud.

Naturalmente, há muitos momentos de figurabilidade que devem corresponder a uma definição estrita de identificação projetiva. Não creio que baste dizer “Isto é uma identificação projetiva e pronto”. Acho que a figurabilidade tem um campo muito vasto, e há possibilidades de figurabilidade que não correspondem à identificação projetiva.

Devolvo agora uma pergunta. Poderiam me dizer se a definição clássica de Bion – a capacidade de rêverie da mãe – é uma capacidade de identificação projetiva, ou se a mãe, vendo a criança, ouvindo-a, vai acionar sua imaginação, num sentido bem amplo, para dizer à criança coisas que não estavam nela, criança? A criança está em estado de desamparo total, não pode pensar nem alucinar, por causa de seu estado de sofrimento. Há apenas o grito. Sem contar que transmite um sofrimento à mãe, que vê e ouve. Então, não creio que possamos empregar o termo preciso kleiniano ou bioniano de identificação projetiva. E a mãe tem uma imaginação que permite apontar à criança algo que ela não tinha.

Há um problema com o termo rêverie usado na Inglaterra e o mesmo termo usado na França. A reverie inglesa se escreve sem acento circunflexo. Embora eu não conheça bem inglês, do que compreendo supõe-se algo ligado à imaginação em sentido amplo. Já a rêverie francesa é bem determinada. É aquele que, ao passear, imagina: “Quando crescer quero ser médico, curar as crianças” ou “Quero ser engenheiro de estradas” ou “Quando encontrar minha amiga ou minha mulher, vou dizer isso e aquilo e ela vai responder isso e aquilo”… É uma coisa muito mais literária, de representação pela palavra, enquanto que a reverie inglesa é uma coisa mais próxima da imagem.

RBP Devaneio?

Botella Devaneio existe em castelhano, mas não creio que seja a mesma coisa.

RBP Daydreaming?

Botella Daydreaming é a rêverie francesa.

RBP Acho que no Brasil usa-se mais o sentido inglês.

Botella Creio que os ingleses separam daydreaming de reverie. Sonho diurno é como Tagtraum, em alemão. Sueño diurno, em espanhol. Devaneo seria no Uruguai, talvez. Meu espanhol se afrancesou… Uma vez, em Buenos Aires, fiz uma conferência em espanhol e alguém que não me conhecia veio falar comigo e disse: “Admiro um francês que fala tão bem espanhol”.

RBP Uma pergunta sobre o inconsciente e o irrepresentável. Como situar a diferença entre eles, se ambos não têm acesso direto ao sistema de representações? A diferença é o acesso a cada um desses territórios ou é algum tipo de contracatexia diferente?

Botella O termo irrepresentável, em português, em francês e castelhano, é muito vasto, pode ser usado tanto para acentuar algo como em “Tive tanto medo que não posso representá-lo”. Mas é um medo com uma representação. O afeto é tão grande que a palavra lobo, por exemplo, não basta para representá-lo. No entanto, em psicanálise há também aquilo que não tem acesso à representação, como apontam Winnicott e Bion. Winnicott disse que ocorreu algo na infância que não pôde ser representado. Essa é toda a noção de negativo em psicanálise, de que existem zonas psíquicas que só podem ser compreendidas em termos de negatividade. Para chegar à representação, é necessária a rêverie da mãe, que vai emprestar à criança as palavras e as imagens para que ela possa representar o desamparo. Seria Sara com lobo.

Em Freud há um problema muito agudo, uma aporia, que não se pode resolver, é preciso aceitá-la como tal: é que o inconsciente é formado de representações inconscientes. Não me pergunte qual a diferença de uma representação pré-consciente e consciente para uma representação inconsciente, porque, por definição, não temos acesso à representação inconsciente, salvo no momento em que chega a ser uma representação pré-consciente ou consciente.

A pergunta sobre o que teria mais valor, em relação ao irrepresentável, diz respeito ao id ou ich, em alemão. Devemos nos dar conta de que até 1923, quando se introduz o id, o inconsciente é formado por representações que um dia estiveram conscientes e que foram reprimidas caindo no inconsciente. O id, por sua vez, não é formado por representações. Ao contrário, é algo muito primitivo, aquilo que Freud chama moções pulsionais. A pulsão é o estado em movimento da ação, sem a capacidade de representação. E todo o trabalho da vida psíquica, a partir de 1923, com o ego e o id, deve ser compreendido sob o ponto de vista de que o psiquismo precisa fazer, desde o nascimento, todos os dias, e a cada momento, um trabalho de representencia, diríamos em castelhano.

RBP Representabilidade.

Botella Representabilidade, mas gostaria de um termo mais forte… André Green insiste muito em “travail de representance et pas de representativité”. Representance seria criar um neologismo, tanto em francês como em castelhano, para algo muito específico, que seria esse trabalho particular da vida psíquica de transformar a motion pulsionel. Para os bionianos seria a transformação dos elementos beta em elementos alfa acessíveis, por exemplo. Seria todo um trabalho de elaboração, de transformação. A mim, a idéia de trabalho agrada mais do que a de transformação, porque esta faz pensar numa transformação química, como a transformação imediata de um produto em outro. A idéia de trabalho é de elaboração, uma elaboração difícil, na qual intervêm muitíssimos elementos até chegar à representação. Para mim, o modelo sempre é o trabalho do sonho. O problema aqui é que para Bion e para Meltzer o trabalho onírico funciona o tempo todo, de dia e de noite, sem diferença. Aí me separo abertamente de Bion e de Meltzer, porque se perde algo da essência da vida, simplifica-se e uniformiza-se demasiadamente a complexidade da vida psíquica. Porém, se introduzimos a noção do trabalho psíquico de dia e do trabalho psíquico de noite, encontramos uma série de barreiras, de limites, e aí entra toda a riqueza da noção de regressão regrediente.

RBP Regrediente é um neologismo? Não é regressivo, é regrediente?

Botella Acima de tudo, não é regressivo, é uma regressão regrediente. Regrediência é um neologismo em todos os idiomas, mas que vem de Freud, do alemão regredient, que é o trabalho do sonho, simplesmente. Freud o emprega apenas para o momento em que se tem um sonho, o que me permitiu buscar algo que não fosse unicamente o fenômeno dos sonhos, mas sim de possibilidades mais amplas que só chegar ao sonho da noite.

RBP É usado em francês?

Botella Em francês se usa regression e regressif, e eu também uso as duas palavras. Para que percebam as diferenças, imagino que conhecem bem os anglo-saxões e a Winnicott. Winnicott emprega um termo importante que a mim ajudou muito, que é regressão à dependência– isso é anterior até à minha formação, creio que de um artigo de 1952. O paciente deve fazer uma regressão libidinal, ou seja, de toda a sua libido relacional, até encontrar-se em estado de dependência absoluta do analista, como a que tinha com a mãe quando ele era um bebê. É um estado afetivo. O paciente pode continuar a funcionar segundo um modo racional psíquico não-regressivo, digamos normal, mas considerando que afetivamente está no nível de um bebê. E nesse momento, diz Winnicott, a única maneira de chegar a essas zonas psíquicas muito prematuras é o analista ser a mãe, e não ser vivido como a mãe. E o analista deve se sentir como a mãe da cria, Winnicott diz isso. O que justifica que nesse processo winnicottiano o analista com freqüência possa até confessar: “Fui um analista tão mau com você, um analista medíocre, como sua mãe foi medíocre quando você era pequeno”. Para Winnicott, o fato de reviver isso, reviver essa experiência, desta vez reconhecido pelo adulto, provoca a cura e é uma forma equivalente de rememorar verdadeiramente uma recordação. Como se se lembrasse da forma representada. A diferença para a regressão regrediente é que na figurabilidade há o medo do lobo. A criança ou o adulto vai viver muito próximo do que viveu com o objeto primário, mas segue a regressão afetiva. Creio que é essa a dependência. Seria outra forma de abordar essas zonas psíquicas muito precoces. O que não quer dizer que um deve substituir o outro. Segundo o paciente, segundo o analista e a formação deste, é que se pode chegar a uma forma ou outra.

RBP O senhor poderia nos falar sobre a primazia que em sua obra é dada ao sexual, em relação a esses autores comentados? Por exemplo, ao tratar da noção de trabalho contrastando com a de transformação, e ao referir-se à primeira tópica, parece que o sexual está sempre no fundo do seu pensamento. Quanto ao objeto e à ausência dele, acho que o senhor prioriza a questão do pulsional, do resquício traumático do objeto perdido. Não o sujeito-objeto, mas a pulsão, o objeto perdido.

Botella A satisfação dele?

RBP Sim.

Botella Então eu perdi a satisfação do objeto real, corporal?

RBP A pergunta está relacionada à terceira tópica como vista no último Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), onde o senhor também estava. O relatório de Brusset propunha uma terceira tópica para abordar essa questão. Eu imaginava que o senhor preferisse trabalhar essa questão relacionando-a à primeira tópica freudiana do irrepresentável.

Botella A segunda tópica freudiana é de 1923. Na realidade, no desenvolvimento psíquico o que existe primeiro é um id que não está representado. Há um superego primitivo- arcaico kleiniano e há um ego muito pobre. É como começa a vida psíquica. Quando a vida psíquica se organiza bem, se organiza na primeira tópica. Isto é, há liberdade de pensar verdadeiramente. Quando se chega a ter um funcionamento psíquico, somos capazes de reprimir representações que nos incomodam, e, se estamos bem analisados, deixamos que a repressão desapareça e servimo-nos do que estava reprimido. Para mim, o funcionamento na primeira tópica é a liberdade de funcionamento em relação à repressão, no sentido clássico freudiano. Essa liberdade tem seu funcionamento entre os processos primários – deslocamento, condensação, alucinação – e que possa ser ligado em representações de palavras. Aí há uma liberdade absoluta, quer dizer, com os processos primários: é o sonho. Liberdade é, quando se dorme, sonhar com todo o seu deslocamento até chegar à representação que nos convém e, ao despertar, pôr aquilo em representações de palavras e nos servir daquilo. Funciona assim. Não é que eu prefi ra uma coisa à outra, está tudo aí, segunda tópica e primeira tópica.

No congresso de 2001 introduzimos a respeito da sexualidade uma idéia que se liga não a alucinação, mas a alucinatório, e a chamamos de sexual primordial. Com isso queremos dizer que, antes que se organizem os limites do corpo, há uma vida afetiva, que podemos chamar de sexual, em sentido amplo. Ela funciona sobretudo quando a mãe não está presente, e a criança pode alucinar a presença da mãe, da comida, do peito da mãe e com minha alucinação, que certamente tem seus limites, porque existe a biologia. Esse é o primeiro tempo e logo a mãe vai se interessar muito pelo corpo da criança: “Coma, menino”, “Mame, menino”. Assim, a boca passa a estar investida de uma força: “Menino, não faça cocô. Vou limpar sua bunda”. E a mãe tem um filho com um pinto e vai ficar encantada com as ereções do bebê. Mas com uma filha a coisa se complica em relação ao investissement, não culpável, por parte da mãe, pelo sexo da menina. Talvez não hoje em dia. Mas o que é importante é que a mãe sinaliza as zonas erógenas. E assim o conjunto, a pele, com os cuidados da mãe, o banho etc., vai investir a criança dos limites de seu corpo. Nesse momento, a sexualidade, que era primordial alucinatória, converte-se em sexualidade, em bien cochonne, como se diz em francês. A sexualidade vai passar pelo gosto de fazer cocô, de fazer ou não fazer xixi, de ter uma ereção. A sexualidade infantil passa pelo corpo, pela pele e pelos limites do corpo. Mas é evidente que, para que essa sexualidade esteja bem sinalizada nas zonas erógenas, deve corresponder ao melhor nível de um bom funcionamento na primeira tópica. Nos estados-limite ou borderline, talvez se possa investir uma zona de forma perversa, mas o equilíbrio das zonas erógenas como limite do corpo é o que falta a esses pacientes. O borderline se confunde com o analista porque não pôde organizar uma sexualidade passando pelos limites do corpo. A zona erógena – a boca ou o ânus – tem a particularidade de ao mesmo tempo se fechar e se separar do objeto: fecho a boca e já não quero mais o peito, ou não faço cocô como castigo à minha mãe, ou, ao contrário, abro e estou com minha mãe. Isso é ao mesmo tempo uma separação e uma ponte relacional com o objeto mãe, que não é um objeto primário, e sim um objeto evoluído, que se permite estar com a mãe sem se despersonalizar, sem perder o sentido de identidade.

RBP Não sei se você pensa como uma anterioridade a questão do auto-erótico. Sei que para você isso também é importante, e que Pierre Fédida desenvolve muito essa perda do auto-erótico, que é também a perda da possibilidade de vida. Do auto-erotismo vem o autismo, e Fédida diz que é preciso relançar o auto-erotismo de uma certa paixão. (Acho que talvez isso remeta um pouco àquilo que Green chama de função objetalizante.) Em todo caso, relançar a vida nesse sentido.

Botella Vocês conhecem Geneviève Haag? E se interessam por autismo?

RBP Sim.

Botella O primeiro artigo que escrevemos foi com Geneviève Haag, sobre autismo. Naquela época, Sara e eu tratávamos de crianças autistas no mesmo centro que Geneviève Haag, e lá, pela primeira vez, descrevemos o auto-erotismo primário. Depois conhecemos Meltzer. Naquela época tratava-se de um auto-erotismo não organizado, muito sensorial, o auto-erotismo primário dos autistas. Por exemplo, a luz: o que me interessa no autismo é o efeito ou o dano que a luz forte tem sobre o olho, esse sofrimento no olho. Não é um auto-erotismo que lhe permite separar-se do objeto que produz o interesse; a luz é o dano sobre o olho, e a inseparabilidade entre o efeito que sente e a própria luz. Então é um auto-erotismo primário, que funciona de forma desorganizada. Pode ser o olho, pode ser um ruído, mas nunca estão unificados. E o auto-erotismo que chamamos aqui de secundário é aquele que passa pelo objeto, pela mãe, e chega a ser uma unifi cação dos diferentes tipos de sensações, dos diferentes órgãos ou da pele do corpo marcada pela mãe. Então esse auto-erotismo secundário leva em si um substrato da mãe, ser relacional, apesar de estar prestes a se desligar dela. Mas essa mãe não é o objeto ausente do autista. Falei de Geneviève Haag, que trabalhou no tratamento de autistas. Trabalhou muito com Meltzer, Francis Tustin e Esther Bick, que foi aluna de Tustin. Sara apresentou o caso de um autista a Francis Tustin em Paris e foi uma maravilha, porque nos entendíamos perfeitamente quando falávamos de clínica. Porém, quando começávamos a falar de teoria, era uma tristeza… Quando queremos racionalizar o que sentimos com os pacientes, nos tornamos bionianos, freudianos, kleinianos…

RBP Em relação às diferenças e semelhanças, gostaria de perguntar o seguinte: eu compreendi que a questão da figurabilidade – o trabalho de figurabilidade – vai além do conceito de identificação projetiva. Não só porque fica implícita a regrediência, mas basicamente porque o trabalho de figurabilidade compreende elementos do analista ou da mãe em relação ao objeto, ao paciente. No entanto, a representabilidade do psiquismo seria diferente da representação de elementos beta em elementos alfa? Representância… seria diferente? Representância seria o trabalho de fazer representável aquilo que não é representável até aquele ponto. A transformação de elementos beta em alfa é diverso de representância ou há equivalência?

Botella Eu acho que sim. Tudo é transformação na vida psíquica. Se não há transformação, há a pobreza psicótica ou autista da repetição ou da pulsão de morte. O psiquismo deve transformar-se completamente. O trabalho de representância ou transformação bioniana… não sei como dizer. Mas já disse uma coisa que você gostou e que vou repetir: o importante é que esqueçamos os autores, esqueçamos Freud, Bion, Winnicott. Houve um momento em que o Brasil teve de tornar-se antropófago para digerir toda a cultura exterior e criar uma coisa bem brasileira. Esta manhã visitei a Pinacoteca do Estado de São Paulo e fiquei maravilhado ao sentir pela primeira vez a evolução da arte brasileira e como se chegou a algo original. Acho que nós, psicanalistas, temos que chegar a isso. Bion e Winnicott morreram há trinta anos! E Freud mudou em trinta anos. Em 1895, dizia: é necessário encontrar a lembrança da menina, a sedução, o abuso; sem encontrar a lembrança, não há cura. Trinta anos depois: se não se encontra a lembrança, se ela é uma construção, isso tem o mesmo valor terapêutico. Temos que adquirir essa liberdade para integrar o bom do passado, deixar o que espontaneamente se vai. Cada um deve digerir o seu Freud, o seu Winnicott, o seu Bion. Um psicanalista francês dizia que se deve fazer algo darwiniano em psicanálise… Que ela seja mais forte, que resista. Apesar de não sabermos o que é ser mais forte…

Em relação à pergunta, não sei se transformação é o mesmo que representância. Eu preciso dessa palavra, o que não quer dizer que ela seja a melhor. Atualmente, a grande questão é como fazer pesquisa em psicanálise. Há duas soluções, uma de Fonagy e outra do alemão Werner Bohleber e sua mulher Ursula, um Fonagy soft … É a tentativa de demonstrar que a psicanálise é algo verdadeiramente terapêutico, isto é, um modelo médico: há uma infecção, toma-se um antibiótico, a febre baixa, cura-se o doente. Também na psicanálise, haveria um sintoma, o paciente seria tratado, a fobia desapareceria, o sintoma desapareceria. É um tipo de pesquisa feita com espírito científi co positivista clássico. As coisas não são tão claras na vida psíquica. Uma fobia pode desaparecer logo que se inicia o tratamento, mas o paciente estar num estado psíquico que não se resume ao sintoma. Eu defendo outra investigação, que parte do que se vive na clínica. O problema é que eu sinto tal coisa com um paciente, outro analista sente outra coisa com outro paciente e diz isso com outras palavras. Como dizer de forma suficientemente racional para poder transmitir aos outros colegas o que acreditamos ter descoberto numa sessão com um paciente? Eu descubro a figurabilidade e fi co contente. Mas é essa a forma que tenho para sentir algo? Se Thomas Ogden diz reverie, vai descrever algo que sentiu muito bem. Todo o problema é a figurabilidade ou reverie de Thomas Ogden… É a mesma coisa? É para outra geração, talvez. As noções não são concretas e compactas como um livro comparado a outro livro, com tanto de peso e tantos centímetros. São coisas muito aproximadas. A única solução mais aceitável são os intercâmbios, como o que estamos fazendo agora. Viva o Comitê de Prática Analítica e Atividades Científi cas (Capsa).3

RBP Parece que há uma tendência nessa direção: na Federação Latino-Americana há um programa como o Capsa, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). A Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) também tem um programa semelhante. É bom estimular os intercâmbios e não apenas escutar os grandes mestres – se é que se deve pensar assim neles –, é bom discutir a clínica. Fizemos um acordo entre a nossa sociedade, a Rio II e a de Porto Alegre, segundo o qual os membros poderão se encontrar e conversar sobre o material clínico. É uma boa tendência atual.

Botella Para isso, o mais importante é convidar analistas que não tenham a mesma opinião. Se vocês aqui são bionianos, devem convidar franceses, e que os franceses convidem bionianos. Eu sou representante do Capsa na Europa e na França, por isso estou fazendo publicidade. Os europeus convidam muito, os americanos também. Os que nunca convidam são os norte-americanos.

RBP O senhor sempre coloca a importância freudo-lacaniana. Fala das três influências – freudo-lacaniana, autores ingleses e a escola psicossomática francesa. Poderíamos falar em Lacan, que tem predominância na psicanálise francesa, e citar a questão da linguagem. A crítica que Lacan faz em “O discurso de Roma” é que a psicanálise se desenvolveu praticamente desconsiderando a questão da linguagem, que é fundamental em Freud. Como o senhor se posiciona em relação a Lacan? E como pensa a linguagem na psicanálise?

De modo restrito, quando o senhor falou sobre figurabilidade, no exemplo da experiência inaugural da colaboração com Sara, a figura do lobo é um movimento regrediente, segundo a Traumdeutung. Sua esposa foi da imagem do lobo à palavra lobo, e essa palavra teve todo o efeito que o senhor descreveu. Então todo o efeito foi para a palavra. Se pegarmos o esquema da Traumdeutung, há uma via progrediente da figura à palavra, e não regrediente da palavra à figura. Na Interpretação dos sonhos, Freud diz que no trabalho do sonho as palavras regridem e se transformam em figuras. Em que medida o senhor levaria a sério esse jogo entre palavra e figura?

Botella Quantos meses vocês me dão para responder a essas perguntas? O próximo CPLF é sobre a linguagem. E estamos todos muito empolgados, porque é um problema fundamental, em particular na França: o problema da relação com a linguagem, com Lacan por trás. Vamos por partes. Da figura à palavra, é progrediente. Todo o problema é como se chegou à figura, e não se pode chegar a ela, nesse caso, senão num movimento regrediente. É como num sonho: num dado momento, Sara está numa situação crítica, mas tem a facilidade de fazer uma regrediência sem pensar racionalmente e vai estabelecendo uma série de ligações entre elementos heteróclitos e heterogêneos, como no sonho. Podemos imaginar o que ocorreu no psiquismo de Sara para que a imagem do lobo lhe viesse: “Não entendo nada, não posso fazer nada. Tenho medo de não poder curar este menino. Ontem li o caso “O homem dos lobos”, de Freud. Já é uma hora e estou com muita fome, quero fazer uma série de coisas…”. Esse é o princípio de um sonho. No momento que se produz um sonho, uma série de elementos heterogêneos é desencadeada no psiquismo. Num sonho clássico, à noite, há ameaça de despertar, porque já é dia, por exemplo. Ou porque quero tirar a manta por estar com calor. E podemos imaginar que há um resto diurno que está perdido por aí, que não foi possível resolver: o encanador… Além disso, há um desejo infantil inconsciente que quer se apresentar. Então, para não despertar, esses elementos heterogêneos têm que se transformar por meio de um movimento que chamamos de convergência, pois tudo converge. E há certa convergência em uma imagem que pode permitir que se continue dormindo. Sonho, resolvo todas essas coisas heteróclitas e posso continuar a dormir. No caso de Sara, isso se converteu na imagem do lobo. A imagem do lobo o transmite em uma palavra. O importante é que o menino também percebe o estado de Sara – que está preocupada – e apropria-se mais da imagem que da palavra. Sara acompanha os movimentos dele e, com a expressão do rosto e da mão, com movimentos de lobo, dramatiza a palavra. E o menino vai embora dramatizando aquele mesmo gesto e com a palavra lobo na boca. Em relação a Lacan, a primeira coisa que ele disse a propósito da regrediência foi: é algo incompreensível em Freud. Não tem nenhum sentido. Disse isso antes do congresso de Roma, creio que em 1952. Durante uma discussão num seminário alguém disse que regressão e regrediência não servem para nada. Quase digo que era uma aporia em Freud. E a partir daí o salto. Agora só lhe interessa a linguagem.

Green já tentou responder a Lacan a propósito da linguagem, no congresso em Aix-en-Provence. Há intenção de resposta por parte de Green. Naturalmente, nós também não estamos satisfeitos e agora há o congresso em Paris, em maio de 2007. Sobre a relação de Paris e da minha Sociedade com Lacan: se a psicanálise francesa, não lacaniana, da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e da PF, tem alguma originalidade, ela existe graças a Lacan e para combater Lacan. Não havia possibilidades para Laplanche, para Pontalis ou para Green, que era o aluno preferido de Lacan: ou ser lacaniano ou conhecer Freud melhor do que Lacan conhecia. Se na França conhecemos Freud tão bem, é pelo fantasma, pela ameaça de Lacan e para nos defendermos. Mas isso bastou? Para a PF creio que sim. Para a SPP não bastou mais, e então fomos conhecer Winnicott, Bion, graças a Green. E isso permitiu à psicanálise francesa criar certa originalidade. A idéia de figurabilidade é um produto dessa mescla: ser freudiano para não ser lacaniano. Mas considerando que Lacan era de uma profundidade impressionante – embora discutível do ponto de vista da prática, não como grande psicanalista, mas como pensador. Do ponto de vista psicanalítico haveria muito o que discutir, mas se eu sou tão sensível à linguagem, por exemplo… No meio analítico há sensibilidade à palavra, e isso foi influência de Lacan.

RBP Seria possível você aprofundar a sua posição sobre a linguagem neste momento?

Botella Je ne connais pas. Não compreendo nada sobre a linguagem. Não me interesso nada por isso e tenho para com ela a mesma atitude que tenho diante da pulsão de morte. Quando perguntado sobre o que pensava de Deus, um cientista respondeu a Napoleão: “Senhor, não preciso dessa hipótese no momento”. Com a linguagem seria algo mais sutil, mas com a pulsão de morte… Por enquanto posso passar sem ela na minha concepção particular. Por enquanto. É uma atitude fóbica da minha parte, talvez, mas é que não gosto da morte, não a compreendo. E enquanto puder me explicar as coisas com o que sinto, funciona assim. Volto ao drama da pesquisa em psicanálise. Todo pesquisador está limitado pela sua estrutura, por seus gostos, por sua cultura. E nunca tornaremos a psicanálise uma ciência o mais exata possível, pois com isso a mataríamos. Entretanto, a psicanálise é uma ciência a condición, porque é um sistema de pensamento que tem noções fundamentais, com um sistema relacional entre essas noções. Cresce como as outras ciências, mas não pode ser demonstrada de forma lógica. Acho que é preciso dar à psicanálise o sentido de ciência, numa acepção bem ampla de ciência. Não se deve limitá-la à noção de ciência empírica… universal.

RBP A RBP decidiu fazer um número dedicado ao tema do 66º CPLF – a proposição, por Brusset, de uma terceira tópica, de modo a conciliar a teoria da relação de objetos com a teoria clássica freudiana, a teoria das pulsões. Pareceu-me que no congresso muitos não estavam muito entusiasmados com a idéia de chegar a uma terceira tópica. O que você gostaria de nos dizer sobre uma possível terceira tópica? Parece-lhe algo que deva ser promovido, buscado? ou o senhor teve a mesma impressão, de que não houve muita adesão a ela?

Botella Como você disse, houve uma decepção geral com o tema e acho que o próprio Bernard Brusset estava decepcionado com a tentativa de estabelecer uma terceira tópica. Eu tive uma reticência de fundo, isto é, confrontar a teoria pulsional e a teoria da relação de objeto é promover um conflito fora de época. Isso foi importante quando Melanie Klein irrompeu com a idéia da relação de objeto. Em geral, funcionamos por oposições. Eu defendo uma coisa, você outra e, sem podermos nos entender, entramos em guerra. Isso é o mais fácil. O mais difícil é que cada um se identifique com o seu oposto, com a contradição, para ver quais são os pontos de encontro e os de separação. Hoje me parece que não tem sentido fazer separação entre pulsão e objeto, pelo menos a partir de Winnicott. A idéia de um tempo primário no que chamamos de relação de objeto é um abuso de palavras que fazemos com o psiquismo do adulto, como se o bebê pudesse estabelecer uma diferença entre ele e o objeto-mãe ou o peito. Demora muito para a criança perceber que o que lhe faz falta é algo exterior. O que o bebê sente é que num certo momento ele pode alucinar a satisfação de ter a mãe, que quando a coisa não se passa bem a mãe real chega no momento certo. Mas a criança não se dá conta da diferença, o psiquismo primitivo não se dá conta da diferença. Há nesse momento algo muito interno, que é a satisfação de não sofrer e de dormir de novo. Imagino que devemos extrair algo do fato de que existe um primeiro tempo – e Green disse isso também – em que pulsão e objeto são a mesma coisa e inseparáveis. O que mais se aproxima disso são os pacientes borderline adultos, quando se chega a um estado de regrediência tal que se permite intervir. Se o paciente borderline te diz: “Você me fala que o que eu sinto é porque estou fazendo uma transferência da minha mãe de quando era pequeno. É muito bonito isso, muito analítico, mas não é verdade. Você é igual à minha mãe, tive muito azar em cair com um analista idêntico à minha mãe”. Nesse momento não se pode dizer que haja diferença, um desejo do paciente que tenha sido transferido de verdade. Como o paciente vive a coisa, isso é real. Ele não pode perceber a diferença. Com a mãe o sentimento de temporalidade não existe. Se o analista pode fazer uma regressão regrediente no mesmo nível que o paciente, vai encontrar a atitude que permite ao paciente objetalizar com um objeto diferente o que ele viveu e que está revivendo naquele momento. Quer dizer então que é todo o problema da atualização da sessão. Se é um neurótico, se faz uma transferência, uma interpretação: é como sua mãe. E a cada momento vai reconhecer que o passado foi assim. Com o borderline, nunca chegará a lembrança de que foi assim. Mas vai haver o momento em que se lembrará: “Numa sessão há dois ou três anos, você me disse que eu era como a minha mãe”. Então tem uma lembrança encobridora da sessão, que remete ao passado, como se ele pudesse lembrar que foi assim com a mãe. É uma construção do passado que permite introduzir uma temporalidade. A própria análise constrói a história temporal. O trabalho da análise. Dois ou três meses depois, o paciente vai se lembrar do que o analista dizia um ano antes. Nesse momento, vai falar: “Agora me lembro que você dizia que eu era como a minha mãe, quando eu tinha um ano, seis meses, cinco anos. E agora percebi que é verdade”. Vai construir um passado que nunca existiu.

RBP É uma erotização.

Botella Com certeza.

RBP Uma última palavra?

Botella Agradecer de todo o coração, porque para qualquer autor é muito agradável ver que as pessoas leram o que custou tanto escrever. E é agradável também para o narcisismo do autor… É para isso que trabalhamos e nos matamos!… [risos]. Se alguém tem de agradecer por alguma coisa, é o autor, acho. Muito obrigado.

 

 

Endereço para coorespondência
César Botella
11 rue Jean de Beauvais
75005 – Paris – France
E-mail: cbotella@club-internet-fr

 

 

1 Entrevista realizada em 10 de setembro de 2006, em São Paulo, pelos psicanalistas Ana B. Hoff man, Alan Victor Meyer, Gilka Zlochevsky, Inês Zulema Sucar, João Baptista N. F. França, José Martins Canelas Neto, Maria Elisa F. Pirozzi, Plínio Montagna, Sandra Lorenzon Schaff a e Th ais Blucher.
2 Resenha de Luciane Falcão publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, 38 (2): 475-488, 2004 [César e Sara Botella, La figurabilidad psíquica. Buenos Aires: Amorrortu, 2003].
3 Intercâmbio entre as várias regiões, promovido pela IPA.

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