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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.1 São Paulo mar. 2007

 

DIÁLOGO

 

Botella, Ogden, Green, Ferro, Bion: comentário à entrevista de César Botella

 

Botella, Ogden, Green, Ferro, Bion: comment to César Botella’s interview

 

Botella, Ogden, Green, Ferro, Bion: comentario a la entrevista de César Botella

 

 

Elias Mallet da Rocha Barros1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor discute a articulação de conceitos propostos nos trabalhos de C. Botella com outros operados por W. Bion, T. Ogden, R. Britton, E. R. Barros e A. Ferro, sugerindo que a partir desses diálogos entrecruzados é possível ver um intenso pensamento psicanalítico em desenvolvimento. A articulação se dá em torno do conceito de representação e/ou ausência de representação. O autor também sugere que a América Latina, dada a maneira particular como assimila conceitos novos integrando-os num novo contexto, é o espaço ideal para observar essa articulação realizada. O comentário também aborda a questão dos processos de desenvolvimento dos símbolos e sua lógica interna.

Palavras-chave: Representação; Ausência de representação; Irrepresentável; Símbolo; Pictograma afetivo.


RESUMEN

El autor discute las articulaciones de los conceptos en los trabajos de C. Botella con otros desenvolvimientos operados por W. Bion, T. Ogden, R. Britton, E. R. Barros e A. Ferro, sugiriendo que a partir de esos diálogos entre cruzados podemos ver un intenso pensamiento psicoanalítico en desarrollo. La articulación ocurre alrededor del concepto de representación y/o ausencia de representación. También sugiere que América Latina, dada la manera particular de absorber conceptos nuevos integrándolos a un nuevo contexto, es el espacio ideal para ver esta articulación realizada. La cuestión de los procesos de desenvolvimiento de los símbolos y su lógica interna es también considerada.

Palabras clave: Representación, Ausencia de representación, Irrepresentable, Símbolo, Pictograma afectivo.


ABSTRACT

The author discusses the articulation of concepts in C. Botella’s articles with other developments operated by W. Bion, T. Ogden, R. Britton, E. R. Barros and A. Ferro suggesting that through such intertwined dialogues one is able to observe an intense psychoanalytical thought being developed. Articulation occurs around the concept of representation and/or absence of representation. The author also suggests that Latin America, in its peculiar way of grasping new concepts in a new context, is the ideal space to observe such articulation being accomplished. The matter of symbols’ development processes and its internal logic is also examined.

Keywords: Representation, Absence of representation, Irrepresentable, Symbol, Aff ective pictogram.


 

 

Queria iniciar cumprimentando a editoria da Revista Brasileira de Psicanálise, que entre outras coisas seleciona para as entrevistas autores realmente relevantes da psicanálise mundial, aqueles que estão apresentando as questões mais desafiantes do momento e que assim contribuem para ampliar nosso potencial reflexivo. Um autor se caracteriza como tal não tanto pelas respostas que fornece, mas pelas questões que formula, indagações que não podem mais ser ignoradas depois de formuladas. César e Sara Botella são autores centrais na psicanálise contemporânea, devido à acuidade das reflexões e das questões críticas que têm apresentado sobretudo na área da teoria da representação e da figuração. Sara e César Botella são pensadores que já não podem mais ser ignorados.

Foucault ressalta que a função do autor excede sua própria obra. Recorro a essa reflexão para dizer que é possível que neste comentário eu sugira articulações e implicações das contribuições de Botella ainda não formuladas por ele – entre elas algumas com as quais talvez até possa não concordar. Recorro também a Foucault para garantir por parte de Botella perdão a priori por possíveis excessos e pelas articulações talvez ousadas que pretendo sugerir. É bom sempre lembrar que “bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que bons autores” (Jorge Luis Borges).

Meu interesse, aqui, é apontar a confluência de problemáticas e respostas presentes em diversos autores e centros de cultura psicanalíticos, de modo a indicar que existe hoje um pensamento psicanalítico em efervescência. Botella é um autor entusiasmante, que tem o poder de sugerir articulações possíveis bastante amplas. Controvérsias genuínas são importantes no processo de articulação de conceitos. Botella menciona um colega que diz que “se deve fazer algo darwiniano em psicanálise… Que ela seja mais forte, que resista”. É na controvérsia que alguns conceitos se revelam fortes e sobrevivem, produzindo novas articulações teóricas que representam formas de vida conceitual mais sofisticadas e com capacidade de dar conta de um número maior de fenômenos, portanto com maiores condições de sobrevivência. É importante dizer que a psicanálise contemporânea, na medida em que vive uma crise que lhe ameaça a sobrevivência, tem necessidade de controvérsias genuínas que ajudem a selecionar aquilo que sobreviverá à crítica epistemológica, para poder superar as forças destrutivas que a ameaçam. Precisamos de conceitos ao mesmo tempo mais amplos e mais precisos, capazes de abarcar e reformular-se diante dos obstáculos que a modernidade nos oferece.

Uma das características centrais da tradição analítica latino-americana é a produção de uma síntese teórico-clínica resultante da nossa grande capacidade de assimilar idéias novas e estrangeiras. Nesse sentido, somos praticantes da antropofagia cultural. O medo da distância e do isolamento leva os colegas latino-americanos a ler e incorporar um amplo espectro de autores, estendendo-se de diferentes partes da Europa (França, Inglaterra, Itália) à América do Norte (Estados Unidos e Canadá), e incluindo seus próprios escritores, que abrangem várias culturas e tradições (Brasil, Chile, Uruguai, Peru, Argentina, México). A identidade latinoamericana é forjada num fluxo ininterrupto de idéias emprestadas por culturas e continentes distantes, e é precisamente através desse influxo que singularidades e diferenças chegam a se definir. Vale a pena voltar às observações literárias de Antonio Candido a esse respeito:

[…] os mecanismos de adaptação, ou seja, os meios pelos quais infl uências foram incorporadas, é o que constitui nossa originalidade – o que, no nosso caso específi co (da Literatura), é a forma pela qual elementos alheios foram incluídos em um novo contexto.

Em outras palavras, a invenção latino-americana está na rearticulação de questões derivadas, que brotam às vezes de um ponto de vista específico e de uma maneira muito característica de incorporar influências. A psicanálise latino-americana não rompeu e não pode romper com outros centros onde o conhecimento é produzido. Entretanto, seus representantes aprenderam a relacionar-se com eles de forma original e singular, através da síntese que foi elaborada. Digo isso porque os comentários de Botella me inspiraram os mais primitivos pendores antropofágicos. Quis engolir as idéias de Botella junto com as de Bion e de Thomas Ogden, Ron Britton, Antonino Ferro, Stefano Bolognini, misturá-las com as minhas e metabolizá-las na forma de comentários, adições e sobretudo de articulações com aquelas apresentadas na entrevista. Ou seja, gostaria de promover um diálogo entre os diversos modelos apresentados por esses autores – como menciona Botella, essa é a proposta do Comitê de Prática Analítica e Atividades Científicas (Capsa), o qual presido – e me associar a Botella na recomendação de nos tornar novamente antropófagos de idéias para que possamos construir nossa originalidade.

César Botella inicia o relato de sua trajetória citando a seguinte situação: durante uma sessão difícil com um menininho aterrorizado, Sara, sua esposa, quando já não sabia mais o que fazer, teve à mente a figuração de um lobo e perguntou, já menos inquieta: “O que foi? Você tem medo do lobo?”. Creio que essa experiência concentra algumas questões centrais e inovadoras que preocupam diversos autores contemporâneos e que, a meu ver, produzem as reflexões mais criativas presentes hoje no cenário do pensamento psicanalítico mundial.

Bion nos conta em Cogitations (1992, p. 167-168), para ilustrar seu conceito de trabalho de sonho alfa: se um amigo lhe perguntasse onde passaria as férias, visualizaria naquele instante a igreja de uma pequena cidade não muito longe do vilarejo onde passaria as férias. O surgimento dessa imagem não o surpreende, mas para Bion é digno de nota o fato de que isso tenha sido resultado não apenas das palavras do amigo, mas da totalidade daquele momento da experiência que foram convertidos na imagem específica. A produção dessa imagem é parte de um processo de assimilação mental e ilustra o que Bion chama trabalho de sonho alfa, que é contínuo dia e noite.

Gostaria de refletir sobre o significado desse processo e articular o trabalho de Botella com outras contribuições, extraindo dessa articulação pontos de reflexão significativos para fazer avançar o pensamento psicanalítico. Tanto a imagem da igreja (Bion) como a do lobo (Sara Botella) são evocadas na mente e, a meu ver, são expressivas de um conjunto de significados conscientes e inconscientes que contém uma captação de totalidades relacionais daqueles indivíduos com o mundo e, no caso, da sessão, do pequeno paciente. Nesse sentido, a imagem do lobo não só representa alguma coisa mas também expressa algo, como tenho acentuado em outros trabalhos. A distinção entre representação e expressão é essencial, segundo meu ponto de vista pessoal.

Ogden (2007), em artigo sobre Searles, acentua a importância de “transformar algo invisível, e no entanto presença sentida num contexto emocional, em um conteúdo psicológico, algo sobre o qual o paciente pode falar e pensar”. Descreve esse processo como “pôr a experiência do avesso” (turning experience inside out). Segundo Ogden (2007), trata-se ainda de transformar uma experiência ou qualidade do mundo interno do paciente – num primeiro momento não-nomeável e muito assustador – em algo simbolizável, que pode assumir a forma de uma imagem visível, como acontece em sonhos. A partir daí o paciente e o analista podem nomear a experiência e pensar a respeito dela.

Cito Ogden neste contexto para sugerir que existe uma articulação invisível – mas que pode se transformar em algo visível e pensável – entre o pensamento de Botella (formação francesa, em Paris) e o de Ogden (em San Francisco). Penso que ambos os autores poderiam se beneficiar se um diálogo fosse estabelecido. O que Botella diz também se articula com o que tenho pensado (minha formação foi britânica e vivo e trabalho em São Paulo) sobre a questão do duplo caráter do símbolo (representação e expressão) e sua relação com o trabalho psíquico de elaboração – tema de alguns trabalhos que apresentei tanto em nossa Sociedade como no exterior.

Antes de aprofundar este comentário, gostaria de citar um trecho da entrevista de Botella:

Sara é de origem húngara e na Hungria há muitos lobos. Na Espanha também. É o imaginário de todo mundo que a fez pensar nisso. Ela não sabe por que pensou no lobo, não saberia racionalizar isso. Em algum momento, algo lhe veio para sair da preocupação, da angústia de não poder ajudar aquele menino. Pode-se chegar a uma boa figuração, mas isso depende de um grande investimento do paciente.

A seguir, César Botella menciona o conceito de identificação projetiva, dizendo não lhe basta afirmar que algo “é uma identificação projetiva”. E comenta que para os franceses rêverie está diretamente associada ao passeio da imaginação.

“Não creio que baste dizer ‘Isto é uma identificação projetiva e pronto’” (para quem será que bastaria, quem seria aqui o interlocutor de César Botella?). O que me interessa é estabelecer a função de uma identificação projetiva, tentar compreender por que meios ela é transmitida, que usos o analista pode fazer dela, qual é a relação com os processos da imaginação (o livro L’Imagination, de Sartre, pode nos ser útil aqui).

Nino Ferro (1995) nos fala das muitas histórias emocionais possíveis na mente do paciente, que são representadas por imagens sincréticas dessas emoções. Não seria o caso do lobo? Mais uma vez, meu objetivo é trazer outro pensador, esse italiano de Pavia que nos fala que “o sonho tem a capacidade de reunir e colocar em imagens humores ee emoções ainda não pensáveis” (p. 104, grifos meus).

Cabe fazer algumas considerações sobre o caráter expressivo dos símbolos. Os símbolos tanto representam algo (estão no lugar de) como expressam esse algo (assumem determinada forma não-aleatória para exprimir essa transposição). Assim, não só representam ou descrevem emoções, mas também comunicam emoções mais ou menos específicas, produzindo-as (é isto que chamamos expressividade) no outro, isto é, no interlocutor. Essas emoções, no caso das imagens visuais, entre elas as oníricas, estão corporificadas na própria forma assumida pelos símbolos. Não se trata nunca, portanto, de traduzir ou decodificar os símbolos.

A perda da capacidade de representar e de expressar por parte dos símbolos tem sérias conseqüências mentais. O mesmo poderia ser dito da perda da capacidade de captar representações e/ou a expressividade das imagens mentais conscientes e inconscientes.

Hanna Segal (1991) sublinha que os símbolos são necessários para superar a perda do objeto, não para negá-la; são, portanto, conseqüência de um trabalho contínuo de luto, ou seja, frutos de elaboração. A vida psíquica humana, nesse contexto, poderia ser descrita como busca contínua de união/fusão com o objeto, seguida sempre da necessidade de lidar emocionalmente com a ausência dele (de elaborar a ausência). É por meio do processo de construção de símbolos, sobretudo no trabalho onírico, que ocorre boa parte do processo de elaboração psíquica. Metaforicamente, estamos dizendo que digerimos nossas emoções, frutos dos múltiplos encontros com nossos objetos internos e externos, por meio da construção de símbolos inconscientes, que freqüentemente podem ser vistos no acompanhamento dos nossos sonhos, quando dormimos. Sugiro que o trabalho onírico descrito por Freud, além de transformar os pensamentos latentes em conteúdos do sonho manifesto – usando condensação, deslocamento e consideração de figurabilidade –, também compreende um processo por meio do qual o significado é apreendido, construído e transformado em elemento expressivo não-discursivo, com base na representação por imagens pictórico-figurativas. Nesse processo, transformamos e criamos novos símbolos que ampliam nossa capacidade pessoal de pensar sobre os significados das próprias experiências emocionais e de nossas relações com o mundo. É claro que nessa operação são empregados os mecanismos acima mencionados de condensação, deslocamento e consideração de figurabilidade.

Bion, em Cogitations (p. 233), diz explicitamente que o aspecto central do sonho não está no conteúdo manifesto, mas na experiência emocional, que é trabalhada pela função alfa, passando a ser, então, material suscetível de ser inconscientemente elaborado. Nesse mesmo livro, constituído de notas (não é, portanto, um texto definitivo), Bion diz que o sonho tem uma lógica que é “narrativizada” (narrativized) (p. 135). Do vértice psicanalítico, sempre buscamos a relação da experiência emocional com o que Green (1999) chama núcleo significativo da experiência (kernel of meaning). Ou seja, a experiência emocional tende a se articular em torno de certos núcleos que operam como uma espécie de pólos de imantação.

Gostaria de conjecturar que a função de elaboração dos sonhos é desempenhada por um processo de progressão das representações através de níveis de qualidades formais. Representações que passaram a estar disponíveis por meio do sonhar – sob a forma que chamei, em outro trabalho, pictogramas afetivos (Barros, 2000) –, principalmente em resposta às interpretações, quando a pessoa está em análise. Uso o conceito de pictograma para me referir sobretudo a uma maneira muito inicial de representação mental inconsciente das experiências emocionais, fruto da função alfa (Bion, 1963), que cria, por meio de figurações, símbolos para o pensamento onírico, como alicerce e primeiro passo na direção dos processos de pensamento. Um pictograma não é conseqüência de uma escolha nem de criação livre, mas das leis que governam a atividade de representação. Poderíamos dizer que, mesmo quando o indivíduo não está em análise, essas modificações dos pictogramas afetivos ocorrem e são fruto de transformação de significados via um trabalho mental de elaboração que configura o que Bion chamou aprender com a experiência (que contém elementos semelhantes ao que ocorre em resposta a uma interpretação psicanalítica), experiência vivida, propiciada por vários contextos da vida. Portanto, as imagens visuais usadas no trabalho onírico “aumentam em complexidade, sofisticação e em nível de abstração” (Meltzer, 1978, p. 73). Esse crescimento “amplia a generalidade da formulação mental, aumentando igualmente, dessa maneira, a especificidade da utilização” (id., ibid.).

Em conformidade com um trabalho anterior, minha tese neste texto é de que é através desse meio (progressão da representação em qualidades formais) que as capacidades pensantes da vida afetiva se desenvolvem e passam a fazer parte do processo do que se poderia chamar, metaforicamente, metabolização da vida emocional. Essa metabolização ocorre com a migração do significado ao longo de vários níveis do processamento mental. A interpretação do analista revela, na linguagem descritiva das emoções e experiências vividas e transformadas, a lei que estrutura o padrão dessas migrações, com todas as tensões e contradições.

Estamos tratando, quero enfatizar, de representações da vida emocional tornadas inconscientes, seja por introjeções, cisões ou repressões. Devemos lembrar que a repressão não opera na experiência em si, mas na lembrança dessa experiência. Assim, o reprimido também é elaborado por meio de um novo sistema de simbolização que integra os elementos mnêmicos em um nível de complexidade superior do pensamento, tanto nos aspectos ideacionais como afetivos. Boa parte das experiências emocionais são elaboradas no espaço transicional que chamamos de consciência, mas boa parte ocorre fora desse lugar, inconscientemente, no sentido de um processo contínuo que pôs a relação analítica em marcha.

Penso que a figura do lobo, que ocorre a Sara Botella e serve de base para discutir uma questão fundamental trazida por César Botella nesta entrevista, é ao mesmo tempo uma representação e uma forma expressiva do medo que aquela criança sente. Ela é evocadana mente de Sara e, como diz César, parte de uma “imaginação que permite apontar à criança algo que ela não tinha”.

César Botella comenta que a imagem/figura do lobo contém um afeto tão grande que a simples palavra lobo “não basta para representá-lo”. Estou de acordo. A palavra pode representar os medos, porém a imagem é necessária para evocar/expressar esses medos. É nesse ponto que se torna importante a diferenciação que proponho em relação às funções representativas e expressivas do símbolo. Trata-se aqui de articular o universo não-verbal do discurso expressivo, próprio das emoções, com o universo verbal que se articula sob a égide da lógica formal. O universo não-verbal das emoções se articula segundo a lógica da expressividade. No meu ponto de vista, é importante que essa imagem seja também transportada para o universo da palavra de modo a ser possível superar o autismo tautológico da imagem.

A contratransferência, para mim, é um campo de articulação não-discursivo – transmitida via identificação projetiva – da vida mental do paciente, da forma como está operando no aqui e agora da transferência. Para que a contratransferência se transforme em interpretação, necessita percorrer um largo caminho que inclui auto-análise, reflexão, familiaridade e relação com a teoria analítica etc. Ao interpretar, o analista parte de um campo não-discursivo das vivências e imagens evocadas para o campo da interpretação, formulada em linguagem discursiva descritiva de significados. Nesse contexto também devemos dar especial importância ao “desamparo” sentido por Sara diante do lobo, que é parte dos aspectos expressivos da imagem representativa do lobo.

As emoções não são indicativas só de estados mentais, e nesse sentido as representações mentais, a figurabilidade, contêm um aspecto expressivo dessas emoções Elas também representam núcleos de significado da vida inconsciente. Esses núcleos são constituídos de objetos internos (isoladamente ou em constelação) que, como estruturas do ego, funcionam como pólos magnéticos complexos (a atração, nesses núcleos, é exercida conforme a semelhança de significados e de função na vida emocional) que organizam as experiências emocionais. Essas estruturas operam como moldes internos inconscientes ou fôrmas atribuidoras (templates) de significado a outras experiências afetivas. Para se tornarem pensáveis e comunicáveis, as emoções devem passar por um trabalho de transformação e adquirir, dessa maneira, uma forma simbólica apropriada.

Quando o analista, por meio da interpretação, torna significativos esses cenários mentais da nossa vida emocional, ele rearticula significados de diversos níveis simbólicos, abrindo redes afetivas e, assim, novas possibilidades de o paciente experimentar seus afetos. Isso, por sua vez, cria novos significados, que expandem as possibilidades de desenvolvimento emocional. A descoberta e apreensão dos significados de experiências emocionais atua como uma chave que abre novas redes afetivas, tanto para o paciente como para o analista. A abertura de novas redes afetivas, graças ao poder evocativo das imagens, amplia a memória. Botella diz:

Representabilidade, mas gostaria de um termo mais forte… André Green insiste muito em “travail de representance et pas de representativité”. Representance seria criar um neologismo, tanto em francês como em castelhano, para algo muito específico, que seria esse trabalho particular da vida psíquica de transformar a motion pulsionel. Para os bionianos seria a transformação dos elementos beta em elementos alfa acessíveis, por exemplo. Seria todo um trabalho de elaboração, de transformação. A mim, a idéia de trabalho agrada mais do que a de transformação, porque esta faz pensar numa transformação química, como a transformação imediata de um produto em outro. A idéia de trabalho é de elaboração, uma elaboração difícil, na qual intervêm muitíssimos elementos até chegar à representação. Para mim, o modelo sempre é o trabalho do sonho. O problema aqui é que para Bion e para Meltzer o trabalho onírico funciona o tempo todo, de dia e de noite, sem diferença. Aí me separo abertamente de Bion e de Meltzer, porque se perde algo da essência da vida, simplifica-se e uniformiza-se demasiadamente a complexidade da vida psíquica. Porém, se introduzimos a noção do trabalho psíquico de dia e do trabalho psíquico de noite, encontramos uma série de barreiras, de limites, e aí entra toda a riqueza da noção de regressão regrediente.

[…]

Acima de tudo, não é regressivo, é uma regressão regrediente. Regrediência é um neologismo em todos os idiomas, mas que vem de Freud, do alemão Regredient, que é o trabalho do sonho, simplesmente. Freud o emprega apenas para o momento em que se tem um sonho, o que me permitiu buscar algo que não fosse unicamente o fenômeno dos sonhos, mas sim de possibilidades mais amplas que só chegar ao sonho da noite.

Nesse trecho César Botella nos apresenta uma série de questões para pensar. Destaco:

• A noção de representance, termo mais forte que o de representatividade, função associada às moções pulsionais. Como decorrência dessa afirmação temos a idéia de que a figurabilidade vai além dos processos de identificação projetiva.

• A necessidade de discriminar a noção de trabalho psíquico da de transformação (que para Botella remete à química).

• E, mais importante que tudo, a necessidade de diferenciar o trabalho onírico do sonho à noite do trabalho onírico de vigília, que ocorre permanentemente em nossas mentes.

O que dizer dessas questões? Seriam passíveis de ser discutidas separadamente? Também me parece muito importante precisar as semelhanças e as diferenças entre sistemas de pensamento para que se possa estabelecer um diálogo frutífero. Vejamos:

Em psicanálise, trabalho psíquico abarca tanto a noção de uma função dinâmica como a de um processo que se dá ao longo do tempo (e tem, portanto, “duração”), o qual engloba fatores conscientes e inconscientes e leva a uma transformação. É nesse sentido que Freud e Klein dela se utilizam para falar em trabalho de luto e trabalho de elaboração. Já Bion usa o termo transformações e não o associa à palavra trabalho. Seriam esses processos diferentes? Não pretendo responder, mas apenas encaminhar a questão, convidando nossos colegas bionianos a intervir no debate. Freud, em seu trabalho sobre sonhos, dedica a essa questão de afetos em busca de figurabilidade uma seção específica do livro. Seria esse o trabalho de representance aludido por Green e citado por Botela?

Podemos nos perguntar o que leva esse trabalho psíquico a continuar ativo e a se manifestar nos sonhos e na transferência. Laplanche (1981, p. 58) diz, recorrendo a um conceito sugerido por Daniel Lagache, que esse autor buscou desvendar o cerne de tal questão e do próprio processo de repetição, ao introduzir a idéia do efeito Zeigarnik (l’eff et Zeigarnik), isto é, a necessidade de pôr termo a tarefas mentais que não foram acabadas. Creio que Lagache ressaltava que os problemas ou confl itos psíquicos inconscientes que não encontram solução emocional satisfatória (redução de ansiedade, por exemplo) continuam sendo pensados inconscientemente, com os instrumentos expressivos disponíveis a cada momento. Nesse contexto, o termo representance me é simpático por acentuar o caráter ativo da transformação de afetos em imagens, sendo essas captações tanto dos processos simbólicos representativos como expressivos da vida emocional.

Agora temos que decidir ou equacionar quando (e talvez onde) esse trabalho ocorre. Minha resposta inicial seria dizer que ocorre sempre que existe um conflito diante do qual nossa mente inconsciente sente-se pressionada a resolver – será que podemos dizer também transformar? Aqui, num primeiro momento não importa dizer se ocorre durante o sonho noturno ou durante a vida “desperta”, desde que a ênfase seja dada ao caráter inconsciente do processo. Talvez possamos dizer que, tanto na vida desperta (trabalho de sonho consciente de vigília) como na vida onírica, os processos de transformação operam da mesma maneira que no sonho. No entanto, creio que é importante distinguir entre o sonho de quando dormimos e o trabalho de vigília diurno. Temos aqui uma questão instigante.

O mundo do sonho é o espaço psíquico em que a mente se empenha na tentativa inicial de lidar com conflitos, dando representação expressiva imagético-pictórica às emoções envolvidas nessa problemática ou conflito: um primeiro passo na direção da pensabilidade. As imagens concretas do processo primário seriam protoconceituais ou pré-conceituais, e seria a partir delas que emergiriam os conceitos (Lear, 1998, p. 85) com os quais nosso pensamento opera. Segundo essa perspectiva, os sonhos desempenham papel central no processo de elaboração e integração das experiências humanas. Quando o trabalho onírico falha no desempenho dessa função, a capacidade de formar símbolos se empobrece.

Durante o sonho noturno, estamos totalmente cortados da percepção do mundo externo, portanto mais responsivos aos estímulos internos. Talvez possamos dizer que durante o sonho noturno estejamos mais diretamente sujeitos às nossas moções pulsionais que quando acordados, embora em vigília. Nesse espaço noturno, nossas emoções estão presentifi cadas num universo de pura expressividade, que não se articula de acordo com os princípios da lógica formal, universo próprio da palavra.

Qual a importância dessa distinção entre sonho diurno de vigília e sonho noturno? Num primeiro momento, eu diria que o que ocorre no sonho noturno está mais próximo do pulsional. E, se levo em conta esse aspecto em minha teoria do aparelho psíquico, haveria conseqüências em relação ao modo como interpreto o sonho noturno. Será que poderíamos dizer que certas constelações defensivas operam mais à noite que durante o sonho diurno? Será que o caminho mais curto para o inconsciente não passa pela interpretação do sonho noturno? E o sonho de vigília diurno poderia ser considerado um aspecto já mais elaborado, portanto sujeito a uma ação defensiva menor?

Impressionou-me a ênfase no conceito de regressão regrediente, presente na constituição do processo onírico noturno. Nesse caso, o aspecto expressivo do símbolo estaria mais presente e disponível; dessa forma também é verdade que atrairia mais defesas para atuar contra o que estiver sendo revelado nele. Do ponto de vista interpretativo, exigiria do analista maior atenção em despertar os aspectos expressivos no paciente, talvez um analista mais ativo e mais exigente de sua capacidade imaginativa.

Nino Ferro (1995) diz:

[…] também os personagens do sonho podem ser entendidos diferentemente no referencial histórico (primeiras presenças ou experiências infantis históricas) quanto ao mundo interno e aos acontecimentos (fantasias inconscientes, relações com e entre os objetos internos), no sentido de poder considerá- los também nomeações sincréticas de emoções em busca de personagens (não necessariamente antropomórficos) que permitiam desenvolvimentos narrativos das mesmas (p. 108-109).

A idéia de sincretismo traz consigo a importância de um processo interpretativo desconstrutivo das formas expressivas nele presentes, contudo sem que haja perda evocativa nessa desconstrução. A imagem do lobo pode ser um exemplo da desconstrução sem perda evocativa. A regressão regrediente seria nesse caso o recurso a um outro modo de representar que não o presente na regressão tout court. Será que poderíamos dizer que o infantil está mais disponível no sonho noturno e a infância mais presente no sonho diurno de vigília?

Também quero comentar a passagem que Botella se refere a Ogden, pois encontro mais similitudes entre o trabalho deles, incluindo o de Sara, do que o próprio Botella aponta. (Não sei o que Ogden pensaria disso.)

Como dizer de forma suficientemente racional para poder transmitir aos outros colegas o que acreditamos ter descoberto numa sessão com um paciente? Eu descubro a figurabilidade e fico contente. Mas é essa a forma que tenho para sentir algo? Se Thomas Ogden diz reverie, vai descrever algo que sentiu muito bem. Todo o problema é a figurabilidade ou reverie de Thomas Ogden… É a mesma coisa? É para outra geração, talvez. As noções não são concretas e compactas como um livro comparado a outro livro, com tanto de peso e tantos centímetros.

Vejamos a defi nição que Ogden nos dá sobre como encara e se utiliza da reverie.

Na sessão analítica apresentada, fi z uso de um conjunto de reveries que a princípio estavam apenas subliminarmente disponíveis para mim (mais em forma de sensações que de pensamentos). Não tratei minhas reveries nem como distrações do “verdadeiro/real” trabalho de análise, nem como pacotes de puro signifi cado inconsciente. Mais signifi cativamente, tratei minhas experiências de reverie (até o ponto em que fui capaz de alcançar e manter uma consciência a respeito delas) como um método indireto (associativo) de falar comigo mesmo sobre o que estava ocorrendo inconscientemente entre Ms. S. e eu (Ogden, 1999, p. 990).

Ogden continua:

Essa maneira de abordar a experiência de reverie reflete uma perspectiva que não considera que o inconsciente reside atrás de minhas reveries, mas sim que ganha vida no movimento dos sentimento, pensamento, imagens e linguagem da experiência de reverie em si mesma.

A seguir comenta de modo enfático que em determinado ponto será necessário remodelar essas reveries numa forma simbólica verbalizada, altamente sofi sticada, de falar consigo mesmo e fi nalmente com o paciente sobre o signifi cado afetivo dessas experiências de reverie – sem necessariamente mencioná-las ao paciente, no plano da transferência e contratransferência.

Assim, creio que Thomas Ogden não hesitaria em considerar como reverie a figuração do lobo ocorrida a Sara – incluindo os sentimentos (desamparo) e a utilização por parte de Sara.

Para finalizar, gostaria de comentar dois trechos da entrevista de César Botella:

RBP A pergunta está relacionada à terceira tópica como vista no último Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), onde o senhor também estava. O relatório de Brusset propunha uma terceira tópica para abordar essa questão. Eu imaginava que o senhor preferisse trabalhar essa questão relacionando-a à primeira tópica freudiana do irrepresentável.

Botella A segunda tópica freudiana é de 1923. Na realidade, no desenvolvimento psíquico o que existe primeiro é um id que não está representado. Há um superego primitivo-arcaico kleiniano e há um ego muito pobre. É como começa a vida psíquica. Quando a vida psíquica se organiza bem, se organiza na primeira tópica. Isto é, há liberdade de pensar verdadeiramente. Quando se chega a ter um funcionamento psíquico, somos capaz de reprimir representações que nos incomodam, e, se estamos bem analisados, deixamos que a repressão desapareça e servimo-nos do que estava reprimido. Para mim, o funcionamento na primeira tópica é a liberdade de funcionamento em relação à repressão, no sentido clássico freudiano. Essa liberdade tem seu funcionamento entre os processos primários – deslocamento, condensação, alucinação – e que possa ser ligado em representações de palavras. Aí há uma liberdade absoluta, quer dizer, com os processos primários: é o sonho. Liberdade é, quando se dorme, sonhar com todo o seu deslocamento até chegar à representação que nos convém e, ao despertar, pôr aquilo em representações de palavras e nos servir daquilo. Funciona assim. Não é que eu prefira uma coisa à outra, está tudo aí, segunda tópica e primeira tópica. No congresso de 2001 introduzimos a respeito da sexualidade uma idéia que se liga não a alucinação, mas a alucinatório, e a chamamos de sexual primordial. Com isso queremos dizer que, antes que se organizem os limites do corpo, há uma vida afetiva, que podemos chamar de sexual, em sentido amplo. Ela funciona sobretudo quando a mãe não está presente, e a criança pode alucinar a presença da mãe, da comida, do peito da mãe e fi ca satisfeita durante certo tempo. Esse é o sexual primordial: eu me basto a mim mesmo com minha alucinação, que certamente tem seus limites, porque existe a biologia. Esse é o primeiro tempo e logo a mãe vai se interessar muito pelo corpo da criança: “Menino, coma, mame”. Assim a boca passa a estar investida de uma força: “Menino, não faça cocô. Vou limpar sua bunda”. E a mãe tem um filho com um pinto e vai ficar encantada com as ereções do bebê. Mas com uma filha a coisa se complica em relação ao investissement, não culpável, por parte da mãe, pelo sexo da menina. Talvez não hoje em dia. Mas o que é importante é que a mãe sinaliza as zonas erógenas. E assim o conjunto, a pele, com os cuidados da mãe, o banho etc., vai investir a criança dos limites de seu corpo. Nesse momento, a sexualidade, que era primordial alucinatória, converte-se em sexualidade, em bien cochonne, como se diz em francês. A sexualidade vai passar pelo gosto de fazer cocô, de fazer ou não fazer xixi, de ter uma ereção. A sexualidade infantil passa pelo corpo, pela pele e pelos limites do corpo. Mas é evidente que, para que essa sexualidade esteja bem sinalizada nas zonas erógenas, deve corresponder ao melhor nível de um bom funcionamento na primeira tópica. Nos estados-limite ou borderline, talvez se possa investir uma zona de forma perversa, mas o equilíbrio das zonas erógenas como limite do corpo é o que falta a esses pacientes. O borderline se confunde com o analista porque não pôde organizar uma sexualidade passando pelos limites do corpo. A zona erógena – a boca ou o ânus – tem a particularidade de ao mesmo tempo se fechar e se separar do objeto: fecho a boca e já não quero mais o peito, ou não faço cocô como castigo à minha mãe, ou, ao contrário, abro e estou com minha mãe. Isso é ao mesmo tempo uma separação e uma ponte relacional com o objeto mãe, que não é um objeto primário, e sim um objeto evoluído, que se permite estar com a mãe sem se despersonalizar, sem perder o sentido de identidade.

Aqui, trago primeiro não propriamente um comentário, mas a expressão de um desejo (talvez um wishful thinking). Gostaria de colocar esse trecho em diálogo com o livro Os estados sexuais da mente, de Donald Meltzer, pois creio que desse embate sairia algo muito rico em potencialidades conceituais. Tenho a impressão de que algum preconceito dificultou a leitura que Botella (e Green) fez de Meltzer. É triste pensar que um autor do porte de Botella possa ora ignorar, ora simplificar uma obra complexa e instigante como a de Meltzer. Creio que uma interação crítica entre esses dois pensamentos engrandeceria a ambos.

A seguir queria comentar a questão da repressão mencionada na entrevista de César Botella. Como opera o levantamento da repressão? Em trabalho anterior, comentei a função da interpretação do analista nos seguintes termos:

Estamos falando de representações da vida emocional tornadas inconscientes, seja por meio de introjeções, cisões ou repressões. Devemos lembrar, aqui, que a repressão não opera na experiência em si, mas na lembrança dessa experiência. Assim, o reprimido também é elaborado, por meio de um novo sistema de simbolização que integra os elementos mnêmicos em um nível de complexidade superior do pensamento, tanto nos aspectos ideacionais como nos afetivos relacionados a novos significados. Boa parte das experiências emocionais é elaborada no espaço transicional que chamamos de consciência, mas boa parte ocorre fora desse lugar, inconscientemente, no sentido de um processo contínuo que pôs a relação analítica em marcha.

Quando o analista torna significativos os cenários mentais da nossa vida emocional, por meio da interpretação, ele rearticula significados de diversos níveis simbólicos, abrindo redes afetivas e, assim novas possibilidades de o paciente experimentar seus afetos. Isso, por sua vez, cria novos significados, que expandem as possibilidades de desenvolvimento emocional. A descoberta e apreensão dos significados de experiências emocionais atua como uma chave que abre novas redes afetivas, tanto para o paciente como para o analista. A abertura de novas redes afetivas, graças ao poder evocativo das imagens, amplia a memória.

A. Imbasciati (1998) destaca que, conforme alguns estudos atuais de neurofi siologia, a memória pode ser vista como uma estrutura funcional, uma espécie de grupo de programas de aplicativos (software) impressos no disco rígido (hardware) biológico. Portanto, a função elaborativa dos sonhos é exercida tanto por meio da alteração dessas estruturas funcionais de memória como pela promoção do desenvolvimento das qualidades formais dos símbolos implicados nos processos simbólicos de representação disponíveis para sonhar e para pensar. Penso que essas refl exões se aplicam às transformações da figurabilidade.

Poderíamos também nos questionar como esse trabalho contínuo de elaboração é desencadeado e que função cumpre a partir daí correlacionar com a questão do funcionamento de acordo com a “sexualidade alucinatória”, a organização da vida psíquica segundo a primeira tópica e a questão da repressão. Acredito que a pressão das forças pulsionais sobre o aparelho mental para que ele execute essa transformação de significados da experiência emocional põe o ser humano frente a frente com a insuficiência dos instrumentos (símbolos) disponíveis para comunicação interna, ou seja, para pensar e, portanto, para se comunicar externamente com o outro e poder desenvolver uma visão abrangente dos mundos externo e interno, em toda a complexidade deles. É nesse contexto que a meu ver opera a necessidade de uma terceira tópica que dê conta do que se passa no mundo das relações entre objetos internos.

Sugiro que, na busca de resolver um problema ou conflito, o sonho noturno tem um papel central na medida em que organiza, primeiro, com base em experiências afetivas que mobilizam fantasias inconscientes, estas construídas em torno de um ou mais núcleos de significado. Devido à existência dessas estruturas básicas inconscientes, os seres humanos não organizam suas experiências emocionais ao acaso; pelo contrário, levam-na a se sujeitar a padrões estruturantes que são parcialmente inatos e parcialmente moldados pela experiência.

Diria que as emoções exercem função de tecido conectivo para a vida mental e produzem elos de ligação (vínculos) básicos que permitem a integração do self. Para Bion, o conflito básico a ser resolvido não é entre amor e ódio, mas entre emoção e oposição à emoção.

Nessa minha perspectiva, a interpretação de sonhos realizada pela analista efetua, quando bem-sucedida, uma transmutação de base simbólica – processo necessário para ajudar a mente a aprofundar sua capacidade de pensar. Esse processo consiste em alterar a base em que um símbolo se sustenta, alterando, por exemplo, as características formais de uma representação, de modo que ao mesmo tempo se amplie o seu alcance e se possa captar mais acuradamente uma situação emocional específica, mantendo, em relação, uma rede afetiva complexa. Numa etapa posterior, algo expresso num plano evocativo e condensado numa imagem pictográfica é transformado em linguagem verbal, que, por exemplo, exprime significados. Essa operação amplia o campo de consciência e abre a experiência emocional para novas conexões afetivas e novos campos de pressão instintiva. É dessa forma que algumas repressões são levantadas e que se torna possível a integração de partes cindidas. Toda linguagem, evidentemente, tem seus limites de figurabilidade. O que é sentido como pressão interna deve ser transposto, primeiro por meio de imagens; depois, conforme um canal de expressão mais amplo, feito de palavras, a fim de passar a fazer parte de nosso processo de pensamento. Assim, a função de elaboração dos sonhos começa baseada na atmosfera afetiva que formou o sonho e que evocou os pictogramas afetivos iniciais, os quais, então, são afetados pelas interpretações do analista, que por sua vez produz um sistema simbólico novo, capaz de apreender e transformar significados.

Esses significados novos, produzidos por meio da experiência de insight e representados em sonhos pela imagética pictográfica, transformarão os arquivos de memória, desfarão repressões e promoverão maior integração do self.

É preciso sublinhar que um símbolo ou uma representação não é uma cópia do vivido. Tanto ao representar algo, no sentido de “estar no lugar de”, como ao expressar uma vivência ou experiência, o símbolo opera como captador de uma totalidade relacional, isto é, de relações com o mundo interno e externo, e se organiza numa estrutura que tem articulação interna. Do mesmo modo como, em Freud, o sonho é um condensado do vivido, a representação simbólica é a condensação de um conjunto de experiências emocionais captadas como totalidades de relações com o mundo.

Em decorrência dessas características do símbolo, cabe dizer que ele jamais se presta a ser objeto de mera tradução, pois seu significado é muito abrangente, inesgotável.

Quando ocorre numa situação em que o processo de simbolização é afetado dramaticamente, como numa situação traumática em que o ego é inundado de ansiedade, o símbolo perde – por força de um fechamento súbito das redes afetivas, conseqüente à situação traumática – sua plasticidade como representante de algo, ficando pobre no caráter expressivo de emoções. Isso provavelmente se deve ao fato de que certas vivências deixam de estar disponíveis por causa do uso amplo da cisão e da identificação projetiva ou da repressão.

 

Referências

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1 Membro efetivo e analista didata da SBPSP.

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