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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

DIÁLOGO

 

Pensando com Botella: comentário à entrevista de César Botella

 

Pensando con Botella

 

Thinking with Botella

 

 

Fernanda Marinho1; Ney Marinho2

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A entrevista foi lida como um convite a pensar a psicanálise em tempos pós-escolásticos. Sublinhamos a presença de um casal fértil (relação comensal) como pano de fundo. Procuramos usar noções que nos são familiares – como a teoria das transformações de Bion – para compreender a proposta de Botella sem reduzi-la ao já conhecido. Usamos a noção de jogos de linguagem (Wittgenstein) para compreender a situação clínica apresentada. Sugerimos também que se pense na noção de hospitalidade (Derrida) na relação analítica. Concordamos com Botella quanto à importância do Comitê de Prática Analítica e Atividades Científi cas (Capsa) e apresentamos algumas sugestões para o desenvolvimento do intercâmbio.

Palavras-chave: Botella; Figurabilidade; Bion; Transformações; Wittgenstein; Jogos de linguagem; Derrida; Hospitalidade; Capsa.


RESUMEN

La entrevista se leyó como una invitación a pensar el psicoanálisis en los tiempos pos-escolásticos. Destacamos la presencia de un par fértil (relación comensal), como base. Tratamos de utilizar nociones que nos son familiares – teoría de las transformaciones de Bion – para comprender la propuesta de Botella, sin tratar de reducirla a lo ya conocido. Utilizamos la noción de juegos de lenguaje (Wittgenstein) para comprender la situación clínica presentada. Sugerimos también pensar sobre la noción de hospitalidad (Derrida) en la relación analítica. Concordamos con Botella cuanto a la importancia del Capsa y presentamos algunas sugestiones para el desarrollo del intercambio.

Palabras clave: Botella; Figurabilidad; Bion; Transformaciones; Wittgenstein; Juegos de lenguaje; Derrida; Hospitalidad; Capsa.


ABSTRACT

Th e interview was considered as an invitation to refl ect upon Psychoanalysis in post-scholastic times. We outline the presence of a fertile couple as a background. We try to utilize familiar notions – Bion’s theory of transformations-in order to understand Botella’s proposal, without trying to reduce it to what is already known. We utilize the notion of language games (Wittgenstein) in order to comprehend the clinical situation presented. We also suggest that the notion of hospitality (Derrida) is thought upon the analytical relationship. We agree with Botella as to the importance of Capsa and present some suggestions for the interchange development.

Keywords: Botella; Figurability; Bion; Transformations; Wittgenstein; Language games; Derrida; Hospitality; Capsa.


 

 

Inicialmente, chamamos a atenção para dois aspectos que nos parecem constituir um pano de fundo de todo este diálogo. Referimo-nos à presença de um casal e do pensamento pós-escolástico. Comecemos pelo último, lembrando uma apresentação do nosso querido e saudoso Fabio Herrmann em congresso da Associação Brasileira de Psicanálise, realizado no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Nossa lembrança é vaga e imprecisa e fizemos questão de não consultar nenhuma bibliografia a esse respeito, deixando surgir o que nos ficou daquela – como era usual – brilhante conferência. Se estivermos equivocados, Herrmann certamente nos perdoaria. Dentre as muitas questões então levantadas, ficou-nos principalmente a seguinte: com a morte, e o decorrer do tempo, de grandes chefes de escolas – embora a maioria não desejasse tal papel, como Melanie Klein, Winnicott, Lacan, Bion e Kohut –, somos levados a pensar com nossa própria cabeça. Afinal, nossos grandes mestres muito nos ensinaram e sobretudo levantaram questões que nos cabem se não solucionar, desenvolver e procurar dar conta dos novos desafios que a psicanálise defronta – o que é mais importante. Ora, pensar com a própria cabeça não é tarefa fácil, e esse parece ser o exercício e o convite de Botella. Frisamos esse ponto, pois o que comentaremos nos remeterá muitas vezes a nossos mestres – Bion em especial –, embora desejemos marcar as diferenças e respeitar a originalidade que se oferece.

Quanto à presença do casal, ocorre desde o início com a menção ao trabalho em conjunto com Sara e continua na relação analista-analisando. A presença de uma dupla ou de um par na sala de sessões não assegura a função casal. A constituição de um casal fértil acreditamos ser condição de possibilidade para que haja uma análise. Lembremos uma das últimas formulações de Bion sobre a relação comensal em Atenção e interpretação (cap. 10): a relação de dois, partilhando um terceiro, em benefício dos três. Ou as instigantes conjecturas de Ron Britton sobre o espaço triangular (Britton, 2003). Destacamos o partilhar (to share) por julgar que nos será útil mais adiante.

Vamos nos deter agora na noção de figurabilidade, que nos parece uma contribuição original de Botella.

O fenômeno descrito por Botella nos pareceu familiar, remetendo-nos ao conceito de transformação em O, formulado por Bion. Não pensamos em reduzir as idéias desenvolvidas pelo primeiro ao que o segundo nos apresenta. Ao contrário, justamente o interessante é observar, na confluência do fenômeno clínico, as origens e os caminhos diversos que foram trilhados e as novas possibilidades que se abrem quando temos a experiência de um senso de verdade provindo da harmonização de dados que se associam a partir de diferentes vértices. Quando Botella fala de algo que permita ao analista vibrar emocionalmente com o paciente – “não diria se identifique, porque o analista está mais além disso” –, pensamos que nos remete ao domínio do ser, domínio de O, que o analista não pode conhecer ou com que não pode se identificar, mas apenas ser (estar de acordo com O, at-one-ment). A evolução desse ser, comum a paciente e analista, e a apreensão por características sensoriais – sejam verbais, visuais, olfativas ou outras – permitirão a passagem ao domínio do conhecer (K) – lobo, no caso de Sara. A figurabilidade é, a nosso ver, uma forma peculiar de apreensão sensorial, imagética, da experiência emocional vivida pela dupla na situação analítica. A regressão regrediente no analista, nos termos de Botella, parece ser um dos fatores dessa função; outro fator seria o grande investimento do paciente, que na entrevista não é tematizado pelo autor. Lembra-nos a classe de transformações projetivas plásticas ou visuais, ou a transformação em alucinose propostas por Bion. No entanto, como dissemos antes, não pensamos que uma – a figurabilidade – seja redutível às outras; manter as diferenças, a partir de um ponto de contato dado pela clínica, acompanhando o desenvolvimento das idéias do autor em sua coerência, dentro de seus referenciais teóricos, só pode nos enriquecer.

Nossos tempos pedem mais que um diálogo, pedem um trabalho em conjunto com outras disciplinas. Assim, faremos algumas especulações com base em contribuições filosóficas de Wittgenstein, a fim de compreender o signifi cado que adquiriu o termo lobo naquela relação analítica. Na reunião do Capsa, a palavra hierático, pelo que entendemos, desempenhou papel semelhante no material clínico apresentado por Botella.

Compreendemos que o termo lobo não poderia ser predeterminado por Sara, isto é, não há coisa alguma que possa ter previso a aparição. Contudo, há algo que é essencial para tal ocorrência. Referimo-nos a uma atitude. Nesse ponto, a contribuição de Wittgenstein é valiosa:

Sempre poderíamos dizer de um homem que é um autômato (poderíamos aprender isto na escola, nas aulas de fi siologia) e, contudo, isto não infl uiria em minha atitude para com os demais. Inclusive, posso dizer de mim mesmo.

Porém, qual a diferença entre uma atitude e uma opinião?

Eu diria: a atitude vem antes da opinião (Últimos escritos sobre filosofía de la psicología, p. 417).

Se pudermos ignorar todo o arsenal de conhecimentos que temos sobre pacientes como o descrito por Botella e nos oferecermos a uma possível comunicação, pensamos alcançar essa atitude, que é uma condição prévia para que o diálogo analítico venha a se estabelecer, mesmo como possibilidade remota. Apoiando-nos ainda em Wittgenstein, poderíamos perguntar que significado tem “lobo”. Nesse contexto, entendemos que significa o uso que Sara e seu pequeno paciente fazem com este termo, no caso: psicanálise. Julgamos tratar-se de uma boa descrição de como ocorre o jogo de linguagem psicanalítico. Isso levaria muitos de nós a um legítimo questionamento: mas seria arbitrário o uso do termo lobo? Não poderia ser chave ou cadeado, ou qualquer outra palavra de nosso vocabulário cotidiano? Acreditamos que não. Há uma invariância (sentimos falta na formulação de Botella de alguma conceituação análoga, para garantir a não-arbitrariedade). Entendemos que esse jogo tem regras – explícitas ou não, como transferência, abstinência, uso de metáforas, metonímias etc. – e remete a algo do real, no sentido mais amplo, a algo que nos fala de uma forma de vida. Sara e seu pequeno paciente, por partilhar de uma forma de vida repleta de ameaças, voracidade, perigos iminentes, concordaram com a palavra lobo para falar sobre essas coisas. Interessante registrar que para nós, psicanalistas – mesmo que não sejamos húngaros ou espanhóis –, a escolha do termo não traz grande surpresa, pois tem semelhança de família com muitos outros que habitam o dia-a- dia de nossa mitologia. Não colocaríamos tanta ênfase na imagem – como Botella sugere –, nem mesmo na palavra, pois poderia ser um gesto, uma comunicação própria de linguagem não-verbal (lembremo-nos dos complexos sistemas de sinalização ou da rica comunicação mãe-bebê). Nossa ênfase vai para o uso, naquele contexto.

Na entrevista, Botella faz alguns comentários sobre a recorrente discussão em relação à cientificidade da psicanálise e como se deve pesquisar em psicanálise. Quanto à primeira questão, concordamos com a opinião sobre a necessidade de buscá-la numa acepção mais ampla de ciência, tal como muitos filósofos da ciência defendem atualmente. Entretanto, julgamos mais promissora a pesquisa sobre a racionalidade da teoria psicanalítica em vez de sobre sua cientificidade. Por isso queremos dizer que vemos como mais atraente pesquisar os signifi cados que estão em jogo, os que são construídos e os abandonados. O que nos faz concordar com Botella, pois nossas concordâncias são muito maiores que as divergências. Por que nos satisfazemos com certas descrições? Em outros termos: onde cabe e onde não cabe a dúvida em nossas investigações? Esperamos que nós, como psicanalistas, e nossos pacientes estejamos falando de questões próprias da vida cotidiana, por mais extravagantes ou bizarras que por vezes pareçam. Por exemplo, a loucura e os diversos graus de insensatez sempre fizeram parte do dia-a-dia da humanidade. Tanto na entrevista como na apresentação que Botella fez no Capsa, simpatizamos com a atitude de ênfase na clínica, no sofrimento mental, que a nosso ver é um dado em nossa atividade, quer ela seja considerada científi ca ou não.

No que diz respeito à segunda questão – como pesquisar em psicanálise –, também concordamos com Botella quanto à primazia da clínica, mas por motivos diversos. Desconfiamos de certa esterilidade na procura de um método de pesquisa para a psicanálise. Em que pese nossas inúmeras discordâncias com outro vienense ilustre – Karl Popper –, consideramos que ele, de forma bastante clara, afasta, a nosso ver em definitivo, qualquer veleidade que possamos ter de descobrir o mistério do contexto da descoberta. O que nos resta, com humildade, é lançar nossas hipóteses – como a figurabilidade – e testá-las na clínica, no entendimento dos grupos ou da cultura, tal como Freud fez reiteradas vezes. Se deslocarmos a discussão da pesquisa em psicanálise para essa ênfase na avaliação de nossas hipóteses, julgamos que teremos um campo mais atraente e rico que a cansativa polêmica entre pesquisa clínica e empírica, que está fadada ao impasse, certamente por ser um falso problema. Fica a questão de como avaliar nossas hipóteses, aí sim divergências reais podem surgir. Curiosamente, o citado Popper não compreendeu a singularidade que exige nossos processos de avaliação. Consideramos que uma das contribuições da grade (Bion) é exatamente a proposta de um instrumento, especificamente psicanalítico, de avaliação de nosso trabalho, independente de referenciais teóricos.

No início de nossos comentários, frisamos a expressão partilhar na relação comensal analista-analisando. Não cabe desenvolver aqui o tema, mas na linha de pensar com Botella, sugerimos que se pense a questão da hospitalidade. Temos em mente as reflexões de Derrida sobre a hospitalidade incondicional, que pensamos ser o caso em situações analíticas desse tipo, senão em todas. Adiantamos que entendemos que a relação dos três – analista-analisando- psicanálise ou analista-analisando-lobo – é dinâmica, trazendo modificações a todos, caso haja desenvolvimento.

Uma palavra sobre o Capsa, e mais um ponto de concordância com o entrevistado: o entusiasmo pelo empreendimento. Todo intercâmbio é fértil, na mesma medida em que todo chauvinismo é empobrecedor. Somente a experiência poderá nos ensinar a melhor forma de dialogar. Permitimo-nos, aqui, uma sugestão. Seria mais vivo e produtivo o contato com os colegas convidados no correr das diversas apresentações. Lembramos a rica experiência que foi o Encontro Bion em 2004, que contou com a participação de convidados estrangeiros distribuídos pelas diversas salas, acompanhados por “anjos da guarda” que lhes traduziam os debates e lhes permitiam participar das apresentações. No último Capsa, como os trabalhos foram traduzidos e distribuídos previamente, isso teria sido muito útil. Perdemos uma boa oportunidade, mas fica a experiência.

 

 

Endereço para coorespondência
Fernanda de Medeiros Arruda Marinho
Ney Couto Marinho
Rua Sergio Porto, 153 – Gávea
22451-340 – Rio de Janeiro – RJ
Tel./fax 21 2294-4686
E-mail: fernandamarinho@openlink.com.br / neymarinho@openlink.com.br

 

 

1 Membro efetivo da SBPRJ.
2 Membro efetivo da SBPRJ.

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