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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.1 São Paulo mar. 2007

 

TERCEIRA TÓPICA?

 

Brusset: ilustração clínica

 

Brusset: ilustración clínica

 

Brusset: clinical illustration

 

Magda Guimarães Khouri1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta é uma síntese da ilustração clínica do trabalho “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?”, de Bernard Brusset, apresentado no 66o Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (2006, Lisboa). Christine, 35 anos, foi hospitalizada por depressão grave com desorganização de tipo psicótico. O processo de dez anos da terapia analítica com a paciente foi relatado com ênfase à articulação conceitual de Brusset sobre a relação entre espaços psíquicos e os vínculos, pensando os espaços da indiferenciação primária e dos limites do eu, assim como a noção de processos, notadamente projeção/ introjeção.

Palavras-chave: Introjeção; Narcisismo; Projeção; Transferência; Crenças delirantes.


RESUMEN

Esta es una síntesis de la illustración clínica del trabajo “Metapsicologia de los vínculo y la tercera tópica”, de Bernard Brusset, presentada en el 66° Congreso de Psicoanalistas de Lengua Francesa (2006, Lisboa). Christine, 35 años, fue hospitalizada por depresión grave con desorganización del tipo psicótico. El proceso de diez años de terapia analítica con la paciente fue relatado dando énfasis a la articulación conceptual de Brusset a respecto de la relación entre espacios psíquicos y los vínculos, pensando los espacios de la indiferenciación primaria y de los límites del yo, así como la noción de procesos, notadamente proyección/introyección.

Palabras clave: Introyección; Narcisismo; Proyección; Transferencia; Creencias delirantes.


ABSTRACT

Th is text summarizes a clinical illustration related in Bernard Brusset’s paper “Metapsychology of Linkage and the ‘Th ird Topic’?”, presented in the 66th Congress of French Speaking Psychoanalysts, in 2006. Christine, 35 years old, was hospitalized due to severe depression with psychotic disorganization. Th e patient’s process of ten years of analytic therapy was reported emphasizing Brusset’s conceptual articulation of the relation between psychic spaces and linkage and discussing the spaces of primary indiscrimination and the limits of the self, as well as a notion of processes, notably projection/introjection.

Keywords: Introjection; Narcissism; Projection; Transference; Delusions.


 

 

É necessária uma terceira tópica para compreender o caso clínico ou a conceituação freudiana – primeira tópica e segunda tópica – daria conta dessa fundamentação? Talvez se possa pensar numa terceira tópica balizada pela função do analista em sua escuta. Ou melhor, posição de escuta metapsicológica de um lugar de ancoragem do analista.2

Christine, 35 anos, casada havia dois anos, foi hospitalizada por depressão grave, com desorganização de tipo psicótico. Os mecanismos e os temas delirantes eram polimorfos e obscuros. Em relação ao tratamento psiquiátrico, apareceram diversos sintomas de difícil diagnóstico psiquiátrico: fenômenos maníacos (excitação, fuga de idéias), problemas obsessivos (premonição, pensamento mágico).

Tratava-se de um funcionamento psicótico delirante ou de sua caricatura histérica, efeito da identificação delirante a um pai delirante? O diagnóstico do ponto de vista psicanalítico: regressão narcisista com onipotência do pensamento, pensamento mágico e negação onipotente típica das defesas maníacas. Mas a temática ficava tributária de um movimento melancólico: ela era uma ameaça aos outros.

Na relação de transferência três fases podem ser identificadas:

• desconfiança e suspeita;
• dependência e desespero da ausência;
• luto e transicionalidade.

No primeiro momento dos dez anos de terapia psicanalítica, era impossível a Christine falar dela mesma e tomar consciência de sua atividade de pensamento como existência de um mundo interior: toda a atenção e o discurso estavam centrados nos sentidos dos acontecimentos e nos problemas somáticos de sua vida. A percepção ocupava o lugar da representação imaginária ausente, ao mesmo tempo sob domínio de um imaginário interpretativo sem limites. Ficava excluída qualquer apropriação subjetiva na relação do sujeito com ele mesmo. Esse primeiro tipo de atividade projetiva determinando uma espécie de “funcionamento psíquico na exterioridade” (Brusset, 1999, p. 55) justifi ca a idéia da tópica externa.

Christine precisava do pensamento do analista para descobrir o seu próprio: “Agora, eu tenho uma tela de TV dentro da cabeça e não mais na minha frente, na realidade… Eu coloco filtros para não sonhar a realidade”.

Ela se sentia o sujeito responsável pelas catástrofes: as doenças ao seu redor e os eventos catastróficos que aconteciam no mundo eram percebidos de maneira realista, mas ela inferia daí a existência de uma causalidade misteriosa e de uma força maléfica que viriam dela. Mesmo uma simples leitura podia determinar catástrofes. Por exemplo: ela lê uma lenda da mitologia grega sobre a esfinge,3 que teria se originado do combate entre um leão e uma águia. No dia seguinte, em Paris, um trem não consegue frear e entra violentamente na gare de Lyon; um avião cai na China. Christine estabelece uma equivalência simbólica entre leão [lion] e a gare de Lyon pela identidade fonética, entre a águia e o avião chinês pelas similitudes, e atribui à analogia uma eficácia real e desmedida. Contudo, nos dois casos, trata-se de uma catástrofe pública, espetacular, imprevisível, violentamente destrutiva em cenas atuais na realidade.

O vínculo causal que Christine estabelece entre sua leitura e a cena do mundo testemunha a megalomania típica da regressão narcísica da melancolia e da mania. Ora, como mostram suas associações, esses dois elementos dramáticos dão figuração às fantasias inconscientes induzidas pela leitura, por conseguinte, pelo pensamento dela induzido pela leitura. Eles não têm lugar na ordem das representações, mas somente no espaço da projeção, e podem ser construídos a partir das evocações de sua história infantil traumática.

O trabalho estava baseado na análise de defesas: solicitação de rememoração em vista da reconstrução da história e da pré-história infantil. Três anos antes, Christine rompera um relacionamento com um homem com o qual se sentia uma boneca e que havia muitos anos não lhe dava nenhuma satisfação sexual. Na época voltou a viver com seu pai, que tivera um câncer muito agressivo. Num contexto que atualizou de maneira traumática a configuração edipiana, viveu então uma paixão amorosa por um homem idealizado, Christophe. Pouco depois, o pai de Christine morreu em condições particulares e que foram independentes dela, fonte de uma culpabilidade tão forte quanto negada: sozinha à noite no hospital, com o pai agonizando com dores atrozes, ela foi solicitada pelos atendentes a tomar a decisão de acelerar a perfusão, isto é, de matá-lo. Gesto necessário cujas implicações subjetivas ulteriores estava longe de imaginar.

A relação com Christophe e a ruptura que ele lhe impôs brutalmente pouco depois cristalizaram o núcleo traumático. Os fenômenos de despersonalização e de desrealização, assim como as interpretações paranóides, ligaram-se diretamente, mas de maneira diferida, uma vez que ela se casara de forma precipitada com um homem que correspondia à predição de uma vidente. As relações foram então, de saída, marcadas pelo masoquismo. Dois anos depois, ela fez uma descompensação depressiva e delirante que a levou a ser hospitalizada.

Sobre a relação com Christophe, Christine deu versões sucessivas confusas e contraditórias como esforços para torná-las integráveis às suas representações de mundo, dos outros e dela mesma. Falava de um estado de alienação, mais que de um estado amoroso. Na presença dele, tinha o sentimento de uma transformação do ambiente, de uma estranheza inquietante na qual se percebia diferente. A atração sexual não era o mais importante, nem as raras relações sexuais, mas sim os riscos narcísicos em termos de vida e de morte.

Ele a seduzira e a conduzira por um percurso de iniciação, captada nas lógicas dele, desconhecidas dela: os lugares dos encontros estavam em códigos, toda coincidência tomava valor de mensagem e ela pensava que devia decifrar aí o seu destino. (Muito mais tarde apareceu que esse aspecto enigmático e fascinante remetia, talvez, a imagem de seu pai tal qual ela o percebia na sua infância). Antes, ela tivera relações com diferentes homens chamados Christophe e os evocava como Christophe 1, Christophe 2, Christophe 3… O nome Christophe condensa uma história que passa pela identificação, dessexualização, dediferenciação e alienação: ela é Christophe – ela se faz o objeto da perda.

Esse momento da vida de Christine ficou por muito tempo como zona traumática não-subjetivada da sua memória, como uma contusão, uma ferida que deveria ser evitada ou ser tratada por diversos meios jamais suficientes.

Também ocorriam somatizações múltiplas: hipertensão arterial; pielonefrite; tireoidite de Hashimoto; busca de um saber esotérico; o recurso de leituras procurando um outro mundo, uma verdade suscetível de ajudá-la a compreender por que se sentia diferente dos outros, perigosa para eles, e por que os outros eram, para ela, tão decepcionantes e frustrantes.

A quimioterapia neuroléptica e antidepressiva, que um psiquiatra receitara duas vezes por semana, paralelamente à psicoterapia, assegurava a diminuição da angústia e afastava o risco de retorno da reação depressiva, constituindo assim um meio precioso de repartir a transferência e, sobretudo no início, afrontar os movimentos imprevisíveis e massivos que invertiam seus valores. Apesar de desconfiança inicial, a relação na psicoterapia se instalou progressivamente de maneira confiante e segura, numa experiência inédita e estruturante. A idéia de um complô homossexual com o objetivo de sodomizá-la – dos quais o marido e os terapeutas faziam parte – ficaram fugazes. Mas Christine previa esse perigo e, sobretudo, o perigo do abandono, de uma perda possível, ao procurar outros métodos, outros terapeutas ou supostos terapeutas, que não tardariam a decepcioná-la sem dissuadi-la dessa expectativa. Essa forma de difração da transferência era, sem dúvida, a condição para preservar uma boa relação, uma boa transferência de base e a regulação desta.

Christine organizou um espaço privado, com livros escolhidos para “filtrar a realidade”, ter um “templo interno” que a protegesse dos outros, dos quais se sentia uma esponja e dos quais se fazia demasiado dependente. Contudo, prosseguia na atividade profissional de maneira reduzida, e numa vida conjugal não sem crises nem sem masoquismo.

A atenção interpretante levada aos eventos e às coincidências de fatos contrastava, nesse período, com a aparente ausência do vivido persecutório nas relações com os outros (o retorno de um modo persecutório: “eles se apropriaram de pedaços de mim”). Mas a análise fez aparecer o recalque sistemático ou, mais precisamente, a negação (déni) das reações hostis que ela sentia diante dos outros nas relações marcadas por ingratidão ou maldade. Ela podia situar melhor as situações relacionais nas quais era explorada, manipulada, enganada. Antes, ficava passiva, incapaz de qualquer reação, a não ser vomitar sua refeição. O ódio não era sentido, mas os sinais da realidade confirmavam aos olhos de Christine a realização da vingança. Os deslocamentos chegavam a uma dispersão de realizações destrutivas no espaço e no tempo. Era preciso encontrar nas sessões o fio condutor dos objetos em questão. O sofrimento que ela experimentava e o investimento da relação terapêutica lhe conduziram a evocar (narrar) as crenças e progressivamente a se perguntar, com o analista, o porquê delas.

Num segundo momento do tratamento, a leitura interpretativa das coincidências que lhe faziam excluir o acaso tomou outras dimensões, entre elas a da premonição. Ela pressentia a chegada de desgraças, era uma espécie de sinal que tomava valor de alarme. Mesmo numa ligação algumas vezes muito indireta, a ocorrência de um evento deplorável dava razão ao seu pressentimento e justificava as suas distâncias. Foi necessário muito trabalho e tempo para que Christine enfim compreendesse que a vítima que queria proteger era, coberta por deslocamentos, o objeto de sentimentos ocultos ou pelo menos ambivalentes, ou ainda de movimentos pulsionais devastadores.

Após vários anos, a atividade projetiva mudou de significado, transformando-se numa colheita de códigos secretos que excitavam-lhe a curiosidade e vieram a ser, pouco a pouco, uma espécie de jogo do qual Christine ostentava sinuosas fantasias durante a sessão. Sinais misteriosos lhe são enviados, como um tíquete de metrô nas proximidades do tapete da entrada, trazendo a mensagem manuscrita: “I está na casa de R”. E no dia seguinte, em Israel, Rabin é assassinado e o nome do assassino é Isaac… Nos anúncios publicitários, Christine é atraída pelo que lhe faz sinal. Por exemplo, a primeira letra do nome de seu pai, cifras que remetem por cadeias complicadas à sua história familiar e ao seu antigo amante Christophe etc.

A rapidez na leitura maníaca excitante da realidade exterior provocava curto-circuito na mise-en-scène fantasiosa. Era preciso frear e fazer um apelo à memória para compreender o que fora assim evitado: o aparecimento angustiante depressivo de um outro tempo vivido, cujos efeitos poderiam emergir numa temporalidade diferente, numa temporalidade lenta. Excluindo toda intervenção suscetível de ser percebida como violenta, intrusiva ou sugestiva, foi possível esclarecer as funções asseguradoras pelas crenças e, a partir destas, a rememoração e a reconstituição de sua história e dos efeitos après-coup dos acontecimentos vividos. A discriminação e a verbalização interrogativa dos afetos encontraram lugar nas lembranças que foram marcos no tratamento. Por exemplo: um afogamento aos seis anos como figuração do aniquilamento de si na fusão regressiva com a mãe, assim como a indiferenciação, o desmoronamento, a sufocação, a asfixia, o desespero do abandono e da indisponibilidade materna. Caída entre dois barcos, ela fora salva por alguém enquanto a mãe se revelava dramaticamente não confi ável, numa pantalona branca, tagarelando ao pé do mastro…

O sentimento de não ocupar um lugar para os pais encontrava figuração concreta no fato de não ter um quarto em casa, tampouco na casa dos avós maternos, com quem costumava dormir na cama deles (e depois da morte do avô, no lugar dele). Christine encontrava ali um refúgio, deixando-se cevar* pela avó, diante da televisão. A falta de espaço privado fi cava materializada, deixando a única filha ser invadida pelos adultos. Gordinha e gaga (enurética até os sete anos, asmática dos oito aos quinze), ficava excluída dos grupos e já coberta, como dizia, por uma “camada de medo”. Durante muito tempo ela não suportava a mínima proximidade física com a mãe, invadida por fantasias de retorno ao ventre e afogamento no líquido amniótico, e também de bater nela e matá-la: esses temas de fobias de impulsão se transformaram em cenários oníricos.

As narrações de sonhos permitiram reconstituir uma atividade psíquica que durante muito tempo lhe fora acessível somente durante as sessões. As interrupções traziam momentos paroxísticos de desespero.

A incapacidade de pensar na coalescência das angústias paranóides e depressivas (deprimida por estar angustiada e angustiada por estar deprimida) foi suprimida pela função continente do analista, com a condição de que ele de fato estivesse presente. É preciso também acrescentar a função organizadora da clivagem entre o psiquiatra e o analista, e a procura de um guru para tentar se libertar do sentimento de dependência e encontrar uma superioridade – aquela dos iniciados ou dos espertos, a do pensamento mágico, a da onipotência do pensamento.

Christine dizia, do seu cérebro: “Não posso mais com o automatismo do meu cérebro…”. Mas a organização da narração destinada ao interlocutor lhe outorgava uma posição ativa, para começar, restrita à sessão e pouco a pouco extensiva à sua atividade psíquica no exterior. Por exemplo: ir comprar um bolo Saint-Honoré, na rua Saint-Honoré, onde seu pai havia trabalhado e que tinha relação indireta com Christophe.

Houve uma reapropriação de sua história criando vínculos que deviam partir da ação e da percepção atual na realidade, realizando atos que tinham sentido para tornar possível a introjeção a partir da projeção, contornando a clivagem do dentro e do fora, do subjetivo e do objetivo, do interior e do exterior. Ao mesmo tempo, ela dizia ter reencontrado suas emoções e seus desejos e não se sentir mais como um robô. Paralelamente, as freqüentes somatizações se espaçaram.

 

O odor do formol

Seguindo o exemplo do marido, Christine entrou numa loja maçônica com o objetivo de pertencer ao grupo – a seu ver, místico, dos iniciados – de seres superiores de uma aristocracia secreta que, sem passar pela religião, tem acesso aos mistérios, ao sagrado.

Venceu a dimensão ligeiramente persecutória da experiência de iniciação e foi admitida como “aprendiz”. Um dia, vestidas de preto e usando luvas pretas, as aprendizes escutaram o discurso moral da “Venerável”, após a leitura de textos sobre o bezerro de ouro e o sagrado na maçonaria. Então ela teve a sensação inquietante de um cheiro de formol na sala. Contudo, duvidou, pois em seguida perguntou às outras se estavam sentindo o mesmo odor. Christine falou disso como se falasse de uma alucinação. Mais tarde, se perguntará se não havia cheiro de queimado no consultório de Brusset.

Aparece, com efeito, que a emergência substitutiva e de quebra dessa formação do inconsciente estava ligada à condensação extrema de várias redes associativas que constituíam uma unidade semântica sob um só signifi cante olfativo: o cheiro de formol. As associações na sessão foram as seguintes: a rã despojada e dissecada na aula quando ela tinha oito ou nove anos, a rã formolizada, esquartejada e alfinetada na placa de cortiça; a taxidermia do hamster de uma colega de aula, e, por várias cadeias associativas, o “Cristo esquartejado”. Essa figura teve grande importância em sua educação católica e na longa freqüência a escolas particulares. Mas conduziu sobretudo ao quarto dos pais. Dormindo até os doze no quarto deles, ela foi testemunha direta de relações sadomasoquistas na sexualidade e na violência, mais ou menos confundidas. Tinha medo de que um matasse o outro. Usada por eles nos conflitos e nas loucuras deles, Christine sentia-se privada de existência própria, entre uma mãe que a abandona logo para retomar um comércio que lhe absorvia todo o tempo e um pai fascinante e bizarro, pelos ritos obsessivos, talvez pelas idéias delirantes, e que não suportava o mínimo de contato com ela.

Uma saída significativa ao trauma da cena primitiva foi, em referência ao grande crucifixo que ficava na frente da cama de seus pais, a identificação com o Cristo crucifi cado (ela dizia “esquartejado”).

 

O crucifixo

Ele teve uma função essencial no espaço externo da percepção visual. Uma forma humana masculina, inanimada, imóvel, silenciosa, unifi cada na e pela dor (a função do masoquismo), fetichizada, foi usada como talismã contra a desorganização, a fragmentação, o esquartejamento não representável, a agonia primitiva.

Crucificada, esquartejada, esfolada viva pelo transbordamento das excitações traumáticas, ela podia, como Cristo na cruz, viver o abandono, mas também esperar o amor de Deus e ser ela própria Deus, detentora da onipotência neste mundo e no outro.

Crucifi cada, esquartejada, esfolada viva pelo transbordamento das excitações traumáticas, ela podia, como Cristo na cruz, viver o abandono, mas também esperar o amor de Deus e ser ela própria Deus, detentora da onipotência neste mundo e no outro.

Christine tinha se perguntado, sem chegar a uma convicção, se ela não seria o novo Messias ou a reencarnação da Virgem Maria destinada a dar à luz. No entanto, continuou durante muito tempo atenta aos sinais misteriosos desse destino que ela lia em tal e tal coincidência e os quais pensava lhe ser destinados. Da mesma forma, quando criança, procurava compreender o que pai esperava dela e decifrar o sentimento enigmático de certos comportamentos dele, que lhe deram fortes motivos para pensar que eram bem patológicos (ritos obsessivos, palavras estranhas, atividades misteriosas).

O cheiro de formol pertencia ao apartamento da Venerável, à figura materna da Venerável. As impressões sensoriais se cristalizaram subitamente ao redor de uma percepção sensorial que se revelou ser um vestígio mnêmico. Este, na lógica narcísica, remeteu a uma imagem mortificada dela mesma: a rã no formol, o Cristo na cruz, imagem da qual se poderá relacionar também com o que ela disse mais tarde da acupuntura a que se submetia e com as fantasias masoquistas aí vinculadas. O cheiro de formol, oposto ao de água de colônia, aludia com abjeção ao cadáver e aos afetos em relação com a analidade (uma parte dela mesma expulsada) e, além disso, ao masoquismo e ao sadismo assassino, ao assassinato da Venerável.

A relação com a Venerável, assim como com as outras associações, é, ao menos provisoriamente, protegida. A ruptura chegará depois.

 

A projeção direta no analista

Durante uma sessão, ela evocou, conforme a economia do Bem e do Mal, as coincidências que lhe faziam sentido: se alguma coisa de bom e de positivo acontece para alguém, uma infelicidade deve ocorrer no ambiente. Ora, sua melhor amiga Martine estava grávida e lhe propusera viverem juntas a gravidez – Christine não podia ter filhos. Dois meses depois, a ecografia revelou que a amiga abrigava um feto sem braço. Depois do aborto, Martine o guardou num frasco e lhe disse que ele parecia um coelho. Num sonho, Christine mostrou ao ex-marido que Martine punha ovos dos quais saíam coelhinhos… As associações a orientaram em direção a um quadro do Louvre, A Virgem e o coelho, e, no que concerne à sua infância, aos ovos de Páscoa feitos de chocolate, no jardim da avó.

Na sessão seguinte, ela disse a Brusset, de repente, num tom de reclamação muito inabitual: “É porque o senhor me disse que eu me ocupava demais com a minha avó que a minha amiga Martine teve essa infelicidade. Se eu me ocupo menos, a culpa é sua”. Pela primeira vez em vários anos, a acusação é direta, viva, afetada, inesperada, a ponto de, embaraçado pela contra-identificação projetiva imediata, Brusset lembrar-lhe de que sabe muito bem que não faz julgamento, antes de mostrar que ela lhe atribui – devido à grande culpabilidade que experimenta – uma acusação que faz a si própria. Buscando controlar a viva emoção, ela responde se justificando longamente por ter deixado a avó por razões objetivas incontestáveis, mas acrescentando razões não menos objetivas de seu sentimento de dívida em relação àquela avó que muitas vezes a socorrera na sua infância. Sua culpabilidade tornouse então consciente. Não era ela a castigada, mas sua amiga. Christine sente-se culpada por alguma coisa na infelicidade da amiga, uma das únicas da qual se sente próxima. A partir das intervenções de Brusset, ela fi ca consciente da ambivalência de suas reações: Martine ia ter um filho, mas ela não podia ter filhos.

Antes, pela clivagem da transferência, o vínculo com Brusset ficara positivo e com o psiquiatra que a tratava paralelamente, suspeito. Ao não tomar os remédios que ele receitava, Christine expunha uma saída simbólica à desconfi ança projetiva e sentia-se castigada pelo retorno de mais angústia ou mais depressão. Pela redução da clivagem, Brusset ficou não o perseguidor, o “mau objeto”, mas o acusador. Pela projeção do superego, a reprimenda que ela se fazia foi exteriorizada, e, pelo fato atribuído ao terapeuta, ela pôde se confrontar, justificando-se com um discurso que mais parecia uma defesa.

Redução das clivagens e elaboração da posição depressiva transformaram o vínculo com Brusset. Christine lamentou que as pessoas ao seu redor não fizessem sobre eles mesmos um trabalho como o que fazia com seu terapeuta. Era uma maneira de reparar-se com o terapeuta após tê-lo acusado vivamente de acusá-la. A projeção é aqui um deslocamento do dentro ao fora da crítica superegóica, mas ela dá lugar à crença na realidade da reprimenda ouvida, de maneira que seria justificável falar em projeção identificatória, isto é, um aspecto da identificação projetiva.

Sem dúvida, Brusset encarnava para Christine a figura protetora do superego a quem ela estava sempre tentada a desafi ar, quando ia consultar médiuns. Porém a intenção dessas infidelidades era também comunicar-se com os mortos. Ela se preocupava com a saúde do terapeuta, convencida que devia se sacrificar para que ele se sentisse bem. A interpretação de Brusset – fazendo referência à culpabilidade de ter diminuído a vida do pai agonizante – fora preparada e prudente, mas desencadeou um sofrimento vivo que lhe contorcia o rosto, testemunhando a intensidade dramática daquele luto difícil.

A partir daqueles momentos fecundos da transferência, o processo se mostrou modificado, no sentido de uma eficácia crescente da atividade de pensar e de uma crítica das crenças delirantes, beneficiando assim uma atividade transicional transformada progressivamente em jogo, e não mais em ludismo maníaco. Permitiu a elaboração analítica dos conflitos intrapsíquicos correlacionados com a história infantil, assim como melhores relações com ela mesma e com o ambiente. As principais dificuldades persistentes se situavam no plano amoroso e na dificuldade de estabelecer uma boa distância nas relações de objetos internos e externos.

No final, o processo projetivo compulsivo destinado à repetição progressivamente deixou lugar a uma forma de transicionalidade produtora de introjeções na ligação foradentro e sujeito-objeto relativamente estabilizada, enquanto o aparecimento localizado e temporário de mecanismos de projeção fi cou disponível para o trabalho analítico.

 

 

Endereço para coorespondência
Magda Guimarães Khouri
Rua da Consolação, 3741/22 – Cerqueira César
01416-001 – São Paulo – SP
E-mail: magdakhouri@uol.com.br

 

 

1 Membro associado da SBPSP.
2 Questão levantada no grupo de preparação ao Congresso Francês de 2006, coordenado por José Martins Canelas e Luís Carlos Menezes.
3 Segundo P. Grimal em Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine, a Esfinge ou Fix (a estranguladora) era uma figura alada, com cabeça de mulher e corpo de leão. Foi enviada por Hera a Tebas para punir Laio pelo rapto e pela sedução de Crisipo. Outros pensam que foi enviada para punir os tebanos pela negligência de seus ritos. A esfi nge também é considerada como filha natural de Laio (citado por G. Hazel, Dictionnaire de la mithologie).
* No original, gaver, cevar: alimentar(-se), nutrir(-se), engordar(-se). [N. T.]

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