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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.1 São Paulo mar. 2007

 

TERCEIRA TÓPICA?

 

Demarcação originária e transformações da ligação, de Freud a Winnicott1

 

Demarcación originaria y transformaciones de la ligación, de Freud a Winnicot

 

Originary landmark and transformations of bonding, from Freud to Winnicott

 

 

André Green2

Société Psychanalytique de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de ligação pertence à teoria psicanalítica desde sempre (Freud, Bion, Winnicott). Brusset atualiza-a. Essas contribuições trazem sentidos variáveis ao conceito de ligação. O autor relembra- as e comenta-as e examina o interesse e os limites de uma terceira tópica.

Palavras-chave: Pensamentos latentes; Destrutividade; Relação indivíduo-entorno; Transicionalidade; Terceira tópica.


RESUMEN

La noción de ligación pertenece a la teoría psicoanalítica desde siempre (Freud, Bion, Winnicot). Brusset la actualiza. Estas contribuciones traen sentidos variables al concepto de ligación. El autor las recuerda y comenta, así como examina el interés y los límites de una tercera tópica.

Palabras clave: Pensamientos latentes; Destructividad; Pareja individuo/ambiente; Transicionalidad; Tercera tópica.


ABSTRACT

Th e notion of bonding has always belonged to the psychoanalytical theory (Freud, Bion, Winnicott). Brusset updates it. These contributions add variable meanings to the concept of bonding. Th e author reminds them, comments on them and examines the interest and limits of a third topic.

Keywords: Latent thoughts; Destructivity; Couple individual-surroundings; Transitionality; Third topic.


 

 

A noção de ligação pertence há muito tempo ao arsenal teórico da psicanálise, embora não de forma explícita. Ela volta à ordem do dia através da tentação de introduzir novas concepções que nos permitam uma melhor compreensão de certos aspectos clínicos descobertos recentemente. Na verdade, a questão de sua pertinência nunca foi descartada, dado que o método psicanalítico repousa sobre a regra fundamental. A associação livre obriga a considerar as novas ligações produzidas pelo método, expandindo a compreensão do material submetido ao analista. Com a evolução da prática psicanalítica, o conceito de ligação enriqueceu-se de novas significações. Resta-nos tentar colocar em perspectiva as idéias subentendidas nas diversas acepções de “ligação”.

 

Freud

A idéia de ligação está presente na exposição de Freud a partir do capítulo VI de A interpretação dos sonhos, que com o passar dos anos surge como o corpo central da obra.

Estamos sozinhos a levar em conta algo mais. Introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossa investigação: A saber, seu conteúdo latente, ou os pensamentos oníricos, que evidenciam nosso procedimento analítico. É a partir destes pensamentos latentes, e não a partir do conteúdo manifesto, que procuramos uma solução. Assim, vemo-nos diante de uma nova tarefa. Devemos pesquisar quais são as relações entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos latentes e examinar o processo através do qual estes produzem aqueles (Freud, 1967, p. 241).

Essas falas programáticas levaram-me à aproximação com a passagem bem conhecida do pseudoprótons. Analisando o sintoma, Freud descreve uma cena I (em relação direta com a lembrança evocada a partir do sintoma), depois aparece “uma outra lembrança que (segundo a paciente) não estava presente em seu pensamento no momento em que a cena I foi evocada” (Freud, 1957, p. 364).

Duas cenas em 1895, dois modos de pensar em 1899-1900. “Resta-nos somente descobrir entre os dois uma ligação associativa” (idem, p. 365). A analogia é fundamentada pelo fato de que os pensamentos latentes são tão presentes no sonho quanto a lembrança da cena II na análise do sintoma. Aqui, como na terceira parte de “Esboço”, aparece uma tarefa semelhante procurando a ligação associativa entre duas séries independentes e ao mesmo tempo coexistentes através da associação.

Porém, no pseudoprótons, o sintoma seria o resultado de uma descarga sexual, enquanto no sonho se forma o conteúdo manifesto. Se aqui não se trata de uma descarga sexual, trata-se, porém, de uma forma de precipitado ligado a uma forma de atividade consciente e percebida. Essa forma de precipitado é, sem dúvida, dependente do pensamento primário da associação, que pode ser considerado como o avatar do processo alucinatório.

Somos conduzidos, assim, a aproximar o sonho e o sintoma. Os dois mostram que o acesso ao inconsciente só pode ser indireto, religado ao complexo processo alucinatório – pensamento primário que, segundo Freud, é uma forma primitiva do trabalho do pensamento. É importante distinguir as circunstâncias em que eles aparecem. Freud estava atento a esta questão:

É verdade, sem dúvida, que diversas ligações de idéias só aparecem durante a análise, mas podemos, em todos estes casos, verificar que essas novas ligações somente se estabelecem entre pensamentos que já estavam de alguma forma ligados aos pensamentos oníricos; essas novas ligações são, por assim dizer, inferências desviadas, curtos-circuitos, tornados possíveis por outras vias de ligação mais profunda. Deve-se admitir que a grande massa de pensamentos descobertos durante a análise já era ativa na formação do sonho. Pois, quando seguimos o encadeamento dessas formas de pensamentos que parecem não ter nenhuma ligação com o sonho, deparamonos subitamente com uma idéia que estava representada em seu conteúdo, que é indispensável para sua interpretação, mas que, apesar disso, não poderíamos atingir de outra forma a não ser seguindo esse encadeamento (Freud, 1967, p. 243-244).

A idéia de Freud, portanto, é dupla:

• A chave do sonho não deve ser procurada no conteúdo manifesto.

• Um modo de ligação perceptível na análise poderia ser originado por um modo de ligação hipotético que estaria presente no encadeamento das idéias do sonho. Em resumo, a ligação até então imperceptível (inconsciente) é identificável na análise do sonho. Segundo Freud, sua origem deve ser inferida, prioritariamente, nas associações entre os pensamentos latentes, sem que seja possível detectá-la nesse nível, a não ser a partir da coincidência entre os pensamentos que surgiram na análise e certos pensamentos do sonho. Revelação de um estado inconsciente onde ela aparece primeiro; coincidência nas duas séries (pensamentos latentes e conteúdos do sonho); revelação pós-ato, levando em conta que, na multiplicidade de pensamentos latentes, somente alguns farão parte da formação do sonho, através de uma seleção apropriada que só é inferida posteriormente. Enfim, o conjunto desses encadeamentos leva a supor não somente a importância da explicitação do papel dos pensamentos do sonho, mas também sua característica dinâmica, reativada diante de outro dinamismo próprio à análise do sonho (idem, p. 247).

Inconsciente indireto relativo a um outro modo de ligação diferente e comparável, ligação de pensamentos latentes e da análise do conteúdo do sonho. Tal funcionamento reticular favorece a ambigüidade decorrente de numerosas interpretações que parecem surgir do sonho que foi assim tratado.

Podemos compreender que o sonho resulta de uma espécie de “estabilização seletiva” dos pensamentos latentes, ou até que a massa inteira dos pensamentos oníricos seja objeto de elaboração do trabalho do sonho.

Não importa qual seja o sonho que eu decomponha, encontro sempre os mesmos princípios: os elementos do sonho surgem de toda a massa de pensamentos oníricos e de cada um deles, e se os aproximamos dos pensamentos oníricos verifi camos que já eram sugeridos por eles (ibid., p. 247).

O deslocamento, mesmo tendo sido tratado brevemente, é interessante: Não existe relação nem correspondência entre os elementos do conteúdo do sonho considerados essenciais e o papel que eles desempenham nos pensamentos oníricos e, inversamente, o que parece essencial nos pensamentos oníricos não será sequer representado no conteúdo.

“O sonho é diferentemente centrado” (ibid., p. 263; grifo meu). A condensação nos permitiu pensar melhor a complexidade de relações entre diferentes tipos de conteúdo. O deslocamento, sempre animado pela dinâmica interpretativa, alerta-nos para o papel do disfarce e da censura.

Entre os pensamentos que a análise revela existem muitos que estão relativamente afastados do núcleo do sonho e que parecem interpolações hábeis e oportunas. Podemos facilmente descobrir sua finalidade: elas representam a ligação (freqüentemente forçada e procurada) entre o conteúdo do sonho e os pensamentos oníricos (ibid., p. 265; grifo meu).

A supressão dessas ligações “tendenciosas” retiraria do sonho sua determinação. Devemos concluir, portanto, que a determinação múltipla, que decide a escolha do que deve ser incluído no sonho, nem sempre é um fator primário da formação do sonho, mas com freqüência é o resultado secundário de um poder psíquico ainda desconhecido. Em resumo, a condensação compreenderia certa proliferação associativa, enquanto que o deslocamento procura deixar confusa a tentativa de encontrar o motivo central.

Freud sintetiza essas descobertas: “Assim, parece plausível pensar que na elaboração do sonho se manifesta uma força psíquica que, por um lado, atenua a intensidade dos elementos de alto valor psíquico e, por outro, graças à sobredeterminação, dá um valor maior aos elementos menos importantes, permitindo sua penetração no sonho” (ibid., p. 265-266). O deslocamento de um valor complementar à condensação resulta na modificação das intensidades psíquicas.

Neste ponto de seu desenvolvimento, Freud tem a impressão de chegar finalmente a uma conclusão que até então lhe havia escapado: “Podemos a partir daí compreender a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e o de seus pensamentos: houve no processo de formação do sonho uma transferência e deslocamentos de intensidades psíquicas de diferentes elementos. Esse processo é a parte essencial da elaboração do sonho” (ibid., p. 266).

A interpretação do sonho, como podemos ver, não se contenta de ser uma hermenêutica, ou então esta deve ser uma hermenêutica atravessada por modifi cações econômicas que disfarçam sentidos encenados, modifi cam a proporcionalidade que é repartida entre diferentes elementos e onde a ligação é necessária à compreensão do sentido.

Freud é extremamente cuidadoso para não confundir os pensamentos oníricos que intervêm na formação do sonho e aqueles que se manifestam a posteriori. Neste último caso afirma: “Devemos reunir todas as vias de ligação que nos conduzem ao conteúdo manifesto do sonho e aos seus pensamentos latentes, como também todas as associações de idéias por contigüidade e por semelhança que, durante o trabalho de interpretação, nos permitem descobrir os caminhos de ligação” (ibid., p. 268).

Nesse ponto, Freud considera importante esclarecer que o sonho não dispõe de meios para representar as relações lógicas. Em resumo, se até aqui Freud esforçou-se para descrever através da condensação e do deslocamento uma forma de síntese oculta, esta não tem nada em comum com a lógica secundária. E se queremos ver a síntese como uma maneira de esclarecer as regras de linguagem, a preocupação de Freud pode combinar os caminhos através dos quais podemos elucidar a elaboração do sonho indissociavelmente da regra oposta, que parece ter como dever desprezar o que foi interpretado. Freud foi preciso: a figuração do sonho não refl ete a preocupação de ser compreendido.

Não poderíamos prosseguir sem que a equação conteúdo manifesto + pensamentos latentes nos leve a um resultado satisfatório, sem levar em conta o fato de que o conteúdo manifesto se apresenta sob a forma de um discurso em imagens. Na verdade, a forma em imagens presta-se, em parte, às exigências do trabalho do sonho: formação de pessoas compósitas, identifi cações.

No fim das contas, Freud distingue várias esferas de trabalho a partir do conteúdo manifesto:

• a pesquisa de pensamentos latentes;

• sua relação aos pensamentos da véspera;

• sua interferência com o conteúdo manifesto do sonho;

• os modos essenciais do trabalho do sonho: condensação, deslocamento, consideração da figurabilidade;

• o tratamento da censura;

• finalmente, a categoria mais citada do que tratada, a das forças psíquicas que animam os modos de trabalho do sonho (p. 265 [2 vezes]; p. 266). Essa referência “às forças psíquicas desconhecidas” sugere que as modalidades de trabalho do sonho são da mesma natureza do fenômeno do sonho. São modalidades do trabalho de ligação cuja dinâmica depende das forças que animam o dispositivo e que eram constitutivas de um tipo de ligação lógica que não cessa de se encontrar em profundidade: a semelhança, o acordo, o contato, o do mesmo que, que podemos adivinhar apesar de todas as deformações causadas pela censura. Porém, nada é mecânico nessa inferência à analogia freqüentemente mascarada e irreconhecível. O alvo desse trabalho é duplo e contraditório: favorecer a transposição dos mecanismos inconscientes em direção à consciência, assegurar seus disfarces para ludibriar os efeitos da censura. Uma indicação preciosa: A intensidade maior recai sobre elementos do sonho cuja formação exige a maior condensação (ibid., p. 384).

Porém, o caráter secundário não abandonou totalmente a área. A elaboração secundária aproxima o sonho da fantasia, que faz intervir a colaboração dos fatores psíquicos inseparáveis dos pensamentos da véspera que têm a marca de uma ação pré-consciente agindo sobre as percepções.

Quanto ao simbólico, não há necessidade de invocar uma forma especial que seja particular ao sonho. Em todos os estados, é o contexto que decide por uma representação exata (ibid., p. 303), por exemplo, quando nos confrontamos com uma associação por contraste.

O conjunto desses dados será retomado no capítulo VII, sobre a psicologia dos processos do sonho.

A Interpretação dos sonhos é construída nas primeiras elaborações da relação do inconsciente com as pulsões, com base no conceito de desejo e realização do desejo. Na época em que redigi Le discours vivant (1969), a revisão da antiga tradução de Meyerson (1926) não tinha ainda a legitimidade que adquiriu depois. Assim, ofereci ao leitor minhas próprias traduções, a partir da Standart Edition. Segue minha proposta de tradução do que ele escreveu sobre a experiência de satisfação:

Um componente essencial desta experiência de satisfação é uma percepção particular (no nosso exemplo: a da mamada, do qual a imagem mnêmica fica posteriormente associada ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade) como resultado da ligação que se estabeleceu na próxima vez em que esta necessidade surge;um impulso psíquico irá emergir imediatamente e buscará reinvestir a imagem mnêmica da percepção e revocar a própria percepção, quero dizer restabelecer a situação de satisfação originária. Um impulso desta natureza é o que nós chamamos de desejo, o reaparecimento da percepção é a realização do desejo (Green, 2004, p. 231-232; grifos meus).3

Quando Freud retoma a questão uma última vez em Esboço de psicanálise, ele mantém sem alterações suas idéias sobre o assunto de que estamos tratando (Freud, 1978, sobretudo cap. V, p. 29).

O que dizer sobre essa releitura recente do trabalho do sonho? Sem nos determos nas aprovações esperadas, eu diria que o que me surpreende é como as idéias de Freud e sua construção, não somente criativa, mas visionária, são necessárias, não obstante o fato de serem de difícil aplicação e de continuarem evoluindo durante quase quarenta anos. Porém, a meu ver, nem as dificuldades de aplicação nem o que foi anexado posteriormente põem em questão a validade das idéias emitidas em 1900. A relatividade entre elas surgiria por ocasião do estudo das formas clínicas que não foram levadas em consideração em 1899-1900.

 

Bion

Após o lançamento de A interpretação dos sonhos, Freud parece desviar a atenção que dedicara à “ligação”, visto que dispõe de poucos exemplos em que poderia colocar em perspectiva as duas séries que havia identificado para o sonho.4 Se as noções teóricas sobre a “ligação” nunca foram recusadas nem questionadas, podemos dizer que sua evolução permaneceu oculta. Ela reaparece em 1930, no momento em que as teorias de Fairbairn e de Melanie Klein trazem de volta o tema empregando a palavra “relação” – na expressão “relação de objeto” a que se atribui uma significação muito imprecisa.

Veremos ressurgir o interesse pela “ligação” através das contribuições de Bion entre 1957 e 1962. Os artigos de Bion que antecedem a formulação de uma teoria geral do psiquismo refletem a influência de Melanie Klein, principalmente das teorias que ela expõe em 1946 em “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” (Klein, 1966). Eles colocavam então em primeiro plano o conceito de identificação projetiva, dando um status mais teórico e preciso aos mecanismos característicos da posição esquizoparanóide ao combinar os processos de clivagem, de evacuação e de expulsão. Isso tinha como conseqüência a renúncia do paciente a qualquer pesquisa da causalidade psíquica elaborada em relação ao vivido por ele. O mais difícil de compreender é a identificação com as partes projetadas.

Parece haver um acordo entre os kleinianos para que todos adotem essas idéias, apesar das reservas de seu próprio autor. Bion prefere utilizar a noção de “ligação” à de relação de objeto. Em seu trabalho sobre os ataques contra a ligação (Bion, 1983, p. 105-123), ele é bastante claro: “Utilizo a palavra ‘ligação’ porque desejo examinar a relação do paciente com uma função, mais do que com o objeto que ocupa essa função; não me interesso apenas pelo seio, ou pelo pênis, ou pelo pensamento verbal, mas por sua função, que é da fazer a ligação entre dois objetos” (ibid., p. 115).

Essa mudança de perspectiva é conseqüência da escolha de Bion de centrar sua reflexão na função, que está sob a dependência da destruição. Na seqüência do que desenvolve, é mais freqüente o questionamento sobre os efeitos da destruição de uma função do que o esclarecimento da própria função. A situação parece reduzir-se no paciente ao problema causado pela existência do analista e do paciente, um diante do outro. Essas relações são marcadas pela raiva e pela preocupação de se livrar de fragmentos que são a conseqüência da destruição. Isso obriga a ficar atento a todas as tentativas de ejeção, principalmente depois que o pensamento verbal perdeu seu poder de elaboração secundária. A ejeção se produz por todos os meios disponíveis: os sentidos, a pele, tudo o que consiga afastar a raiva dos locais onde ela opera: “a raiva é reforçada por ataques mortais contra o que une o casal, contra o próprio casal e contra o objeto gerado pelo casal” (ibid., p. 113). O modelo da cena primitiva está implicitamente presente na formulação. Essa é uma das características de Bion: continuar a utilizar as noções da teoria freudiana em relação ao que ele vislumbra por estarem subjacentes às relações com o objeto parcial que se referem à sexualidade infantil, às quais ele acrescenta os conceitos kleinianos posteriores a essa primeira fonte: fragmentação, angústias arcaicas, expulsão projetiva etc.

A teoria de Bion não pode ser esclarecida sem que se mantenham certos postulados associados à possibilidade para a consciência do objeto (a mãe) de reconhecer sua existência. Exemplo: “Uma mãe compreensiva é capaz vivenciar um sentimento de terror – que esse bebê tentaria resolver através da identificação projetiva – e ao mesmo tempo conservar uma atitude equilibrada” (ibid., p. 117). Pode-se duvidar dessa afi rmação. A posição de Bion é difícil de argumentar, pois a questão é mais ambígua: “Do ponto de vista do bebê, a mãe deveria tomar para ela mesma, e viver ela própria, o medo de que ele estivesse morrendo” (ibid., p. 117; grifo meu). Poderíamos então afirmar que ela seria capaz de sustentar uma “atitude equilibrada”? Se reconhecermos que a identificação é indispensável, é difícil visualizar como o objeto pode se afastar para reagir de maneira distanciada e apropriada. Pois esses ataques já não partem apenas da identificação projetiva como meio de evacuação das partes destruídas, mas também dos ataques destinados ao objeto contra a identificação projetiva.

Essa é a impressão que temos ao ler um material clínico interessante, mas onde tudo repousa nas especulações do analista sobre a carência de mecanismos que permitam entrever, através da escuta ou da intuição, a existência de uma relação entre duas séries organizadas por regras de funcionamento diferentes, quase opostas: as supostamente referentes à mãe e as igualmente hipotéticas das emoções infantis. Os artigos dessa época permitem uma melhor compreensão desse ataque às ligações. Pois, se não podemos relacionar, através da interpretação dos sonhos, dois modos deferentes de tratamento (inconsciente e pré-consciente), podemos imaginar as oposições em um plano mais geral.5 Assim, no artigo: “Diferenciação das personalidades psicóticas e não psicóticas” (Bion, 1983, p. 51-73), a diferença situa-se na intensidade da clivagem mais ou menos acentuada. A parte psicótica é o testemunho de uma ação de fragmentação dos fragmentos destruídos, o que é poupado à parte não psicótica, que, por sua vez, está submetida aos efeitos do recalque. Os traços característicos que Bion nomeia são:

• “A preponderância das pulsões destrutivas é tão forte que até a pulsão de amor fica impregnada e se transforma em sadismo”.

• O ódio da realidade interna e externa.

• O terror de aniquilação eminente.

• A formação prematura e precipitada das relações de objeto (idem, p. 52) precárias e constituídas de uma fina camada psíquica.

Diante dos efeitos devastadores de tal constelação, só nos resta a transferência para tentar pensar a situação clínica. Na verdade, trata-se de uma transferência quase que exclusivamente baseada na contratransferência, pois somente os pensamentos e afetos do analista são considerados, em virtude do empobrecimento de todas as comunicações da transferência.

Bion apresenta suas idéias sobre a formação do psiquismo primitivo desde os primeiros pensamentos verbais, que não se relacionam necessariamente com o verbal por serem constituídos de ligações no interior da matriz de ideogramas, elementos mais relacionados à visão que ao pensamento. São essas ligações que são atacadas até não ser mais possível reunir dois objetos conservando intactas as qualidades intrínsecas a cada um, produzindo, através dessa conjunção, um objeto verbal (ibid., p.59). Em resumo, a ligação é atacada em si, e em seu valor gerador, pelo fato da alteração dos fragmentos interligados.

Bion faz a aproximação com o sonho. Pois não mais está em questão para o paciente a evolução em um mundo de sonhos, “mas em um mundo de objetos que constituem normalmente o material dos sonhos” (ibid., p. 60). Aqui podemos introduzir o segundo termo de comparação, aquele que se refere à função alfa, como intermediária entre o material e o próprio sonho. Se colocar em perspectiva não possibilita uma intervenção, o paciente se sente mutilado, assim como o sonho pode ser atacado por fantasmas sádicos. A hipótese é interessante, mas parece não levar em conta as diferenças de natureza entre os ataques sádicos (pulsionais) contra o sonho e o sentimento de aprisionamento psíquico do paciente.

O interesse das idéias de Bion está em chegar a uma teoria do pensamento sem a qual nada é compreensível. Esta vem coroar seus trabalhos, preparando a passagem para uma teoria sistematizada que inaugura em 1967. Um novo tipo de ligação pode ser inferido aqui, a ligação entre os pensamentos, que obriga, através de sua pressão, a uma modificação na atividade de pensamento produzida pelo aparelho de pensar idéias. Daí surge toda uma escala de funções entre percepção e frustração, que possibilita o nascimento dos pensamentos ou concepções, entre pré-concepção e realização, e assim por diante.

Essa engenhosidade teórica é preciosa e seus desenvolvimentos são úteis na medida em que se integra o conceito de negativo (Green, 1993). A capacidade de tolerância à frustração é a chave mestra do sistema.

“O modelo que lançarei para esse desenvolvimento (desenvolvimento hipertrofiado do aparelho de identificação projetiva) é o de uma psique que funciona de acodo com o princípio que evacuar um mau sonho equivale a tirar o leite de um bom seio” (Bion, op. cit., p.128). Isso lembra a formulação freudiana segundo a qual evitar um desprazer pode equivaler a um ganho de prazer. Mas a questão aqui é outra: o que anima o aparelho psíquico não é simplesmente a evitação do desprazer e a busca do prazer, e sim o alivio do aparelho psíquico dos efeitos da destrutividade com a finalidade de impedir a formação de um desejo que tenha esta conotação.

 

Winnicott

As contribuições de Winnicott ao tema da “ligação” são originais e específicas. Não podemos dissociá-las do conjunto de concepções gerais do autor. Acabamos de ver, com as idéias de Bion, que este segue Melanie Klein em sua idéia da existência de certas predisposições inatas à destruição, assim como em sua concepção da existência de relações de objeto desde o começo da vida. Winnicott questiona essa pretensa condição inata da destrutividade, e embora não diminua absolutamente sua importância, concebe-a como o resultado de uma carência primitiva do entorno. Nesse ponto, Winnicott está mais próximo de Freud do que de Melanie Klein. Aliás, ele nunca propôs uma análise detalhada de seus postulados básicos. Encontramos, porém, em A natureza humana, obra póstuma e que ficou inacabada, formulações sobre uma teoria subjacente que explica as posições que ele assumiu. Vamos relembrar certas concepções essenciais sem retomar o conjunto de suas idéias.

Winnicott não acredita ser possível pensar em termos de indivíduo nos primeiros tempos após o nascimento, pois, para ele, na origem não existe um eu individual para separar o ego do não-ego. Desse estado primitivo de indistinção, a observação do bebê não pode imaginar para si um lugar “lá onde haveria um espaço para se sustentar e ver” (Winnicott, 1990, p. 171). Portanto, é mais legítimo conceber na origem da vida uma “unidade entornoindivíduo”. Assim, concebe-se melhor falar de um não-ser das formas primitivas dessa unidade a partir do qual o ser poderia emergir na seqüência das ligações entre os dois elementos da unidade. Porém, esse ser somente adquire essa possibilidade de surgir do não-ser porque lhe atribuímos uma atividade importante recebida do objeto através dos cuidados que ele dispensa, sem que tenhamos a possibilidade de identificar sob quais formas eles existem quando nos colocamos hipoteticamente no lugar do bebê, que, nesse estágio, não tem nenhuma consciência do entorno ou dos cuidados que recebe. O que está em questão nesses primeiros estágios é assegurar a continuidade entre a vida intra-uterina e a vida externa, como entre os diferentes aspectos da vida psíquica primitiva. Quando as primeiras etapas se desenvolvem de maneira satisfatória, elas evitam a reação de apropriação que levaria a uma consciência prematura e parasitária do objeto, suscetível de atrapalhar o desenvolvimento da autonomia e da criatividade que já estão presentes, preparando a gênese do objeto.

Aqui podemos ver todo o paradoxo das ligações das quais é necessário ou postular a existência “de uma forma que nos é desconhecida” ou não mencioná-las e, portanto, cometer o erro da omissão. A esse estado corresponderia uma solidão fundamental como forma de narcisismo primário que só poderá reaparecer em certas condições regressivas, e à qual Winnicott atribui um papel de substituto daquilo que as descrições de Freud indicam como um funcionamento ligado à pulsão de morte. Mas aqui, também, esse fundo primitivo é mascarado pelo desenvolvimento de relações de objeto posteriores a este estado. Como diz Winnicott, trata-se de “um estado sereno de não-vida que pode tranqüilamente ser atingido através de uma regressão levada ao extremo” (ibid, p. 172). A aproximação que estamos fazendo com a pulsão de morte se apóia na qualifi cação que Winnicott atribui a este estado como “anterior à animação da vida”.

Compreendemos a complexidade e a sutileza do pensamento de Winnicott, um estado de solidão que apesar disso compreende a existência de um entorno imperceptível enquanto tal, e onde as ligações devem existir, dado que é graças a elas que a consciência individual pode emergir – embora não possamos colocá-las em evidência enquanto tais, sob o pano de fundo de um estado de solidão essencial, ultrapassado pelo desenvolvimento, mas ao qual a regressão pode aspirar a retornar, e que é, ao mesmo tempo, ligação pela tentativa de reencontrar um não-lugar como alvo dessa aspiração.

Pareceu-nos importante trazer estas precisões para mostrar a diferença entre as posições de Winnicott e as dos kleinianos. Mas a especificidade do que ele nos traz resulta, evidentemente, de sua contribuição referente aos objetos e fenômenos transicionais:

• porque são objetos que se encontram no limite entre o dentro e o fora;

• são os objetos que criam a categoria à qual eles pertencem: a transicionalidade, uma espécie de ultrapassagem da posição clássica dentro-fora e das características primárias e secundárias;

• eles são mais criações do que representações;

• sua originalidade refere-se a que eles remetem ao objeto de tal maneira que eles são e não são esse objeto;

• estão muito ligados à capacidade do brincar;

• não podemos dizer – aliás, nem pensamos em colocar a questão – se eles foram encontrados ou criados. eles foram encontrados porque não saberiam ser criados se já não estivessem lá, e foram criados porque sua descoberta não corresponde à sua percepção e eles testemunham uma elaboração imaginativa;

• têm uma existência de duração limitada;

• constituem a primeira possessão não eu;

• sua invenção resulta de uma viagem a partir da realidade interna em direção à realidade externa; são o testemunho de uma forma de criatividade de suporte e são sustentados pelas atividades do brincar do psiquismo;

• suas ausências ou enfraquecimentos podem influenciar o desenvolvimento de uma maneira negativa;

• remetem ao paradoxo do estado subjetivo oposto à condição dos objetos objetivamente percebidos;

É claro que estamos diante de um modo de ligação particular que tem conseqüências sobre o desenvolvimento da atividade simbólica e sobre a possibilidade de dar conta de certos aspectos da virtualidade e do tratamento dos objetos ausentes. Na verdade, não existe nada na clínica dos autores kleinianos que permita conceber tais idéias. A aplicação desses dados à situação analítica coloca em evidência o aspecto do brincar na análise das estruturas não-psicóticas e o enfraquecimento dessa dimensão na clínica dos estados limite e, de maneira mais geral, em estruturas não neuróticas.

É importante, porém, termos em mente todas essas características para invocar a existência de uma transicionalidade analítica que se torna discutível quando somente algumas delas estão presentes. Podemos falar também, nesses casos, de uma tentativa de transicionalidade quando faltariam a dimensão lúdica fundamental e seus aspectos plásticos (pensemos no squiggle de Winnicott). É interessante, porém, colocar em perspectiva as descrições de Bion e Winnicott. Poderíamos dizer que Bion assume a situação lá onde a transicionalidade não consegue se constituir, e leva, ao menos na concepção dos analistas kleinianos, a uma espécie de confrontação violenta, da qual as estruturas psicóticas são o resultado, testemunhando assim a vitória da destrutividade no conflito com as pulsões, na busca de ligações referentes ao objeto. Parece necessário dispor de certa flexibilidade dinâmica interpretativa para poder avaliar melhor a capacidade que ainda possuem as pulsões não-destrutivas. Seria com certeza imprudente desprezá-las completamente, mesmo sendo indiscutível que nas psicoses é a um resultado desse tipo que assistimos nas evoluções que não puderam ser freadas em direção à regressão.

Porém, há uma última questão que nem sempre é bem recebida: Em que medida o modo de compreensão e de decodifi cação interpretativa do analista intervém na compreensão do quadro clínico que, certamente, deve dar importância às formas desorganizadoras da vida pulsional e ao papel importante das defesas não-neuróticas? Enfim, uma idéia de Winnicott que apresenta uma fecundidade teórica misteriosa e que, aparentemente, abre perspectivas inesperadas:

Voltando aos estados mais precoces, chegamos a uma fusão completa do indivíduo com o entorno, fusão que subentende a expressão “narcisismo primário”. Entre esta e as relações interpessoais existe um estado intermediário muito importante: Trata-se de uma camada como que feita de substância materna e de substância infantil, camada que temos de reconhecer entre a mãe que carrega psiquicamente o bebê e o bebê. Existe algo de louco a sustentar desse ponto de vista e, portanto, deve ser sustentado.

Bion e Winnicott são os principais inspiradores do pensamento que concerne às estruturas não neuróticas e que ainda esperam por novos desenvolvimentos.

 

Brusset

Existe na posição de Brusset um importante suporte lógico — aquele que parte da metapsicologia da ligação para concluir pela necessidade de uma terceira tópica.

Em vez de fazer uma crítica ao seu trabalho, tentei juntar em meu espírito o que me pareceu constituir um agrupamento dos casos que ele aborda: falo das estruturas não-neuróticas das quais escolheu manifestamente, nesse campo que é tão vasto, as formas que estão mais próximas à psicose.

Fazendo as críticas das teorias da relação de objeto, Brusset atém-se a um ponto essencial: os elementos da coerção, da força, da energia que caracterizam a pulsão freudiana já não são considerados nas teorias mais recentes. Ele acredita que devemos ser fi éis a esse ponto de vista, e eu compartilho com esse sentimento. Os dois casos que ele nos expôs evidenciam que esse é um aspecto ao qual não podemos escapar.

Constato uma dominância do investimento hostil, sem que ele atinja o extremo das formas da clínica de Bion. A libido talvez esteja presente de forma disseminada, parcelada, mas não ainda organizada como tal. Uma frase do relatório de Brusset pareceu-me reveladora. Foi retirada dos primeiros escritos de Freud sobre a psicose de 1911: “[…] se a libido é retirada da representação de objeto, ela não é mais percebida como interior, mas como exterior, quer dizer, como uma percepção” (trata-se aqui do caso Schreber, e a afirmação massiva refere-se sem dúvida às alucinações). “O quantum de afeto retirado da representação encontra-se, por um lado, na crença de uma falsa percepção alucinatória e, por outro, na hostilidade em relação ao objeto que Freud explica através da percepção endógena do desinvestimento libidinal”.

A questão do desinvestimento libidinal pode não ser aparente. É importante não confundir um funcionamento insistente – uma compulsão a repetição – com um investimento libidinal. É o que Freud nos ensina, e Federn dirá quase a mesma coisa (citado por Brusset em seu relatório). Ele fala da maneira como o ego se retira da percepção que, de alguma forma, fi ca privada de sua fonte sexual ligada e ligante. É com certeza o que Bion quer dizer quando fala da tenuidade das relações de objeto.

A noção de investimento caracteriza para Freud a ligação, no sentido de que aquilo que é ligado permite ao sujeito reconhecer uma pertinência entre ele e o que ele investiu. Se essa ligação, por uma razão ou por outra, encontra-se comprometida, ela pode ser marcada, dependendo do caso, pela indiferença e até mesmo pela hostilidade; como se, nesse momento, a posição de reserva e de desconfiança afetasse a ligação com o objeto. Essa tonalidade agressiva insidiosa parece-me característica da clínica de Brusset. É claro que ele diz ter estabelecido uma relação de confi ança com o paciente, que aceita sua ajuda através da divisão da transferência e das circunstâncias do setting. São, entretanto, apenas condições mínimas que se impõem ao analista como uma atitude prudente, evitando grandes aproximações.

Esta relação, que parece cuidadosa com o analista, não muda a natureza das ligações com o mundo externo. Brusset considera relevante o destino das manifestações psíquicas fora da representação, ou aquém da representação, e assinala a importância do funcionamento em exterioridade. Ele próprio se vê obrigado a trabalhar na exterioridade, visto que não interpreta a transferência. É possível que essa área de silêncio compartilhado permita uma espécie de liberdade que limitaria os dados comprometidos por uma proximidade muito grande. Talvez seja nesta troca que se estabeleça um paradoxo para o qual eu não encontro uma solução: Como pode haver conflituosidade psíquica, sendo que o estado interno, de certa forma, a elimina (negativiza): traços de uma conflituosidade atenuada ou de um discurso possível a partir de uma relação de objeto neutralizada. Porém, ao invés de ratificar essa negatividade, talvez seja melhor procurarmos fórmulas que, sem atacá-la, dêem a impressão de deixar o discurso do paciente em suspenso, como se evitássemos analisar sua natureza delirante. Não creio que possamos assimilar esse funcionamento na exterioridade a um funcionamento perceptivo. Penso que aquilo com que estamos confrontados não atinge níveis de uma neo-realidade delirante, mas constitui uma espécie de tela entre uma interioridade projetada e a exterioridade propriamente dita. Na minha compreensão, trata-se de organizações que pedem uma elaboração, uma espécie de transicionalidade negativa, e são dependentes, como Bion havia descrito, de funcionamentos de tipo predominantemente narcísico.

Aqui não estamos tratando simplesmente de remeter Christine a certos dados essenciais, à ordem da regressão melancólica ou da identificação ao pai. Gostaria de observar que o trabalho analítico só pode começar efetivamente com a alucinação do formal. A potencialidade alucinatória estava lá desde o começo, e travestindo um material que não fazia alusão a ela. Por exemplo, Christine tinha uma capacidade onipotente de estabelecer relações entre o mundo e sua subjetividade, eu pensei que ai ela, mesmo se nos fica difícil admitir esta idéia, através de seu delírio de perseguição estabelecia contatos entre os objetos, ocupando o espaço do contato que era proibido nas relações entre seu pai e ela. Não saberemos, portanto, fazer o impasse sobre este funcionamento extensivo, invasor e interpretar o retorno intocável sob a forma de ligações delirantes. Da mesma maneira, o delírio de Christine toma formas exibicionistas, que forçam a realidade a revelar seus conteúdos ocultos assim como uma dramatização: a cerimônia com o Presidente, toda em negro, acompanhada de seus acólitos, todos rijos na imobilidade, vestindo luvas negras até os cotovelos.

Esta visão macabra, um pouco teatral, análoga à teatralidade da fantasia, parece contribuir para aparência alucinógena, associando as idéias de morte em coexistência com as idéias de vida ou fixando uma reminiscência (taxidermia do hamster de um amigo), que podia facilmente relacionar-se com a rã que ela dessecou; enfim, o crucifixo com Cristo esquartejado, aliás, é uma palavra chave, ela é freqüente no texto. De onde provém esse desmembramento, no qual não basta imobilizar o animal com a intenção objetiva da dissecação, mas é preciso transformá-lo em pretexto para fantasias sádicas, em que cortar o corpo do animal é o efeito de moções pulsionais que passam de um contato forçado ao sadismo e a fragmentação da unidade? Fantasmas dissimulam o tratamento reservado ao corpo do pai?

Brusset aponta a identificação com o pai na cena primitiva, o reverso do que acabo de dizer. Portanto, gostaria de passar ao seguinte aspecto. Se com freqüência o Édipo falta nessas formas tradicionais, a cena primitiva não falta nunca, como indicam os exemplos de Bion. Sua erotização destruidora é disfarçada. Se ela não passa despercebida, não podemos ter certeza que seja posta em ligação. Ela tem uma violência extrema, e a primeira reação de rejeição dessa paciente é o assassinato. A idéia de assassinato. A que corresponde esse assassinato? É claro que não corresponde apenas a uma pulsão agressiva; esta existe de toda maneira, mas a um assassinato no espaço psíquico onde ela não encontra mais lugar es desse ponto de vista, ficam em suspenso muitas questões que não são colocadas. Winnicott localiza a psique no espaço corporal, mas a realidade encontra-se fora do corpo. Onde então é cometido o assassinato?

Da mesma maneira, quando Bion fala da capacidade de rêverie da mãe, ou da dupla rêverie do paciente e de sua própria, ele faz alusão a um espaço de não-coisas. Como um espaço de coisas chega a transmutar-se em um espaço de não coisas, aqui é todo o trabalho do negativo que está em jogo, e que só deixa à disposição do psicanalista elementos fragmentados que sobreviveram à destruição. Mas, enfatizando o papel do narcisismo, gostaria de insistir sobre um de seus aspectos: A questão do duplo investimento. No trabalho de Brusset, existe um ponto onde cada vez que chegamos a um início de movimento, esse processo aparece. Como poderia um movimento não modifi car as relações espaciais? Como Brusset nos mostrou, penso que a idéia de mudança de espaço é pouco discutível.

São idéias a posteriori, e procuramos dar a elas uma função teórica. Penso que a função do duplo investimento é um desses aspectos; quero dizer, quando, por exemplo, Laura6 imagina alguma coisa como sendo uma expulsão, aparece imediatamente, e não uma representação; estaria mais para uma formação em eco, uma saída que se produz automaticamente em relação a uma forma indeterminada que nem mesmo é uma representação. e que comporta uma idéia de movimento: ela é ao mesmo tempo ela mesma e o que acontece com a mãe, a quem retiramos alguma coisa, como a ela própria. Trata-se de uma forma automática de reflexividade que se refere menos a um objeto de revés (exemplo passividadeatividade) que a um investimento simultâneo do eu ou do objeto, onde se perde a noção de agente causal e de objeto submetido à ação.

Pelas razões que já expus, tenho dificuldade de falar de transicionalidade no caso de Laura que desenha em cascas de ovo. O que me parece essencial não é o que lhe trás tranqüilidade, mas sim o que permanece uma inquietude. Penso que a gravura é somente um modo de assegurar o controle da não-penetração, que é, claramente, uma angústia que lhe diz respeito, como traduzem suas angústias corporais de explosão e de desmoronamento. O que me parece importante é que ela seja obrigada a esvaziar os ovos, sendo que dizemos: “é o que existe de vivo”. Não, não é somente onde existe vida; parece-me que o que esta paciente faz é esvaziar o corpo de seu conteúdo perecível. É a questão do apodrecimento, da putrefação, que nela está ligada não à imagem que tem de seu corpo, mas ao sentimento que tem de seu corpo. Aliás, quando Brusset lhe propõe uma interpretação que, lhe parece, deveria ser aceita sem dificuldade, dado que ela já admitiu que esvaziar os ovos corresponde a esvaziar seu corpo e esvaziar seu ego, no momento em que ele sugere que ela poderia adormecer como um bebê sobre o corpo de sua mãe ela diz: “Não! Não, eu não quero ser uma minhoca.” E quando ele lhe diz: “Você esvazia-se de seu corpo”, ela protesta: “Não, eu me sinto vazia, eu sou vazia”. Existe uma reivindicação – que chamei de narcisismo negativo – que pode ser associado aos vermes devoradores post mortem, e que encontra aqui, a meu ver, uma ilustração particularmente eloqüente.

O que Brusset faz com esses pacientes é excepcional, pois consegue obter resultados que não podem ser negligenciados, e consegue também que a paciente em questão admita ter relações sexuais e uma ligação forte com um homem. Não tenho certeza que possamos atingir um resultado desta natureza com um setting clássico.

Coloca-se a questão de que talvez a pulsão seja um elemento teórico muito mais organizado do que pensamos. É verdade que há um mistério aqui. É verdade que temos a impressão de que, em todas as situações, existe um funcionamento pulsional difuso, e que não chega a uma concentração ou a uma especifi cação através dos alvos da pulsão. Talvez o que devamos levar em conta é alguma coisa que falhou na relação entre as zonas erógenas e a pulsão. Penso que é através das zonas erógenas que vemos a pulsão adquirir essa qualifi cação, essa especialização. O que chama atenção em alguém como Laura, e penso que Brusset percebeu isso, é que defi nitivamente encontramos seqüelas da anorexia, dado que suas angústias aumentam segundo a progressão comum do prato de comida. É no momento em que nos aproximamos da parte abaixo do ventre que a confusão entre analidade e vagina se manifesta. O que se refere à vagina estende-se a todo o seu interior, e nesse momento intervém o olhar ávido oro-especular, que permite a alucinação negativa de salientar a realidade do vazio que a faz se sentir em perigo de morte. É aqui que o monstro pode devorá-la inteira e, sem querer fazer uma análise superfi cial das coisas, parece-me que a sexualidade toma uma forma perigosa, pois nós recaímos sobre os problemas da cena primitiva e dos dois aspectos desta: a mãe castradora do marido e o marido assassino da mãe.

O conceito de ligação, do qual nós vimos as transformações de Freud, Bion e Winnicott, não é uma associação problemática com a tópica. Afi nal de contas, a primeira tópica é a conseqüência da descrição dos processos primários e secundários. Os arranjos impostos devido ao abandono da referência ao inconsciente em favor das moções pulsionais e das diversas formas de ligação que elas estabelecem caminham lado a lado com a defesa da segunda tópica que, se relembrarmos, não foi aceita sem debate. Brusset mostra que certas estruturas psíquicas não são padronizáveis segundo as duas primeiras tópicas, mas sim diante de uma escolha Ou nos atemos a esta constatação ou tentamos imaginar uma terceira tópica baseada na ligação, com formas que não podem ser compreendidas ou teorizadas por nenhuma das instâncias das tópicas precedentes. Essa é a opinião de Brusset. Será que isso justifi ca introduzir esse novo modelo?

É um argumento pobre dizer que o interesse por uma terceira tópica seria uma particularidade francesa. O que faríamos então de Freud, que salienta com razão a pertinência deste ponto de vista? Como conservar a referência a um espaço psíquico sem a preocupação de um aparelho heterogêneo nas modalidades de relação dos espaços psíquicos constitutivos? Temos a dimensão das conseqüências nefastas deste abandono?

Responderei primeiro que falta demonstrar a possibilidade do conceito de ligação satisfazer plenamente a caracterização dessas formas, e eu me indago se outras características tão específicas quanto essas não deveriam entrar em jogo em suas defi nições. Aqui poderíamos remeter Brusset a Bion, cuja tentativa de interpretação parece a mais completa.

Mas podemos opor a Brusset um argumento de peso: Uma verdadeira tópica distingue e põe em relação vários tipos de espaços psíquicos e de ligações. Devemos então considerar que estamos diante de uma tópica mínima, constituída de um espaço binário, positivo ou negativo, por caracterizar somente um espaço originário a partir da ligação elementar? A questão fica em suspenso.

 

Referências

Bion, W. R. (1983a/1959). Attaques contre le lien. In Réflexion faite. (Trad. F. Robert.) Paris: PUF.        [ Links ]

____ (1983b/1957). Diff érenciation des parties psychotiques et non psychotiques.        [ Links ]

Freud, S. (1957/1950 [1887-1902]). La naissance de la psychanalyse. Lettres à Fliess. Notes et Plans (1887- 1902). (Trad. A. Berman.) Paris: PUF.        [ Links ]

____ (1967 [1900]). L’interprétation des rêves. (Trad. D. Berger.) Paris: PUF.        [ Links ]

____ (1978/1940 [1938]). Abrégé de Psychanalyse. (Trad. A. Berman; rev. J. Laplanche.) Paris: PUF.        [ Links ]

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____ (2004/1973). Le discours vivant. Paris: PUF, Quadrige.        [ Links ]

Klein, M. (1966/1946). Notes sur les mécanismes schizoïdes. In Développements de la psychanalyse. Paris: PUF.        [ Links ]

Winnicott, D. (1990). La nature humaine. Paris: Gallimard.

 

 

Endereço para coorespondência
André Green
9 rue de l’Observatoire
75006 – Paris – France

 

 

1 Título original: Repérage originaire et transformations du lien de Freud à Winnicott. Tradução: Patrícia B. Pereira Leite (candidata da SBPSP), com RBP.
2 Membro titular da Société Psychanalytique de Paris.
3 Na tradução de Denise Berger, não se fala de “ligação” [lien]. Em vez disso, “terá graças à relação estabelecida, o desencadear de uma impulsão…” (p. 481). A tradução das Obras completas diz: “Irá se produzir graças à conexão estabelecida…” (OC, IV, p. 620). Portanto, “ligação” [lien] (minha tradução), “relação estabelecida” (D. Berger), “conexão estabelecida” (OC) enquanto que aquilo do qual eu parti diz expressamente “ligação”: “The link that has thus been established” (V, p. 565). Mas o essencial continua sendo a existência de duas séries que devemos colocar em relação nos quadros clínicos nos quais podemos nos referir ao desejo na origem de duas séries pré-conscientes ou inconscientes e conscientes.
4 Salvo algumas exceções, em geral apoiadas no duplo sentido das palavras e na sua ligação com a língua ou com o signifi cado inconsciente.
5 Poderíamos levantar a hipótese de uma oposição dedutível entre o sistema da memória e o do desejo (cf. Bion, 1983, p. 162).
6 Caso já publicado na psicopatologia da anorexia mental (Brusset, 1998).

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