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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

TERCEIRA TÓPICA?

 

A linha da justaposição dos limites neurótico e psicótico nos pacientes borderline

 

La línea de yuxtaposición de los límites neurótico y psicótico en los pacientes borderline

 

The line of juxtaposition of the neurotic and psychotic limits in borderline patients

 

 

Josette Czerny1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No estudo de casos borderline, observamos uma deficiência primária narcísica que posteriormente sofreu um traumatismo grave, levando a uma modificação na vida existencial e relacional do paciente. Nossa hipótese é de que há afundamento do pré-consciente e conseqüente deficiência de suas funções, com a aproximação dos limites extremos do funcionamento não-psicótico e psicótico, configurando uma linha virtual de alta turbulência, resultante dessa justaposição. Os pacientes permanecem imobilizados nessa linha, com deficiências principalmente das funções do pré-consciente e do ego, com empobrecimento dos vínculos objetais internos e externos.

Palavras-chave: Linha; justaposição; Narcisismo; Limites; Pré-consciente.


RESUMEN

En el estudio de los casos borderline observamos que se trata de una defi ciencia primaria narcissista que posteriormente sufrió un traumatismo grave llevando a una modifi cación en sua vida existencial y de relacionamiento. Nuestra hipotesis es que hubo un hundimiento del preconsciente con consecuente deficiencia de sus funciones, con aproximación de los limites extremos del funcionamento no-psicótico e psicótico configurando una línea virtual como resultado de esta yuxtaposición. Los pacientes permanecen imobiles en esta línea, de alta turbulencia, con deficiencias principalmente de las funciones del preconsciente e del ego, con empobrecimiento de los vínculos objetales internos y externos.

Palabras clave: Línea; Yuxtaposición; Narcisismo; Límites; Preconsciente.


ABSTRACT

In the study of boderline patients we observe that they present a narcissism primary deficiency that aft erwards suff er an intense traumatism that lead them to a modification of their existencial and relational life. Our hypothesis is that occurs a sinking of the preconscious space, with functional defi ciencies, with an approach of the extreme limits of the non-psychotic and psychotic functions. Th e result is a virtual line, with high turbulence. Th e patients remain immobilized on this virtual line, with preconscious and ego deficiency. They present impoverishment of their internal and external objectal links.

Keywords: Virtual line; Juxtaposition; Narcissism; Limits; Preconscious.


 

 

É preciso apenas um mínimo de luz para acender uma centelha no escuro.

 

Introdução

O 66º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), realizado em Lisboa em maio de 2006, estuda com profundidade a metapsicologia do vínculo. Busca esclarecer principalmente na obra de Freud – mas também em tantos autores citados, como Winnicott, Green, Bion e outros – o modelo da pulsão, as relações de objeto, o intrapsíquico e o intersubjetivo, com foco no estudo dos estados-limite que demandam uma compreensão maior e profunda.

No relatório “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?” [“Métapsychologie du lien et ‘troisiéme topique’?”], Bernard Brusset faz uma extensa e valiosa revisão das contribuições psicanalíticas mais pertinentes, visando teorizar um entendimento funcional existencial e mental, peculiar e comum aos estados-limite. Propõe: “esta clínica do entre-dois pode iluminar e ser iluminada em certos casos favoráveis pelo que está em jogo em análise da ordem do que eu proponho de reagrupar sob a designação de ‘terceira tópica’”2 (p. 59).

Entendo que B. Brusset busca reagrupar os elementos do funcionamento intrigante desses pacientes em um espaço psíquico próprio, entre os limites extremos do funcionamento neurótico e do funcionamento psicótico, espaço mental que propõe como uma “terceira tópica”.

Quem são esses pacientes que chegam à nossa clínica, pessoas difíceis de identificar? Antonio, ele próprio borderline, apresenta as palavras de um analisando nas suas identificações projetivas: “Pessoas fronteiriças, que estão sempre no lusco-fusco, que não dá para identificar bem, que às vezes são bem perturbadas, loucas… mas que enganam bem os outros… mas que tiram vantagens…”.

Não creio que os pacientes apresentados no relatório de Brusset, assim como os casoslimite com que tenho trabalhado na clínica, estejam funcionando psiquicamente dentro de um terceiro espaço – o que justificaria a terceira tópica. Entendo, até o presente, que esses pacientes impactantes, perturbados e perturbadores na sua dinâmica existencial e psíquica, se encontram quase imobilizados, agarrados a uma linha (os borderline) – linha do encosto dos limites extremos do funcionamento psíquico não-psicótico e do funcionamento psíquico psicótico. Ou seja, uma linha virtual, da justaposição desses limites, e da máxima turbulência mental.

Esses pacientes limítrofes querem sobreviver, e para isso usam todos os recursos para agarrarem-se com força a essa linha, já que não possuem recursos maiores. Não se sentem com mais valor (não têm o narcisismo mais constituído, mais fortalecido) para:

• Voltar-se para o limite neurótico, adentrando esse espaço do funcionamento nãopsicótico contando com um narcisismo suficientemente construído para tolerar frustrações, mágoas e eventuais fracassos, para tolerar também as vicissitudes da realidade do mundo externo.

• Agüentar manter-se agarrados à linha dos limites e correr o risco de despencar pelo lado do limite psicótico adentro e se despedaçar, se desestruturar.

Uma paciente borderline que sentia não agüentar muito mais tempo “viver” na linha, com angústia permanente, já quase insuportável, e não se percebendo com mais recursos para usar e se mover adentrando o limite neurótico, falava assim:

a única maneira de eu continuar viva seria morrer e doar meus órgãos a outras pessoas, que irão vivendo graças a eles. Doar os olhos a um cego, o coração a um cardiopata final, os rins para um nefropata etc.

A paciente sentia que não agüentava mais tanto sofrimento pelo impasse na linha, e sua dessubjetivação (morte legal e física de seu ser) levaria a fragmentos, pedaços de si (os órgãos) que poderiam continuar “vivendo” em outros sujeitos. O quanto ela queria sobreviver!

Brusset (2005, p. 58) cita a formulação surpreendente de Beckett:

talvez seja isso o que sinto, que tem um fora e um dentro e eu no meio, talvez seja isso que eu sou, a coisa que divide o mundo em dois, de um lado o fora, do outro o dentro, isso pode ser fino como uma lâmina, eu não estou nem de um lado, nem do outro, estou no meio, eu sou a cerca, tenho duas faces e nada de espessura, talvez seja isso que eu sinto, me sinto o que vibra, eu sou o tímpano, de um lado é o crânio, do outro o mundo, eu não sou nem de um nem do outro (S. Beckett, L’ Innommable).

Neste momento, a questão maior que se impõe é definir se nos casos-limite trata-se de um estudo dos limites dos estados neurótico e psicótico na sua justaposição, configurando uma linha virtual. E por que e como essa dinâmica patológica acontece. Ou se, como Brusset entende, trata-se do estudo de um estado peculiar, primordialmente com patologia do vínculo e funcionando num espaço próprio, que ele propõe como terceira tópica.

Na minha experiência clínica tenho observado nos pacientes limítrofes a contigüidade de comunicações ora neuróticas, ora psicóticas, como se elas fossem emitidas lado a lado, apenas como expressões superfi ciais, aparentemente sem carga emocional. Por vezes um discurso “sem vírgula” ou um corte com a interferência de idéias delirantes, por vezes uma alucinação de curta duração, sem parecer que o paciente esteja verdadeiramente em estado alucinatório. E então silêncio, ou melhor, uma parada das emissões, e o paciente todo voltado para perscrutar a minha reação. Evidentemente não se trata do silêncio com qualidade de recolhimento, para dentro de si, no contato com o mundo interno, porque não percebo nenhuma emoção presente que possa dar início a encontrar algum significado. Quantas vezes eu fico impactada e perplexa.

No Brasil, encontramos um modelo natural vivo e impactante conhecido como “encontro do rio Negro com o rio Solimões”. Entretanto, não se trata de um encontro de frente, “face a face”, dos dois rios, e sim de um trecho onde as águas de rios diferentes, de cores e correntes diferentes, vindos de fontes e direções diferentes, correm lado a lado, num contraste tal que configura uma linha formada a partir de suas beiradas. A linha com o fenômeno conhecido como pororoca, de alta turbulência, com redemoinhos que podem puxar para o fundo o que está na superfície. Os visitantes costumam ficar fascinados e cativados pelo espetáculo raro de forças arrebatadoras e perigosas, que possivelmente encontra eco dentro deles mesmos, por já terem vivenciado experiências dessa natureza.

Anos atrás, ao pesquisar esses casos limítrofes, bastante freqüentes hoje na clínica, tive a oportunidade de ler uma peça de teatro que ilustra com riqueza inigualável o funcionamento dessas pessoas na sobrevida. Faço uma síntese da peça de teatro.

Henrique IV, de Luigi Pirandello (1957)

A peça trata de um jovem rico no início do século XX, que vive numa mansão, sempre rodeado de outros companheiros que se benefi ciam das festas que ele propicia. Numa reunião, eles decidem organizar uma grande festa à fantasia para o carnaval. O jovem escolhe o grande imperador trágico do século XI, Henrique IV da Alemanha. Todos se fantasiam à moda da época e se preparam para uma cavalgada histórica, “babélica” (p. 23). Os participantes, devidamente aparamentados sobre os cavalos, saem para a cavalgada planejada; à frente o jovem como Henrique IV e ao lado uma amiga fantasiada de marquesa Matilda da Toscana. Ocorre então o fatídico acidente em que o jovem protagonista sofre uma queda do cavalo, permanecendo desmaiado, estendido entre as patas do animal. A cavalgada pára e ele é carregado para a mansão… só retoma a consciência após alguns anos, ainda como Henrique IV. Pirandello mostra, através do personagem, que a “perda” de tempo e de vida é intolerável para aquele homem. Assim mortificado, ele permanece fixado até o fim no papel de Henrique IV, exigindo implicitamente que as pessoas à volta continuem também fixadas nos personagens fantasiados, no passado, na representação de carnaval. Algumas falas da peça nos revelam alguns mistérios que explicam por que esse homem, mesmo lúcido, ficou preso ao personagem de imperador, fantasia de antes da queda que mudou toda a sua vida.

…e não ver mais nada […], de tudo que tenha acontecido desde aquele dia de carnaval; de tudo o que aconteceu para vocês, mas não para mim; não ter visto as coisas mudarem, meus amigos me traírem, meu lugar tomado por outros… não saber mais quem morria, quem desaparecia… tudo isso não foi uma brincadeira para mim, como pode imaginar! (Henrique IV, p. 72)

Quando eu percebi, um belo dia, quando reabri os olhos […] fiquei apavorado! Entendi logo que não apenas meus cabelos, mas que tudo ficara cinzento, que tudo desabara, que tudo estava acabado e que eu chegara com fome de lobo a um banquete já terminado […] havia todos aqueles que continuaram a se banquetear e que teriam me dado apenas restos, marquesa, os restos de uma compaixão magra, mole, os restos de seu prato sujo, com alguns espinhos de remorsos grudados no fundo. Obrigado! […] eu preferi ficar louco! eu encontrava aqui tudo preparado, tudo disposto para essa delícia de um novo tipo, a delícia de viver a minha loucura – com a mais lúcida consciência – e de me vingar assim da brutalidade de uma pedra que afetara meu cérebro! Minha solidão – a pobreza e o vazio da solidão –, que apareceu para mim quando voltei a abrir os olhos – eu quis revesti-la imediatamente de todas as cores, de todos os esplendores daquele dia de carnaval passado com vocês. […] Obrigar todos aqueles que se apresentavam a mim a continuar do mesmo jeito que eu, a seguir aquela famosa mascarada que foi para vocês – mas não para mim – uma brincadeira de um dia! Fazer ela se tornar para sempre não mais uma brincadeira, mas uma realidade, a realidade de uma loucura verdadeira. (p. 73)

Já que eu sou eu mesmo Henrique IV há vinte anos, aqui, entendem? Imóvel sob esta máscara eterna! (p. 76)

As últimas palavras do personagem de Pirandello são:

Todos venham perto de mim, nós vamos permanecer aqui juntos, juntos aqui, e para sempre… (p. 77)

De início vemos que se trata de um jovem com falha no narcisismo e que precisa estar constantemente rodeado da presença bajuladora de outros para nutrir sua auto-estima. Com a queda do cavalo, sofre mais um golpe em seu narcisismo fraco. Passa-se um longo tempo até ele voltar à consciência, e imediatamente percebe a perda de tempo e de vida, o que lhe é absolutamente intolerável. Prefere então “sobreviver”, meio lúcido, meio louco, permanecendo na linha desses limites, sem recursos próprios para lidar com a ferida narcísica mortífera, ou melhor, com a mortificação. Ele segue, até o fim, sustentado pelo ambiente ao mesmo tempo que ignora o ambiente. Entendo esse personagem de Pirandello como os pacientes limítrofes da clínica: eles “perderam o trem da vida”. E encontro neles alguns parâmetros constantes que chamam mais a minha atenção.

 

Tópicos relacionados à patologia borderline

Em relação ao narcisismo:

No trabalho “Sobre o narcisismo: Uma introdução”, lemos: “Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fi m de provocar o narcisismo” (Freud, 1914/1987, p. 93).

• Brusset, no relatório, cita Serge Lebovici:

O infante faz a experiência de ser investido antes de perceber o objeto. O recém-nascido investe o investimento da mãe antes de percebê-la.

• No “Esboço de psicanálise”, encontramos:

decidimos presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo (Freud, 1940/1987, p. 173).

[…] o ego, no qual, a princípio, toda a cota disponível de libido é armazenada. Chamamos a este estado absoluto de narcisismo primário. Ele pendura até o ego começar a catexizar as idéias dos objetos com a libido, a transformar a libido narcísica em libido objetal. Durante toda a vida o ego permanece sendo o grande reservatório, do qual as catexias libidinais são enviadas aos objetos e para o qual elas são também mais uma vez recolhidas […] (Freud, 1940/1987, p. 176).

Relacionando esses conceitos, podemos supor que a mãe suficientemente boa oferece a seu bebê um investimento libidinal favorável para a formação da sua auto-estima e para o desenvolvimento do ego (narcisismo primário) e posterior relação libidinal objetal (narcisismo secundário).

• Nos pacientes borderline encontramos:

Num primeiro tempo, fragilidade do envelopamento narcísico primário, muitas vezes acrescida de um investimento hostil, deformante, que leva à formação de um narcisismo deficiente, fraco e disforme, o que constitui uma patologia do narcisismo. No entanto, tais pacientes seguem vivendo prejudicados por suas limitações.

É num segundo tempo, quando vêm a sofrer um ataque traumático ao narcisismo já debilitado, que eles “caem” abatidos pela ferida mortífera ao self. Conseqüentemente, permanecem imobilizados, humilhados e aprisionados a uma sobrevivência existencial e relacional modificada, empobrecida e, em certos casos, até mesmo desértica.

Em relação ao vínculo:

Após o acidente traumático ao narcisismo do sujeito, a libido é retirada dos vínculos das representações de objetos tanto internos como externos, num retraimento ao narcisismo primário. Se a libido é retirada da representação do objeto, tanto interno como externo, ele passa apenas a ser percebido ou não. A fragilidade dos vínculos intrapsíquicos leva a pessoa a se prender excessivamente ao objeto concreto externo, vivendo com muita angústia um funcionamento intolerável quanto às fantasias: caso se afaste do objeto externo, sofre uma perda de sua base de sustentação para viver; caso fique grudada ao objeto externo, sofre a invasão, a intrusão do objeto, e conseqüentemente perde a representação de si mesma, com risco de despersonalização. Nos casos-limite, a instabilidade dos vínculos aos objetos internos e externos e a instabilidade de representação de si mesmo se associam, o que leva o sujeito a viver sob a ameaça de perda de objeto e de perda da representação.

Em situações limítrofes mais graves, tentando se agarrar ainda à linha neurótico-psicótica, sofrendo as mais altas turbulências, com risco de psicotizar francamente, observamos uma suposta alienação em relação ao mundo interno e ao mundo externo, e entendemos que se trata de manter as funções relacionais no nível mínimo de tensão, já que a demanda para a sobrevivência consome o máximo da libido disponível para esse fim. A pessoa pode sobreviver, mas não agüenta nenhuma outra solicitação interna ou externa que levaria a uma sobrecarga trágica. Refugia-se então num funcionamento mecânico, compulsivo, de preferência em contato com objetos inanimados (computadores, livros etc.).

Em relação ao pré-consciente:

• No “Esboço de psicanálise”, lemos:

O processo de algo tornar-se consciente está, acima de tudo, ligado às percepções que nossos órgãos sensoriais recebem do mundo externo. Do ponto de vista topográfico, portanto, trata-se de um fenômeno que se efetua no córtex mais externo do ego.

O interior do Ego, que encerra, acima de tudo, os processos de pensamento, possui a qualidade de ser pré-consciente. Esta é característica do ego e só a ele pertence.

Descobrimos que os processos no inconsciente ou no id obedecem a leis diferentes daqueles do ego pré-consciente. Denominamos essas leis, em sua totalidade, de processo primário, em contraste com o processo secundário, que dirige o curso das ocorrências no pré-consciente, no ego (Freud, 1940/1987, p. 187, 188 e 190).

Destacamos a importância do pré-consciente como espaço de eventuais formações, construções e transformações – verdadeiro laboratório do desenvolvimento psíquico –, passando de processos primários (inconsciente e id) para processos secundários (pré-consciente e ego), formação de pensamentos e simbolização. O pré-consciente é a via régia do sonho, que se dá no sono paradoxal, imediatamente antes do despertar, portanto no limite do pré-consciente com o consciente, provocando assim o interesse das funções conscientes pelos conteúdos oníricos pré-conscientes. O pré-consciente é também o espaço mental do palco da rêverie.

 

Hipótese do funcionamento psíquico borderline

Em relação aos casos borderline, a questão não é descobrir e entender o funcionamento de um espaço peculiar, com fenômenos próprios e comuns a esses casos. No nosso entender, a questão é que se trata de um espaço anteriormente funcional, o pré-consciente e o interior do ego, que se retraíram em decorrência de grave traumatismo psíquico. Portanto, esse espaço anteriormente funcional deixa então de operar na sua dinâmica – funções do pré-consciente – em decorrência de seu desabamento e soterramento.

Do ponto de vista tópico, o espaço do pré-consciente se retraiu no meio dos espaços do consciente e do inconsciente, o que leva o aparelho psíquico, na sua plasticidade, a juntar as bordas dos limites extremos do consciente e do inconsciente. Nossa hipótese é de que o retraimento do pré-consciente leva os espaços tópicos e dinâmicos a bascular pela força centrípeta, causada pelo vácuo do recolhimento do pré-consciente, e a aproximar os limites do consciente e do inconsciente até a justaposição deles.

Pensamos não se tratar de patologia do vazio, mas de retirada, retraimento do préconsciente, o que provoca deslizamento dos espaços do inconsciente e do consciente – deslizamento centrípeto com possível colabamento das bordas e dos limites extremos, e com intensa turbulência. Configura-se então uma linha virtual decorrente dessa patologia. Portanto, não se trata de pesquisar a presença de um espaço peculiar aos borderlines, mas de constatar a falta ou precariedade do espaço do pré-consciente nas funções desses pacientes. Esse acidente configura a dinâmica patológica que há muito tempo nos intriga nas pessoas borderline e nos casos-limite e estados limítrofes.

Com a falência parcial ou significativa do pré-consciente, observamos nesses pacientes a presença freqüente da equação simbólica, a falha na simbolização e nos processos secundários, a erupção de idéias delirantes, a dificuldade ou impossibilidade de se expressar verbalmente ou traduzir acontecimentos psíquicos em palavras.

 

Alguns aspectos técnicos

No atendimento aos pacientes borderline, deparamo-nos desde o início com os seguintes fatores:

a) Eles não podem comunicar-se – pela difi culdade de traduzir conteúdos psíquicos em palavras –, mas se comunicam por outros meios, numa diversidade de expressões:

• No silêncio: não por recusar-se a falar, mas por não poder falar o impensável. (Antonio, no início, repetia: “não imagina o que passa na minha cabeça…” e se calava.)

• Na expressão corporal: na postura, no corpo encolhido, nos joelhos dobrados, no olhar furtivo, no andar cauteloso ou, ao contrário, no chegar ruidoso sem percepção do ambiente… Enfi m, em tantas expressões que comunicam. Lembro que de início o ego é corporal e oportunamente costumo mencionar essas expressões comunicativas ao paciente.

b) Eles não querem comunicar-se – entrar em contato com o outro, gerador de tensão suplementar –, pois sobrevivem em estado de alta turbulência, usando as energias para manter-se na linha dos limites, num equilíbrio precário.

c) Eles buscam desesperadamente a comunicação para serem compreendidos e reconhecidos, e não apenas “aceitos”.

Por esses motivos, destacamos a personalidade do analista como condição da maior importância – não ser apenas um outro, conhecedor de teorias, neutro e com capacidade continente, mas ser o outro autêntico, verdadeiro, aparecendo ao paciente com a maior clareza possível. Assim, há possibilidade de que o paciente o perceba dessa forma e talvez, aos poucos, o reconheça como o outro confi ável.

No que se refere à parte do analista no contato com os pacientes borderline, quero destacar dois funcionamentos mentais importantes e com qualidades diferentes:

a) A rêverie, ou a função sonhante do analista com o paciente.

É uma vivência de aproximação afetiva da dupla analista-analisando, um momento de baixa tensão, que propicia na mente do analista a abertura de um espaço para acolher os acontecimentos psíquicos emocionais do paciente – ainda em estados protofórmicos – e transformá-los em imagens e cenas, que passam a adquirir no trabalho analítico um significado no psiquismo do paciente e para a dupla.

Especificamente com os borderlines, na minha experiência, a função de rêverie só ocorre depois de certo tempo de contato com o paciente. Costumo expressar a rêverie verbalmente ao paciente, no padrão do conto de fadas: uso a terceira pessoa para contar a cena, a história, que contém elementos psíquicos sonhados com o paciente e projetados no terceiro espaço analítico. A rêverie é vivida com a satisfação de criar algo significativo a dois.

b) Funcionamento pré-alucinatório do analista no contato com o paciente borderline.

Em trabalhos anteriores (Czerny, 1991) escrevi sobre a aproximação ideal do funcionamento não-psicótico com o funcionamento psicótico no analista, que pode iluminar padrões de realidade psíquica do paciente. Neste texto, gostaria de acrescentar que, nessa aproximação ideal, por fração de segundos toma lugar um funcionamento psíquico de alta tensão, pré-alucinatório, de contato com acontecimentos psíquicos ardentes, explosivos ou tóxicos do paciente. É no corte enviesado da linha dos limites neurótico-psicóticos que uma brecha mínima se abre para revelar e iluminar, como uma centelha no escuro, uma imagem de conteúdos impensáveis do paciente. Essa experiência do analista só pode adquirir um significado psíquico se ele puder contar com a capacidade de fazer metáforas, na medida em que tenha experiência desse tipo em sua bagagem pessoal.

Exemplifico: uma jovem me procura, quer tentar mais uma experiência terapêutica depois de várias tentativas. Na entrevista, fala de forma racional e se refere a sensações terríveis que carrega nela no self – soma desde pequena: tem dificuldade em tocar seu corpo e sua pele e a mente é assombrada por desfiguras terrorífi cas. Mas nada que ela possa contar com palavras, porque não tem uma referência mnêmica de acontecimentos, somente sensações e a mágoa de que as pessoas não acreditam nela, de que deve ser louca e imaginar coisas…

No final da entrevista, ainda não sei o que pensar, nada de significativo toma forma na minha mente. Na despedida, estamos ambas em pé – mas não face a face, ela está um pouco de lado e a luz da janela incide-lhe sobre o rosto – e então “vejo” por uma fração de segundos os olhos deformados, duas bolas amarelas sem pupilas, como aqueles olhos da menina do filme O exorcista, no rosto retorcido (a metáfora). Naquela fração de segundo vivi uma experiência pré-alucinatória assustadora. Evidentemente não digo nada, mantenho a calma e a acompanho até a porta. Fiquei muito receosa quanto à possibilidade de atendê-la. Iniciamos o trabalho e não se estabelecia uma comunicação. Talvez não pudéssemos prosseguir, então senti a necessidade de falar sobre “os olhos da menina do filme O exorcista. Ela fica impactada e revela que nunca quis assistir àquele filme. Entendemos que, desde pequena, ela carregava dentro de si acontecimentos estranhos, repulsivos, inoculados na mente de criança. Sofrera o traumatismo das invasões e intrusões altamente tóxicas nos vínculos primários – elas permaneceram no nível das sensações assustadoras impensáveis e, portanto, não passíveis de serem relatadas.

 

Uma ilustração clínica sintetizada

Há mais ou menos quatro anos, Antonio deixa um recado na secretária eletrônica pedindo uma consulta. Fala o nome completo e as frases são expressas lenta e educadamente, com voz suave. Menciona que foi indicado por um colega. Imaginei, pela forma e pelo conteúdo do recado, um homem entre 30 e 40 anos, talvez homossexual. Pensei que não seria fácil. No dia da entrevista, abro a porta e sofro o maior impacto: na entrada da sala está parado um homem corpulento, grande, em torno de 60 anos, com cabelo e barba brancos, a cabeça um pouco inclinada para baixo e um olhar difícil de definir – medo? vergonha? –. Vestia um grande suéter vermelho. Mentalmente me senti “caindo de costas”. Enquanto ele avança lentamente, quase como um monobloco, a imagem falada que me vem à mente é “urso das montanhas”. Ele fala baixinho que já teve várias experiências terapêuticas e que estava agora numa dúvida atroz: conhecera uma mulher poucos meses antes e estavam namorando, e “por causa da crônica”, diz ele, devia tomar a decisão de romper o relacionamento. Sente-se desesperado porque não conseguia nem romper nem seguir com o namoro. Esclareço que a crônica se revelou ao longo da análise como a configuração sem clareza de uma mulher não-identificada, acompanhada de vários homens que vinham atacá-lo ou matá-lo. Portanto, uma configuração de conteúdos delirantes persecutórios ocupa-lhe a mente havia muitos anos. A vida dele é uma repetição: aproximar-se de uma mulher por não agüentar a terrível solidão e pouco depois ter que romper por medo da invasão, da intrusão do self, com risco de perder a representação de si mesmo. Antonio gosta de visitar cemitérios, por serem lugares tranqüilos e com bela arquitetura. Passou alguns anos visitando prostitutas e bebendo em excesso, sozinho em bares, porém tinha lucidez sufi ciente para preservar seu mundo profissional. Tem grau universitário e exerce sua função num departamento do Estado, com uma atividade bem organizada e repetitiva, sem progresso na carreira. Vive sozinho num apartamento onde não recebe visitas e no qual fico sabendo que há uma cadeira, uma poltrona e uma cama de solteiro. Ele explica de forma veemente: “Na minha casa não entra mulher!”.

Quero esclarecer que na primeira sessão, quando iniciamos a análise de quatro sessões semanais, suas primeiras palavras foram: “Minha mãe estava grávida de mim antes de meus pais se casarem”. Com isso Antonio marcava uma comunicação pesada: desde os primórdios, não fora aceito nem amado. Os pais eram muito rígidos. A imagem que ele faz de si pequeno é de um menino parado numa ponta do corredor, com os pais em frente, na outra ponta, como se os dois fossem um rolo compressor que passaria por cima dele. Antonio viveu uma infância muito solitária, não podia fazer barulho, mexer-se, e sempre era criticado pelos pais. Sentia-se todo errado.

Posteriormente, a experiência do casamento foi infeliz, ele se sentia novamente sem espaço próprio, sem valor, até que decidiu divorciar-se, porque se sentia “morrendo aos poucos”. Em seguida, a ex-esposa passou a viver com outra mulher, numa relação homossexual. Antonio foi então alvo de sarcasmo, principalmente do pai, que esbravejava: “Você não é homem suficiente para segurar uma mulher!”. Nesse momento, Antonio fala com a voz grossa, a do pai. Aliás, são freqüentes suas falas com várias vozes, as vozes dos objetos através dele.

Na medida em que nos encontramos, fica protelada a urgente e vital decisão: romper ou não com a namorada. Mas como prosseguia com o namoro, abordo a questão da cama, da equação simbólica:

a cama de solteiro = cama para uma pessoa

a cama de casal = cama para duas pessoas concretamente

Troco então as palavras cama de solteiro por cama pequena, estreita, e digo o quanto deve ser desconfortável para o tamanho dele; e cama de casal por cama grande, mais espaçosa para um adulto. Ele mostra surpresa. Não tinha pensado daquela forma!

Poucos meses depois, fico sabendo por ele, mas não como uma informação direta, que deixou a namorada entrar na casa. Parecia me comunicar um passo decisivo na vida atual. Pouco depois, informa que a namorada passou a noite com ele, na casa dele. Então pergunto: “Como dormem na cama pequena?”. Para meu espanto, ele relata que dormiam no chão, colocavam acolchoados, cobertores, faziam uma espécie de cama, dormiam, e de manhã retiravam e dobravam tudo. Brinco com ele: “Uma cama mágica, aparece e desaparece, e não dá medo, é até divertido, parece um ninho desmontável…”. Ele então ri um pouco. Foram seis meses de montar e desmontar a suposta cama em algumas noites da semana. Antonio tinha criado uma nova cama (seu lado criativo), diferente das anteriores, que lhe eram sinistras. Passava da equação simbólica para o espaço transicional. Por fim, compra uma verdadeira cama grande, que pode usufruir sozinho ou com a namorada. É o início da simbolização.

Continuamos agora no quarto ano de análise e, apesar de haver da parte dele uma comunicação um pouco mais clara e explícita sobre seus conteúdos psíquicos, Antonio confunde o sentido de falar com confrontar. Explico: ele vem se queixando de algumas das atitudes da namorada. Nada de grave, e quando indago “Por que não falar com ela?”, ele emudece e por fim troca a palavra falar por confrontar. Esse lapso carrega o significado do perigo de uma comunicação face a face com o outro – não seria comunicação, seria um confronto, um duelo, uma luta de vida e morte. Quem morre ou quem vive. Conversamos várias vezes sobre esses conteúdos psíquicos antigos da mente dele, e um dia ele conta: “Eu falei com a Maria, não atravessado, de frente, e acho que foi tudo bem, ela reagiu bem”. Essa expressão não atravessado (lembro que outro paciente usou a palavra enviesado para um significado semelhante) me chamou muito a atenção para pensar sobre os meios criativos que os borderlines usam para superar suas dificuldades.

 

Conclusão

É com os pacientes borderline que temos – quando possível – oportunidade de reconhecer a riqueza dos fenômenos mentais e de buscar novas possibilidades de comunicação. E, se tivermos recursos suficientes, de nos tornar mais criativos. Trata-se de um novo fenômeno para reflexão e pesquisa e principalmente para a escuta dos nossos pacientes. Quando um paciente borderline só encontra o meio de se aproximar e dirigir ao outro por via “atravessada”, “enviesada”, e apenas excepcionalmente de frente, somos novamente levados a pesquisar por que mecanismos isso acontece.

 

Referências

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1 Membro efetivo da SBPSP. Colaboração de Lia Suzana Hintz, membro associado da SBPSP.
2 A tradução dos textos franceses é de minha autoria.

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