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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

TERCEIRA TÓPICA?

 

O somático e as experiências corporais

 

Lo somático y las experiencias corporales

 

The somatic and body experiences

 

 

Admar Horn*

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor expõe uma síntese do relatório apresentado por B. Brusset no 66º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), ocorrido em maio de 2006, em Lisboa. O tema principal é a metapsicologia do vínculo, questionando-se a necessidade de uma terceira tópica. Em seguida, o autor descreve como isso é visto na perspectiva da psicanálise psicossomática praticada no Instituto de Psicossomática de Paris (Ipso), colocando em evidência a clínica psicanalítica da sensorialidade.

Palavras-chave: Clínica psicossomática; Terceira tópica; Metapsicologia do vínculo; Sensorialidade; Função maternal do psicoterapeuta psicossomático.


RESUMEN

El autor expone una visión sintetizada del informe presentado por B. Brusset en el 66o Congreso de Psicoanalistas de Lengua Francesa (CPLF), que transcurrió en mayo de 2006 en Lisboa. El tema principal es la metapsicología del vínculo, cuestionándose la necesidad de una “tercera tópica”. En seguida, describe como todo esto es visto en la perspectiva del psicoanálisis psicosomático, practicado en el Instituto de Psicosomática de Paris (Ipso), colocando en evidencia la clínica de la sensorialidad.

Palabras clave: Clínica psicosomática; Tercera tópica; Metapsicología del vínculo; Sensorialidad; Función maternal del psicoterapeuta psicosomático.


ABSTRACT

The author exposes a synthesized vision of the report presented by B. Brusset in the 66th French Language Psychoanalysts’ Conference (CPLF), which happened on May 2006 in Lisbon. Th e main theme is metapsychology of bonding, questioning the need for a “third topic”. Next, he describes how all this is viewed under the perspective of psychosomatic psychoanalysis, practiced in the Paris Institute of Psychosomatics (Ipso) by putting the sensorial psychoanalytical clinic in evidence.

Keywords: Psychosomatic clinic; Third topic; Metapsychology of bonding; Sensorial; Psychosomatic psychotherapist maternal function.


 

 

No Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF) ocorrido em Lisboa em maio de 2006, o relator B. Brusset apresentou fundamentos para a teoria das organizações não-neuróticas, por meio da elaboração de uma metapsicologia dos limites e dos vínculos. Apesar de falar mais de corpo que de soma, conseguiu aguçar a curiosidade dos psicanalistas que trabalham nesse campo da psicossomática psicanalítica.

Efetivamente, a clínica psicossomática tem parentesco com esses funcionamentoslimite, apresentando fragilidades narcísicas. Brusset diz que eles geram dependências para com o objeto primário, que estão aquém de sua representação. Esse aquém, com falta de simbolização e de subjetivação, encontra um lugar singular nas somatizações. Desse modo, ficam evidenciados esses aspectos metapsicológicos dos vínculos primários como constitutivos do futuro das pulsões e das relações de objeto. Como sabemos, a pulsão não é um dado, mas se constitui numa relação interpsíquica com os objetos. Ela é causa e efeito, o que exige um trabalho psíquico, devido ao ancoramento no somático e à ligação com o objeto. Poderíamos pensar que o trabalho de construção do analista é um contra-investimento à ameaça de vazio nesses pacientes.

Na psicossomática podemos observar um superinvestimento da sensório-motricidade como defesa contra as emergências pulsionais e os traços mnésicos do objeto. Como o bebê, cuja sensorialidade está enraizada nos pensamentos, transforma sensações e percepções para alcançar uma boa mentalização? O papel do objeto materno é essencial para a libidinização das funções somáticas e psíquicas. Sem um objeto permanente para ser investido, todo o ser se atrofi a na fixação da sensorialidade e assistimos então ao aparecimento dos processos antipensamentos e antiobjeto.

Brusset nos mostra no excelente relatório a extensão de seus conhecimentos. Propõe integração entre teoria pulsional e teoria da relação de objeto, concebendo uma terceira tópica, tópica do vínculo, afi rmando que o aparelho psíquico é desde muito cedo produzido pelos vínculos e produtor deles. A idéia de uma terceira tópica articulando o intersubjetivo e o intra-subjetivo renova nossa compreensão metapsicológica e nos permite pensar os modelos pós-freudianos surgidos em ordem dispersa. Essas articulações são sempre possíveis e coerentes? A leitura do relatório de Brusset nos ajuda a compreender melhor a diversidade de nossas práticas como analistas e a complexidade de nossos pacientes, notadamente daqueles para quem estão difi cultadas a articulação exterior/interior e a alteridade.

Além disso, nas patologias atuais a relação com o objeto primário se caracteriza por vínculos breves, frágeis ou mesmo precocemente interrompidos. A vivência da triangulação não é sufi cientemente acentuada, não somente nos casos-limite, mas também nos quadros heterogêneos que a eles se assemelham. Como inscrever o que foi dito no contexto da clínica psicossomática psicanalítica?

No Instituto de Psicossomática de Paris (Ipso), P. Marty, M. de M’Uzan, C. David e M. Fain e seus sucessores pesquisaram o funcionamento mental, em particular sua dimensão econômica, e foram levados a formular hipóteses sobre o nascimento psíquico. Para esses autores, as particularidades do funcionamento mental de seus pacientes se referem à organização específica da psique perante distorções induzidas pelo ambiente; falhas da função materna; uma gestão particular da excitação, que falha em se pulsionalizar e em investir a sensorialidade – na verdade a sensório-motricidade, em defesa contra a emergência pulsional, sobretudo diante das dificuldades de inscrição dos traços mnésicos do objeto. Isso me permite colocar em discussão a clínica psicanalítica da sensorialidade e fazer comentários sobre a função materna do psicoterapeuta psicossomático. Nesse contexto, vou me servir de idéias já apresentadas por outros colegas, considerando em especial o livro Clinique psychanalytique de la sensorialité [Clínica psicanalítica da sensorialidade], publicado pela editora Dunod em 2002, no qual consta um artigo escrito por Irina Adomnicai, “Lugares psíquicos do corpo, processos corporais do pensamento: A proposição psicossomática”.

Retornemos então à teoria da clínica. Marty defi niu o pré-consciente como “placa giratória da economia psicossomática” e sublinhou a importância do trabalho de enriquecimento, espessura, mobilidade e permeabilidade implicado no tratamento dos pacientes somatizantes. Não seria preciso ligar esse trabalho àquele de subjetalização e objetalização no espaço intermediário, como defende o relator Brusset? O pré-consciente proposto por Marty poderia revestir uma dimensão interpsíquica? O caso clínico descrito por Brusset pode nos mostrar esse trabalho do pré-consciente:

A projeção psicótica descentra o sujeito do sofrimento melancólico na forma de fuga de idéias maníacas. Cabe ao analista não somente suprir a atividade de um pré-consciente inefi ciente – no qual podem se articular representações de coisa e representações de palavra na referência aos objetos –, mas também, pelos vínculos com a história infantil, solicitar a ativação, na verdade a constituição, de representações de coisas e representações ao nível primário da simbolização – na prática, as imagos parentais em ação nos fantasmas originários. O trabalho analítico dos vínculos de sentido estabelece a coerência diante dos efeitos da heterogeneidade constitucional do ego, deixado aberto ao desmedido de suas contradições.

A teoria e a clínica psicossomáticas se tecem em torno da relação que une, no triplo plano metapsicológico, a excitação, o afeto, o fantasma e a representação.

A questão do papel econômico das funções sensório-motoras na manutenção do equilíbrio psicossomático desde o início atraiu a atenção dos psicanalistas psicossomáticos. Já estava presente em 1954, na apresentação do relatório “A importância do papel da motricidade na relação de objeto”, escrito por Pierre Marty e Michel Fain. Eles defi niram a importância do papel da motricidade na relação de objeto, insistindo sobre a identificação sensório-motora primária, na qual a atividade motora está a serviço do investimento pulsional, em uma relação com um objeto investido (a mãe). A noção de comportamento, no plano da economia psicossomática, está descrita por Marty como uma ação de descarga da excitação.

Marty (1976) retoma o fio condutor quando descreve as “neuroses de comportamento” como entidades clínicas em cujo seio os comportamentos e as condutas representariam a manifestação direta do inconsciente. Como o bebê, a partir da sensorialidade enraizada no pensar, pode transformar sensações e percepções para conseguir alcançar uma boa mentalização? Há múltiplas respostas para esse tipo de questionamento.

Com base na experiência clínica, Marty propõe a hipótese de que existe, no início da vida, um mosaico primário, justaposição de funções biológicas e psíquicas primitivas, cujo corolário será a administração da mãe (em seu papel de ligação) de satisfação de necessidades e proteção. Funções biológicas e psíquicas primitivas, ainda não articuladas entre si, formariam de saída o inconsciente, o qual produziria, por sua vez, o elã vital. Assim, numa perspectiva genética evolucionista, constrói-se, segundo Marty, uma pirâmide representando a hierarquização de funções (Irina Adomnicai).

Marilia Aisenstein repensa as carências precoces a partir de falhas do masoquismo erógeno primário. Trata-se, para ela, de ligar sensorialidade, sensação, emoção e qualificação dos afetos. A espera dolorosa do bebê deve ser investida de forma masoquista pela mãe. As condutas masoquistas secundárias são tentativas de reajustar o masoquismo originário, que não foi convenientemente estabelecido. Ela cita como exemplos os adeptos da body art e dos piercings.

 

A “função maternal” do psicoterapeuta psicossomático

A função maternal de que fala Pierre Marty, quer se situe no nível mãe-criança ou no nível “psicoterapeuta-paciente somático”, procura obter um bom nível de mentalização que proteja o corpo – não se restringindo a atingir um funcionamento mental conforme as exigências sociais.

O autor organizou um esquema em torno da “função maternal” do psicoterapeuta – uma estratégia psicoterápica condizente com os pacientes cujas mentalizações insuficientes tiveram papel no surgimento dos transtornos somáticos. A função maternal, para Marty, deveria mediatizar a organização das funções vitais do bebê, associando-as, hierarquizando-as, conduzindo assim à emergência de uma unidade funcional psíquica no sujeito. A mãe, como agente principal, tem papel na necessária libidinização das grandes funções orgânicas em seu bebê. Do ponto de vista psicanalítico, essa função maternal se caracteriza por descontinuidade, alternando presença e ausência – descontinuidade à qual o ponto de vista psicossomático associa necessariamente as variações quantitativa e qualitativa de investimento libidinal.

Podemos destacar duas posições sobre essa função maternal na Escola Psicossomática de Paris. A primeira é a posição de fundo, que privilegia a qualidade do ambiente, o enquadre em relação ao futuro do ser vivo. O cuidado maternal torna-o potencialmente favorável. A libido projetada por essa administração maternal provê o id do bebê com um reforço libidinal que é suficiente para permitir ao masoquismo erógeno encontrar um lugar para a pulsão de morte desorganizadora.

A segunda posição, defendida por Fain com base em estudos sobre a psicossomática da criança, concentra-se numa complementaridade exemplar sobre o papel do objeto para essa síntese. O objeto e a sensação não apenas estão ligados na primeira infância, mas principalmente – se o ser humano existe e vem ao mundo num banho de estimulações sensoriais –, essas estimulações só adquirem sentido se forem investidas. Dito de outra forma, a sensorialidade só pode trabalhar para evitar a relação com o objeto, apresentando paradoxalmente total dependência dele.

O lugar ocupado pelos investimentos sensoriais no seio do funcionamento psíquico dos pacientes “psicossomáticos” permitiu aos psicanalistas psicossomáticos reconhecer com pertinência as soluções paraexcitantes que um sujeito pode encontrar para fazer face aos ataques de angústia repetidos. Sem objeto permanente a investir, todo o ser se implica no choque dos órgãos de sentido, na tonicidade sensório-motora dos auto-erotismos primários – capacidade última de manter a vida por meio de uma excitação suficiente, por um deslocamento do auto-erotismo sob a forma não-ligada, esparsa, que se nota freqüentemente nos bebês que sofreram excitações de tipo traumático.

É graças à intervenção do analista que a sensorialidade terá chance de elaborar-se, de ligar-se; intervenção que Freud chamou de “nova ação psíquica” vinda do objeto, a qual, somada aos auto-erotismos primários, permitirá que enfim seja formatada a unificação narcísica das tendências sexuais nascentes. Esse remanejamento do auto-erotismo primário engendrará, na criança atingida em sua unidade narcísica, o sentimento de existir e de durar.

É preciso também sublinhar a necessidade de introjetar isso que Green (1975) chama estrutura enquadrante dos cuidados maternos, para a criança criar o espaço interior neutro, indispensável à recepção das relações de objeto. Estrutura enquadrante que garante certa organização-coesão interna da “consensualidade”, reunida na e pela rêverie materna, que organiza as primeiras percepções ao mesmo tempo que as primeiras emoções – o principal efeito é a eliminação de uma multiplicidade de estímulos dispersos e a diminuição, por isso mesmo, de um recurso preferencial às modalidades defensivas motoras e sensoriais. Introjeção indispensável de uma função continente, sem a qual o ato auto-erótico não pode se concentrar na sustentação privada da relação com um objeto interno constituído.

Na patologia, não houve processos suficientemente progressivos de adaptação, flutuações suficientemente fluidas entre estados de indiferenciação e emergência da consciência de separação. Sem essa fase de diferenciação oscilante, as atividades e os fenômenos transicionais se revelam incapazes de proteger o bebê de um encontro muito brutal com a mãe não-eu (Winnicott, 1958). Aqui, os psicanalistas psicossomáticos falariam mais de má construção ou ausência de um pré-consciente protetor (Boubli, Konicheckis et. al., 2002). Para C. Smadja, o desenvolvimento pulsional, devido à linhagem traumática, falha

[…] o destino do duplo retorno, que tem por conseqüência privar o sujeito do acesso à passividade. A realização alucinatória do desejo não pode fi rmar seu controle sobre os eventos psíquicos, devido à conjuntura anterior inacabada. O trauma invade o espaço. O ego é prematuramente solicitado para constituir uma paraexcitação autônoma em relação aos efeitos do traumatismo. Acima de tudo, o relaxamento é obtido com condutas autocalmantes, representantes da pulsão de morte em sua função de neutralização, na verdade de mortificação da excitação (Smadja, 2001).

A título de conclusão citarei Aisenstein e Smadja (2001), a propósito dos desastres sensoriais no quadro de patologias graves (autismo de criança pequena), assim como nos adultos que funcionam neuroticamente. Mais em quem persiste um núcleo autístico, ou ainda nos sujeitos que viveram experiências infelizes, carências, traumatismos, poderá “ficar impedida a criação desse sentimento de continuidade interna e ser induzida, ao contrário, uma utilização precoce do que se chama dispositivos antiobjeto, que se tornarão mais tarde dispositivos antipensamento. Com efeito, pensar é doloroso, porque inclui o objeto”.

 

Referências

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Admar Horn
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* Membro efetivo da SBPRJ.

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