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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

TERCEIRA TÓPICA?

 

Considerações sobre “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?”, de B. Brusset

 

Notas sobre la “Metapsicología de los vínculos y ‘tercera tópica’?”, de B. Brusset

 

Notes on B. Brusset's 'Metapsychology of bonding and ‘third topic’?"

 

 

Luciane Falcão1

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora tece considerações teóricas a partir do relatório de Bernard Brusset, “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?”, que lança um questionamento sobre a necessidade – ou não – de uma terceira tópica para dar conta de certos aspectos da clínica contemporânea, e também sobre a relação dessa tópica com a teoria da prática que lhe corresponde. Apesar de reconhecer as propostas de Brusset como essenciais para reflexão e aprofundamento da metapsicologia dos vínculos, a autora lembra que a noção de vínculo psíquico é antiga em psicanálise e não vê necessidade de nomear uma terceira tópica ou mesmo de criar novas teorias para pensar a metapsicologia dos vínculos. Para compreender o que seria a formação do vínculo, sua argumentação segue uma trilha que já estaria contida na primeira e na segunda tópicas freudianas. As reflexões fundamentam-se principalmente nas idéias de S. Freud e de A. Green.

Palavras-chave: Metapsicologia; Vínculo; Tópicas; Estruturas-limite; Objeto.


RESUMEN

El autor teje algunas consideraciones teóricas a partir del artículo de Bernard Brusset “Metapsicología de los vínculos y ‘tercera tópica’?”, que lanza un cuestionamiento sobre la necesidad – o no – de una tercera tópica para dar cuenta de ciertos aspectos de la clínica contemporánea y de relacionarla con la teoría de la práctica que le corresponde. A pesar de reconocer las propuestas de Brusset como esenciales para una reflexión y un profundamiento de la metapsicología de los vínculos, el autor recuerda que la noción de vínculo psíquico es antigua en psicoanálisis y no ve necesidad de nombrarse una tercera tópica o mismo crear nuevas teorías para pensar la metapsicología de los vínculos. Parte para una argumentación basada en un camino que permite un camino en la comprensión de lo que seria la formación del vínculo que ya estaría contenida en la primera y segunda tópica freudiana. Las reflexiones se basan principalmente en las ideas de S. Freud y de A. Green.

Palabras clave: Metapsicología; Vínculo; Tópicas; Estructuras límite; Objeto.


ABSTRACT

Th e author gives some theorical contributions setting out from Bernard Brusset’s “Metapsychology of Bonding and ‘Th ird Topic’?” which launches questioning over the need – or not – for a third topic in order to get a hold of certain aspects of the contemporary clinic and of connecting it with its corresponding theory of practice. Despite recognizing Brusset’s proposals as essential for reflection and deepening of metapsychology of bonding, the author reminds us that the notion of psychic bond is ancient in psychoanalysis and doesn’t consider the need of naming a third topic or even creating new theories in order to reflect upon the metapsychology of bonding. A discussion is initiated based on a trail that allows a pathway in comprehending that bond formation would already have been contained in the first and second Freudian topics. Reflections are mainly based in S. Freud’s and A. Green’s ideas.

Keywords: Metapsychology of bonding; Topics; Limit structures; Object.


 

 

O relatório de Bernard Brusset, “Metapsicologia dos vínculos e ‘terceira tópica’?”, provocou muito interesse, controvérsias e discussões durante o 66º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF). Brusset lança um questionamento sobre a necessidade – ou não – de uma terceira tópica para dar conta de certos aspectos da clínica contemporânea e sobre a relação dessa tópica com a teoria da prática correspondente. É um relatório que merece destaque tanto pela capacidade do autor em expressar os conhecimentos psicanalíticos como pela perspectiva histórica apresentada de forma complexa.

A exposição de Brusset nos leva a reflexões teórico-clínicas fundamentais para o desenvolvimento do trabalho analítico. Penso que por meio dos exemplos clínicos e da prática ele nos revela ainda mais sensibilidade e capacidade para, como analista, deparar com estruturas-limite e, mesmo diante de um caos psíquico, criar novos espaços para que as representações possam ser construídas. Sua elaboração não é somente teórica, e por isso nos permite refletir sobre nossa prática como analista e sobre a complexidade de nossos pacientes, principalmente aqueles nos quais a articulação interior e exterior é confusa.

Brusset lembra que a história das teorias de relação de objeto – que se refeririam mais ao outro – conduziu a uma oposição às teorias pulsionais – que se relacionariam mais ao corporal. A partir disso, propõe integrar as duas tendências numa metapsicologia dos vínculos, de modo a surgi então a idéia de uma terceira tópica:

A oposição entre o modelo pulsional, fundado sobre a relação originária com o corpo, e o modelo relacional, fundado sobre a primazia originária do outro, pode encontrar uma saída às vezes dialética e mutativa num novo espaço teórico suscetível de integrar conjuntamente os modelos heterogêneos do pluralismo teórico atual: trasicionalidade, relação continente-conteúdo, capacidade de rêverie da mãe etc.? Isso é desejado? Isso é possível? As noções extraídas do contexto histórico e de seu enquadre conceitual correm o risco de desviar para o empirismo anárquico e, sobretudo de racionalizar práticas que não têm mais nada de psicanalíticas (Brusset, 2006, p. 216).

Na opinião de Brusset (2006), numerosos autores que se debruçaram sobre as transformações da metapsicologia a partir da virada de 1920 e que se confrontaram com os modelos introduzidos por D. W. Winnicott, W. Bion ou A. Green estavam freqüentemente conduzidos a invocar uma terceira tópica. Entre eles, P. Bourdieu, J. Guillaumin, D. Anzieu, R. Kaës, C. Dejours, C. Parat e F. Guignard. Na clínica da psicose e das patologias dos casos- limite, aparecem a ausência de interioridade e grande dificuldade para instaurar um funcionamento representativo. Em face dessa defasagem, surge a necessidade de substituir essa falta por diferentes formas de exterioridade. Brusset pensa que seria necessária uma reflexão que ultrapasse as duas primeiras tópicas freudianas. Ao mesmo tempo, para ele, o modelo da metapsicologia dos vínculos não exclui a metapsicologia dos modelos freudianos, que são dinâmicos e econômicos. A proposta é uma teorização que não visa a um sistema, mas a uma articulação para pensar.

Surgem então inúmeras questões:2

• Seria a terceira tópica uma teorização adaptada a novas formas de patologias ou uma reflexão mais geral revelada por essas patologias?

• Seria ela mais originária, mais primitiva, condicionada ao aparecimento das duas outras? Ou ela questiona a tópica clássica? Qual o grau de ruptura epistemológica que a terceira tópica demanda?

• A terceira tópica permitiria tornar mais e mais vivo o interesse pela atividade de pensamento não-simbolizado em sessão, numa indução mútua entre analista e analisando?

• Permitiria fundar uma prática analítica do tipo construtivista, em ruptura com o positivismo inicial do caminho freudiano?

Esses questionamentos podem ainda incluir a questão do conceito psicanalítico de objeto, pois quando falamos da relação de objeto estamos nos referindo a que objeto? Parcial? Total? Não podemos nos esquecer do fato de que o objeto é um constituinte da pulsão, nem da existência de seus representantes.

Brusset propõe três grandes referências que fundam a perspectiva de uma terceira tópica (Brusset, 2006, p. 229-230):

• A projeção, do animismo à paranóia, e a identificação projetiva nas suas diversas formas, das quais a identificação projetiva de segunda geração, considerada normal, criadora de vínculos, oposta à identificação projetiva patológica ou excessiva, expulsiva, que desloca os limites entre o mundo interno e o mundo externo, o eu e o outro. (O modelo ubiqüitário da relação continente-conteúdo encontra aqui sua pertinência.) Essa referência coloca a questão das relações entre a representação e a percepção, o alucinatório e o figurável.

• A dupla polaridade do narcisismo e da objetalidade, isto é, a relação de identidade e a relação de complementaridade na pluralidade de seus níveis: entre o self (como Jacobson, 1964/1969) e o mundo objetal.

• A transicionalidade e a utilização do objeto nos efeitos contraditórios dos dois princípios do caminho dos acontecimentos psíquicos e nos vínculos intersubjetivos e intrapsíquicos.

Brusset propõe uma metapsicologia dos vínculos. E para iniciar essa reflexão gostaria de relembrar que o uso da noção de vínculo psíquico é antigo em psicanálise. Não vejo necessidade de nomear uma terceira tópica ou mesmo criar novas teorias para pensar a metapsicologia dos vínculos. Usarei nessa reflexão alguns elementos que me permitem trilhar um caminho para compreender o que seria a formação do vínculo e que, do meu ponto de vista, já estão contidos na primeira e na segunda tópicas freudianas.

Freud utilizou um conceito de ligação (Bindung) baseado em conceitos da termodinâmica e o adotou no “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1977). Distingue, como em termodinâmica, uma energia livre e uma energia ligada. O investimento estável do ego por uma energia ligada se opõe às descargas de energia livres associadas à sexualidade. No “Projeto”, essa referência às ligações é ditada pela necessidade de manter a necessária estabilidade do psiquismo.

Desde a inscrição do pensamento de Freud num sistema neuronal, surge para ele e para nós o problema da ligação, não só entre as quantidades de energia, mas também entre uma percepção externa e uma percepção interna, ou seja, entre o objeto real e sua representação ou, digamos, entre o objeto externo e o objeto interno, na medida em que este último tem o status de nascer da memória do primeiro. Freud diz:

Os resíduos dos dois tipos de vivências [de dor e de satisfação] […] são os afetos e os estados de desejos, que tem em comum o fato de que ambos acarretam um aumento da tensão Q em ? – produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e, no de um desejo por soma (Freud, 1895/1977, p. 426-427).

Aqui começamos a perceber que o desejo já implica investimento do objeto. Em 1914, em “Sobre o narcisismo: Uma introdução”, Freud começa a nos apresentar a idéia de um ego que precisa ser desenvolvido e a necessidade de que algo se passe nesse processo. Afirma:

[…] que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo (Freud, 1914/1977).

Podemos pensar que essa ação psíquica instaura a existência dos processos de ligação, porque permite passar da percepção de um objeto como prolongamento de si à percepção de um objeto separado de si e, portanto, ligado a si. Essa nova ação psíquica é, assim, o ponto de partida do que será compreendido como movimento identificatório.

Nessa perspectiva, o vínculo é o que permite dar direção a essa excitação sem forma e em que nenhum espaço psíquico pode manter-se. A pulsão, nessa perspectiva, é o que se sucede à excitação, havendo portanto, a necessidade da nova ação psíquica.

Se, conforme Freud, o bebê vem ao mundo com aspectos inatos e está inicialmente submerso num mundo indiferenciado, vai necessitar que as pulsões se encontrem com o objeto. A pulsão, que existe antes do objeto e precisa dele para manifestar-se é, então, a criadora do mundo psíquico. E, como todos sabemos, para Freud a pulsão é um conceito entre o somático e o psíquico, força vital que tem origem biológica, na qual uma parte se mantém no corpo e outra parte na fronteira que cria o psíquico. Freud considerava outro fator no processo de diferenciação do id:

O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna. […] O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície” (Freud, 1923/1977).

No “Homem dos lobos”, Freud levantou a questão sobre a necessidade de situar as vivências e referiu-se aos esquemas filogenéticos herdados, dizendo que

[…] como as categorias da filosofia, dizem respeito ao trabalho de ‘situar’ as impressões originadas da experiência real. […] Sempre que as experiências deixam de ajustar-se ao esquema hereditário, elas se remodelam na imaginação. […] São precisamente tais casos que se destinam a convencer-nos da existência independente do esquema. Muitas vezes conseguimos ver o esquema triunfar sobre a experiência do indivíduo (Freud, 1914 [1918]/1977, p. 148).

E continua:

[…] [o] fator instintivo seria o núcleo do inconsciente, um tipo primitivo de atividade mental, que seria depois destronado e encoberto pela razão humana, quando essa faculdade viesse a ser adquirida; mas que, em algumas pessoas, talvez em todas, mantivesse o poder de atrair para si os processos mentais mais elevados. O recalque seria o retorno a esse estágio instintivo, e o homem estaria, assim, pagando pela nova aquisição com a sua sujeição à neurose […] A significação dos traumas da primitiva infância estaria no material que transmitiriam ao inconsciente, que não permitiria que fosse exaurido pelo curso subseqüente do desenvolvimento (Freud, 1914 [1918]/1977, p. 149).

Na continuidade do pensamento freudiano, poderíamos dizer que o esquema autônomo e filogenético só vai se significar com a pulsão.

Para seguir essa reflexão sobre as idéias de Brusset, me apoiarei também em algumas idéias de A. Green, que considero essenciais para compreender as falhas vinculares e até mesmo as impossibilidades de alguns pacientes estabelecerem vínculos psíquicos estáveis. Green, no artigo “L’Analyste, la symbolisation et l’absence dans le cadre analytique” [O analista, a simbolização e a ausência] (1974/1990), também chegou a levantar a possibilidade de estarmos diante de uma terceira tópica, elaborada a partir do espaço analítico em termos de self e objeto. Destaca que o retorno ao estudo do narcisismo após o eclipse realizado pelo estudo das relações de objeto testemunha que é difícil incrementar as pesquisas nesse campo sem que se faça sentir a necessidade de uma perspectiva complementar. No entanto, toda a abordagem desse problema deveria abordar o problema do narcisismo primário, que aparece em definições contraditórias na obra de Freud. Designa tanto aquilo que permite as unifi cações das pulsões auto-eróticas que levam ao sentimento de unidade individual, como um investimento originário do eu não-unificado e sem referência à unidade. Green se apóia nessa segunda idéia e acredita que é a “orientação dos investimentos que assinalam a natureza narcísica primitiva, a qualidade dos investimentos (o self grandioso, a transferência em espelho e a idealização do objeto) abarcando eventualmente o objeto sob a forma de self-objeto” (grifo meu). Esses aspectos seriam relativos ao narcisismo unifi cador, e não ao narcisismo primário propriamente dito. Green propõe uma teoria do narcisismo primário como estrutura, e não somente como um estado; mesmo ao lado de tudo o que é positivo (o que é visível e barulhento) da relação de objeto, quer ela seja boa ou má, haverá um lugar para o aspecto negativo (o que é invisível e silencioso). Esse aspecto negativo se forma graças à introjeção, que – ao mesmo tempo em que os cuidados maternos vão constituir a relação de objeto – também permitirá a alucinação negativa da mãe quando ela estiver ausente. O espaço assim delimitado, ao lado das relações de objeto, é um espaço neutro, suscetível de ser alimentado em parte pelo espaço das relações de objeto, mas distinto deste por constituir o fundamento da identificação. Não é apenas em termos de espaço que se devem formular as coisas. O desinvestimento radical afeta também o tempo, pela capacidade de suspender a experiência e criar tempos mortos em que nenhuma simbolização pode ter ocorrido (Green, 1974/1990, p. 110-115).

Em “Sobre o narcisismo: Uma introdução” (Freud, 1914/1977) e “Luto e melancolia” (Freud, 1912 [1913]/1977), Freud introduz mudanças em sua obra, ao passar de uma teoria predominantemente pulsional para uma teoria relacionada com o mundo interno e as identifi cações. No texto de 1914, mostrará que, apesar das vicissitudes da libido, as aberrações, fixações e bloqueios serão atribuídos a uma problemática interna da vida pulsional que engaje o ego ele mesmo. Antes desse artigo, Freud não tinha meios de falar adequadamente do objeto, a não ser da parte fantasmática. Ele é visto entre a subestimação do objeto na perversão e a superestimação no estado amoroso. O retorno ao objeto é, portanto, anterior à introdução do narcisismo na teoria, mas esse retorno se faz de fato sob os auspícios de uma problemática narcísica: o luto e suas relações com a melancolia (Green, 1974/1990, p. 17-19). Será com “O ego e o id”, em 1923 (no qual o id destrona o inconsciente e as pulsões de destruição passam a fazer parte do id), e em “Totem e tabu” (Freud, 1912 [1913]/1977) que veremos a questão das relações se estabelecerem. Neste último, Freud se debruça sobre a questão da identificação primária – processo no qual se instala um espaço e que permite a dessexualização em relação ao pai primitivo.

Essas referências teóricas aqui resumidas me auxiliam a compreender as idéias apresentadas por Brusset. Penso que ele nos brindou com narrativas clínicas que merecem ser destacadas. Dois casos clínicos complementam seus pontos de vista: um de Christine – apresentado no relatório escrito – e o outro de Laura,3 apresentado na abertura do CPLF. O caso de Laura consiste numa paciente jovem, anoréxica, com grandes difi culdades de representação e que apresenta uma insônia importante. Tem, porém, uma única atividade que lhe permite adormecer: gravar e pintar cascas de ovos. Há em Laura um registro pulsional que não chega a organizar a neurose. Existem figurações ainda sem representações (e essa passagem é feita na análise). Através dos ovos há a tentativa de formar algo, tentativa de articular topologia do psiquismo e objeto de investigação. O psiquismo de Laura testemunha o fracasso da linguagem, num espaço psíquico pobre e sem capacidade para metabolizar. Mas tem o ovo… E é aqui que ela encontra um lugar para brincar (no sentido winnicottiano) com as possibilidades metafóricas.

O topos não é aqui uma reedição, é uma criação entre analista e paciente e é criado a partir de condições prévias. Freud, em “Achados, idéias e problemas”, alude ao ter e ser nas crianças e diz:

As crianças gostam de expressar uma relação de objeto por uma identificação: ‘Eu sou o objeto’. ‘Ter’ é o mais tardio dos dois; após a perda do objeto, ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O seio é uma parte de mim, eu sou o seio.’ Só mais tarde: ‘Eu o tenho’ – isto é, ‘eu não sou ele’…

E segue:

O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, de nosso aparelho psíquico. A psique é estendida, nada sabe a respeito (Freud, 1941 [1938]/1977, p. 335-336).

Penso que o espaço então seria constituído pelas organizações representacionais que contêm a pulsão, o sensório e o esquema (este, como categoria kantiana, a priori). Em Laura, é a partir do trabalho artístico que um mundo relacional entre paciente e analista permite a criação de um espaço psíquico onde se pode tecer um mundo de representações sem, num primeiro tempo, fazer uso de dimensões interpretativas. Apenas mais tarde ocorrerão interpretações mais clássicas.

Nos dois casos apresentados por Brusset, aparece a necessidade de criar espaços psíquicos, surgidos através do trabalho analítico, que permitirá progressivamente um funcionamento representativo. Nessas duas pacientes – de estruturas não-neuróticas – vimos a evidência da força da violência interna, sempre presente e que leva à morte psíquica. Nesses casos encontramos a descrição de algumas causas com as quais a maioria dos autores está de acordo:

• experiências de fusão primária que testemunham uma indistinção sujeito-objeto, com obscurecimento dos limites do ego;

• modo particular de simbolização na organização dual;

• necessidade de integração estruturante pelo objeto.

Entre esses dois extremos (normalidade e regressão fusional), Green reagrupa quatro polaridades fundamentais de defesas: exclusão psicossomática, expulsão por ato, clivagem, desinvestimento (1974/1990, p. 87). Este último, ligado à pulsão de morte, faz com que estejamos de acordo com Brusset e com sua técnica – pois permite à paciente uma ligação que a leva a se sentir ligada ao analista, vivenciando na análise situações de realidade (a Wirklichkeit, que Freud nomeia realidade factual e diferencia da Realität, esta última implicando situações da realidade psíquica, na qual há a presença do símbolo (Freud, 1995/1977, p. 489, n. 1).

A força da violência interna estaria embasada na proposta de A. Green e J. L. Donnet (1973) com relação à psicose branca, o branco do pensamento, o vazio do pensamento, as inibições das funções de representação. Representar já é ligar, mas pensar é religar as representações sobre um modo especulativo. E, concordando com Brusset, podemos falar de vínculos no “lugar de um real a partir do qual tomam sentido o imaginário e o simbólico” (Brusset, 2006, p. 216).

Durante os debates do congresso, Green lembrou a citação freudiana que funda a metapsicologia da exterioridade: se a libido é retirada da representação do objeto, este não é mais percebido como interior, mas sim como exterior, ou seja, como uma percepção; o quantum de afeto que se retira se encontra, por um lado, na crença da alucinação, e por outro na hostilidade que corresponde à percepção do desinvestimento libidinal. Para Green, essa idéia freudiana englobaria o conjunto do relatório de Brusset, uma vez que revelaria a existência de representações psíquicas fora da memória – onde as representações são em exterioridade e compreendem o objeto em si, ou o mais próximo desse objeto em si; onde o analista se situa, ele próprio, em exterioridade, jamais interpretando a transferência. Green mostrou, com o caso de Christine, que, se os elementos da estruturação edipiana falham, é a força da cena primitiva violenta que se fará presente (a cena primária nunca não existe). O primeiro movimento da paciente vis-à-vis àquela cena primitiva – moção agressiva – é uma morte no espaço psíquico. O psíquico vem do corpo, e Laura, por sua vez, apresenta um duplo investimento, sendo ao mesmo tempo ela e a mãe; não há predomínio do investimento narcisista.

O trabalho analítico desenvolvido por Brusset e suas duas pacientes mostram que ele crê na necessidade de criação de um novo espaço psíquico (e de sua terceira tópica?) para a construção em análise. Penso que se criou um espaço psíquico onde um outro passa a ocupar, penetrar e existir, abrindo a perspectiva de uma percepção interna a partir dessa relação. Onde antes era o vazio, haverá um outro presente. Onde antes havia o nada, passará a existir a necessidade e o desejo. Onde antes havia destrutividade, haverá possibilidade de ligaduras. Mas compreendo que há aqui todo o trabalho da pulsão como o que liga ao objeto, a partir da existência deste. A questão da força da pulsão é inquestionável. Esse espaço flutuante, temporário, do início da análise – que se estabeleceu na mente do analista e do analisando – será gradualmente construído a partir da relação. Brusset e Green estão de acordo quanto a isso e acreditam que, para pensar a clínica desses pacientes, é no espaço vazio que se ruem, num segundo tempo, as moções pulsionais brutas ou a serem elaboradas (Green, 1974/1990).

O psiquismo do analista, diante desses fenômenos, encontra-se afetado pela comunicação do paciente. A análise responderá ao vazio por um intenso esforço de pensamento para tentar pensar o que o paciente não pode pensar – o que se traduzirá numa atividade psíquica criadora de representações fantasmáticas para não se deixar levar por aquela morte psíquica. O vazio chamou o afl uxo do pleno, o transbordamento suscitou o esvaziamento. É difícil resolver a busca por um equilíbrio dessas trocas. Se pela interpretação se preenche precocemente esse vazio, repete-se a intrusão do objeto mau; se, ao contrário, esse vazio é deixado como está, repete-se a inacessibilidade do objeto bom. Se o analista, tomado pela confusão, se vê em superatividade verbal, estará somente respondendo a uma versão interpretativa. A única solução é oferecer ao paciente a imagem da elaboração (o preenchimento dos ovos de Laura), situando o que ele nos oferece num espaço que não será nem o do vazio, nem o do transbordado. É o espaço da potencialidade e da ausência, porque, como viu Freud, é na ausência do objeto que se forma a representação dele, fonte de todo pensamento (Green, 1974/1990, p. 93).

Green, nas obras Narcisisme de vie, narcisisme de mort (1983) e o “Le Tournant des annés folles” (1993), fornece elementos teóricos e uma base clínica suficientemente sólida para que possamos ampliar a compreensão dos casos ditos patologias do vazio. Brusset, também dentro segundo essa compreensão teórica, mostra a abertura de vias técnicas para a análise desses casos. Sua compreensão das pacientes e num primeiro tempo a utilização da transferência de forma lateralizada (praticamente se colocando como o objeto em si) permitiram às duas pacientes estabelecer um nível de transferência que num segundo tempo pode ser interpretado de forma clássica.

Penso que essa necessidade técnica também poderia ser embasada nos conceitos de Green sobre o duplo limite. Sabemos que esse tipo de paciente tem sérias difi culdades de diferenciação entre mundo interno e mundo externo, entre eu e não-eu, e que a força da cisão entre esses dois mundos não está presente de forma sufi cientemente estável. Ao mesmo tempo, o mundo pulsional também não é recalcado de forma que possa não penetrar o consciente e pré-consciente corriqueiramente. O que vemos é a falta de limites entre esses mundos, essas instâncias. A presença do setting começa a permitir essa experiência.

A proposta de Green é clara e deve ser considerada: a célula fundamental da teoria é constituída pelo casal pulsão-objeto. Creio que esse ponto de vista serve para argumentar por que não precisaríamos de uma terceira tópica para pensar nas relações de objeto e pulsão. Se falamos no casal pulsão-objeto, já consideramos uma fantasia primária (Urphantasie). Nesse casal há algo que emerge de um lugar, vai para outro lugar e se relaciona: é uma Urphantasie que se configura.

Para Green, não se trata de opor sujeito e objeto, mas de inserir cada um desses dois termos no seio de uma linha.

Não existe no atual estágio de nossos conhecimentos e das teorias existentes, possibilidades de posicionar sob um chefe único o sujeito e o objeto em psicanálise. São duas correntes, às vezes independentes uma da outra e ricamente interconectadas, nas quais se articulam formações subjetivas e formações objetais. Cada corrente possui uma unidade mas se decompõe em diversas entidades. Diante de cada problema, trata-se de buscar a entidade mais relevante (Green, 2002, p. 156).

Green esclarece que o objeto está no psiquismo e o que o oxigena é o corpo. E mais:

O que propomos de novo é considerar a pulsão como matriz do sujeito. Com efeito, é absolutamente impossível tentar pensar nos fundamentos do sujeito sem vê-lo em relação à obra do trabalho da pulsão. Um eu ou um sujeito amputado da dimensão pulsional é uma entidade não-viva, mecânica, operatória e cognitiva. O que defi ne a pulsão, como Freud indicou, é que ela é um conceito-limite entre o psíquico e o somático – o que coloca defi nitivamente a psique sobre o corpo é que ela é, de outra parte, a demanda do corpo feita ao espírito “a exigência de trabalho” a fi m de que ele encontre as soluções que permitem sair da situação de falta, demanda o fi m das tensões que o habitam e chama a satisfação através de grandes gritos. Ou seja, o desenvolvimento do psiquismo é menos dependente da relação com a realidade que da necessidade de fazer face às pressões do interior, empurrando o espírito a procurar soluções para obter as satisfações que lhe fazem falta (Green, 2002, p. 157).

Vemos aqui uma idéia de modelo da mente que oxigena o psíquico, assim como existe o modelo do sonho que não exclui o modelo da relação de objeto.

Considero todo questionamento de Brusset essencial. Não signifi ca que estou necessariamente de acordo com a nomeação desses processos numa terceira tópica. Penso que a primeira e a segunda tópicas freudianas dão conta dessas questões. A proposta de uma terceira tópica pode ser vista como paralela à da dinâmica e econômica, sem necessidade de privilegiar a tópica. Se a economia é bem desenvolvida, haverá a noção do qualitativo. Freud, em 1938, no “Esboço de psicanálise”, fala que o insconsciente, o pré-consciente e o consciente são qualidades psíquicas, insistindo sobre as qualidades libidinais dos investimentos. Dessa forma, várias qualidades libidinais podem existir ao mesmo tempo e no mesmo lugar, podendo se complementar e/ou se confl itar.

Para compreender esse tipo de paciente descrito por Brusset, quero ainda citar alicerces teóricos fundamentais sedimentados por Winnicott e Bion, este engrandecendo o trabalho analítico, principalmente com o sem memória e sem desejo e o conceito de rêverie. Penso que na psicanálise de hoje o importante é que possamos cada vez mais compreender como o analista trabalha. César e Sara Botella (2001), com a noção de figurabilidade psíquica, têm colaborado para a melhor compreensão da mente do analista. Para acessar o irrepresentável, o inacessível do paciente, haveria a exigência de um trabalho em duplo. A regrediência do pensamento do analista abre a sessão a uma inteligibilidade da relação de dois psiquismos funcionando em estado regressivo. É o trabalho em duplo, cuja realização será reveladora do que – existindo já no paciente em estado não-representável, em negativo do trauma – pode enfim acessar a qualidade de representação (Botella & Botella, 2001). O trabalho de figurabilidade ocorre através do funcionamento mental do analista na sessão, e será na capacidade de transformar (no sentido bioniano) e de integrar (no sentido winnicotiano), que ele terá papel de reorganizador do conjunto da vida psíquica. É por isso que tem um valor antitraumático incontestável nas análises – o único meio de acessar e revelar o negativo do trauma (Botella, 2006).

Para fi nalizar, considero que o CPLF é um dos testemunhos da vitalidade da psicanálise diante de sua tão anunciada morte. Talvez a morte da psicanálise venha sendo anunciada num momento em que a civilização presencia várias mortes: da moral, da serenidade, da paz, da democracia, dos direitos dos homens (que direitos?)… Mas o processo de refl exão das mentes de psicanalistas – que buscam, a cada ano, a cada livro publicado, a cada debate, a cada congresso, aprofundar o conhecimento da mente humana para que o indivíduo possa viver melhor diante de todas as outras perdas – revela que ainda há esperança para a busca de um conhecimento melhor de si e, conseqüentemente, de uma tentativa para viver melhor…

Apesar de ouvir falar sobre o descrédito da psicanálise – descrédito que também poderia estar ligado à fragmentação de um saber freudiano e à sua dispersão, muitas vezes indo além do tolerável –, observamos que sua importância permanece. A manutenção da psicanálise contemporânea é o resultado de diversas forças, entre elas a experiência clínica e a possibilidade de permitir ao indivíduo um processo de autoconhecimento.

Gostaria de sublinhar os momentos de vitalidade e de refl exões propostos pelo pensamento atual da psicanálise francesa, demonstrado em parte no 66º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa e no volume de publicações que encontramos. As discussões e os aprofundamentos desses congressos revelam que devemos dar atenção à psicanálise em movimento. Principalmente porque ela continua imprimindo a necessidade da permanente leitura de Freud e porque atribui à pulsão papel determinante na teorização, sempre mantendo presente o que a psicanálise freudiana mantém como base de sua teoria, ou seja, a noção de pulsão e de desejo: uma força psíquica que ignora sua própria determinação e leva a realizações que, seguidamente, são percebidas como não-distintas pela consciência e escapam ao controle da vontade (Green, 2006).

 

Referências

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1 Membro associado da SPPA.
2 Questões resumidas por Emmanuelle Chervet e apresentadas no relatório do Congresso.
3 Publicado pela Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), vol. 2, 2006.

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