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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.1 São Paulo Mar. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

João Carlos Braga*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Paulo César Sandler. The Language of Bion: A Dictionary of Concepts. London: Karnac Books, 2005, 853 p.

Quem estiver interessado na melhor resenha possível para The Language of Bion: A Dictionary of Concepts deverá buscá-la no próprio livro, na Introdução feita pelo autor. Nela, Paulo César Sandler nos apresenta, de forma muito precisa, suas intenções, sua filosofia de trabalho e os princípios gerais que o nortearam. Esclarece-nos, por exemplo, sua crença na nossa absoluta necessidade de notações precisas para nos movimentarmos no campo científico; sua tentativa de facilitar o acesso à obra de Bion; sua busca por apresentar as idéias desse autor mantendo fidelidade ao pensamento dele – e não às interpretações de estudiosos; seu esforço para enriquecer a compreensão dos conceitos com a inclusão de comentários enraizados na experiência clínica; seus cuidados em discriminar uma visão idealística/religiosa que permeia áreas do pensamento psicanalítico, freqüentemente sem ser reconhecida.

Tendo isso em vista e somando a constatação de que a magnitude do que Paulo César Sandler nos apresenta é, em muitos aspectos, irredutível, deixemos claro que o que acredito poder fazer para apresentar esta obra não chega a ser uma resenha. O que fica possível, então, é reunir algumas observações gerais. Assim, buscarei comentar, separadamente, questões relativas ao autor, à obra em si mesma e a pontos significativos que ela me estimulou.

Sobre o autor. Paulo César Sandler já tem, há tempos, seu nome firmado no panorama da psicanálise brasileira, pelas múltiplas contribuições como psicanalista clínico, investigador criativo da mente humana e do pensamento psicanalítico, além de tradutor exímio e prolífico. Penso que como autor passou a ocupar uma posição muito especial no reduzido grupo de psicanalistas capazes de ter, ao mesmo tempo, uma visão abrangente e das filigranas do pensamento psicanalítico, sem se perder em filiações doutrinárias. Já havia nos surpreendido com a abrangência, a erudição e a perspicácia de A apreensão da realidade psíquica, panorama sem igual, na literatura psicanalítica mundial, sobre as raízes científicas, filosóficas e artísticas da psicanálise. Agora, com The Language of Bion, novas surpresas. E ainda maiores. A vocação enciclopedista do autor revela-se não mais na extensão do campo abordado, mas na profundidade com que examina cada idéia do conjunto do pensamento de Bion.

Sobre o Dicionário em si. The Language of Bion – A Dictionary of Concepts, carinhosamente apelidado de Dicionário pelo autor, é antes de mais nada uma solução engenhosa para um difícil desafio: o exame, a um só tempo abrangente e minucioso, do pensamento de Bion. Como apresentar as idéias de um autor que insistentemente buscou limitar-se a descrevê-las, a aproximá- las usando analogias e metáforas, sem recorrer a definições e conceituações ordenadoras de um sistema? A solução encontrada por Paulo César é criativa e dá conta do problema: apresenta- nos as idéias de Bion tecendo como que redes tridimensionais nas quais cada conceito, sua evolução no conjunto do pensamento e as experiências clínicas que ele ilumina criam espécies de hologramas de idéias.

Em um campo prolífico de lançamentos, o Dicionário é uma obra única. À parte as singularidades de ser produto de um analista brasileiro, de ser escrito originalmente em inglês e publicado diretamente no mercado editorial internacional, tem valor excepcional para os interessados no pensamento de Bion e no desenvolvimento das idéias psicanalíticas. Reúne esclarecimentos elaborados sobre conceitos-chave, tanto nos sentidos mais correntes como em sua evolução e na aura de significados que detêm. É a resultante de trinta anos de dedicação à prática clínica, e de estudos críticos da obra de Bion e outros autores psicanalíticos consagrados. Uma correspondência de 23 anos com Francesca Bion sobre obscuridades em textos de W. R. Bion, somada ao exame das próprias anotações deste autor na biblioteca pessoal acrescentam elementos preciosos à obra.

Ao longo do livro, temos mais de duas centenas de verbetes, que nos permitem aproximações com os elementos do que podemos identificar como uma teoria abrangente e original sobre o psiquismo humano, desenvolvida exclusivamente a partir da experiência clínica psicanalítica. Não há um padrão único. Cada item tem um tratamento particularizado. Alguns verbetes limitam- se a esclarecimentos dos significados contidos naquele conceito; correspondem às idéias mais conhecidas de Bion: elementos alfa e beta, supostos básicos, grade, padrões de transformações, ato de fé etc. Outros verbetes apenas indicam ao leitor itens em que o conceito pode ser encontrado. Conceitos analíticos consagrados também são examinados dentro do pensamento de Bion: “transferência”, “interpretação”, “contratransferência”, “resistência”, “identificação projetiva” [transference, interpretation, counter-transference, resistance, projective identification], para citar alguns. Mas o que torna este Dicionário muito especial são os verbetes que examinam idéias que constituem pedras angulares do pensamento de Bion; são verdadeiros e preciosos trabalhos psicanalíticos, explorando o tema tanto em profundidade como em sua aura de significados e nas dificuldades de seu uso. Vejam-se, como exemplos significativos, “matematização da psicanálise”, “negativo”, “filosofia”, “Édipo” e “vínculos” [mathematization of psychoanalysis, minus, philosophy, Oedipus, links]. Outras agradáveis surpresas surgem em verbetes que tratam de temas mais controversos ou que correspondem a uma apreensão ampliada de alguma questão mais delicada, como “vértice analítico”, “intuição”, “mentiras”, “manipulação de símbolos”, “psicanálise real” [analytic view, intuition, lies, manipulation of symbols, real psycho-analysis].

A comparação com outros dicionários psicanalíticos acentua a singularidade desta obra. Não se trata apenas de resumos do que foi desenvolvido pelo autor, mas de cuidadosos trabalhos de garimpagem e de concentração de partículas do pensamento de Bion, em geral com indicação das fontes. Em vez de sínteses padronizadas, temos elaborações particularizadas, seguidas de um exame crítico de usos e de deformações que são de ocorrência mais freqüente. Em suma, as idéias ganham uma apresentação viva por meio de elaborações estimulantes, só possíveis por um experiente analista praticante. A comparação feita pelo editor entre este Dicionário e o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis pode ser adequada, mas obscurece a criatividade que caracteriza a obra, nos esforços do autor para tornar mais acessível cada conceito. De fato, esse é um dos destaques do Dicionário, e que toma forma, por exemplo, na inclusão do pano de fundo das idéias de Bion (ciências, literatura e filosofia). Cada idéia fica contextualizada, recebe um tratamento de “grande angular”. Vê-se isso de forma marcante, por exemplo, no item “Transformation”, em que são desveladas as origens matemáticas da teoria das transformações.

A consulta ao Dicionário é fácil; há uma rica rede de indicações cruzadas, favorecendo a ampliação do tema de interesse em outros verbetes. A leitura guarda proximidade com as difi culdades típicas da leitura de Bion, em que as idéias compõem um mosaico invisível, a ser percebido pelo leitor.

Como em toda obra, há aspectos editoriais passíveis de melhoria, assim como há formulações do autor das quais um leitor mais interessado na área pode discordar. No primeiro caso, a falta de um índice de verbetes, assim como de um índice remissivo; também seria útil o uso de um tipo diferente para os títulos de cada verbete, dando-lhes maior destaque. Ainda: é difícil localizar onde estão desenvolvidas algumas idéias de Bion, como “protomental”, “medo subtalâmico”, “superego cruel e assassino do ego”, “consciência”. Há referências a elas em outros verbetes, mas a localização fica por conta do leitor. Esse ponto está justificado na Introdução, na qual o autor explica o critério de se limitar às idéias que tenham alcançado suficiente desenvolvimento na obra de Bion para serem tratadas como conceitos.

Quanto ao segundo caso – diferenças de compreensão que o leitor possa ter em relação à forma de apreensão de algum dos conceitos –, vamos reconhecer que o viés pessoal de cada um é um fator irredutível. Afi nal, a fidelidade completa ao pensamento de um autor é uma meta inalcançável, mesmo que se esteja muito atento ao problema assinalado por Bion, através do modelo do cão que olha o dedo do dono, mas não o objeto apontado (aproveitado por Paulo César Sandler no item “Pre-conception, preconception, premonition”).

Uma questão significativa, para finalizar. Quando uma obra valiosa como esta vem à luz, traz consigo muitas questões e em diferentes campos. A que mais me toca é: o que nos diz o fato de um autor brasileiro publicar em inglês um trabalho dessa magnitude? A simples existência de um Paulo César Sandler e a publicação de The Language of Bion – A Dictionary of Concepts assinalam um momento significativo para todos nós, psicanalistas brasileiros. Apesar de nossa pequena participação científica em termos globais, a qualidade de nossa inserção no movimento psicanalítico estaria mudando? Pois, embora obra de uma só pessoa, nenhuma pessoa isolada poderia realizá-la. Nos Agradecimentos e na Introdução, podemos vislumbrar um pouco desse pano de fundo familiar, grupal e societário em que vive o autor. Mas, se o surgimento deste livro pode ser visto como marco sinalizador de um grau maior de desenvolvimento do pensamento psicanalítico entre nós, também nos impõe o reconhecimento da capacidade criativa e de trabalho de seu único e exclusivo autor. Afinal, se um livro é excepcional, há algo a ser reconhecido também em seu autor. E o Dicionário de Sandler é nada mais, nada menos, o trabalho mais significativo já realizado por um autor brasileiro no âmbito da literatura psicanalítica mundial.

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP.

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